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Adriana Varejão jamais escondeu sua admiração pelo Barroco, em especial o mineiro e o baiano, que aparecem citados com frequência em sua obra e entrevistas. É desse estilo que se origina o título de seu livro Pérola Imperfeita; “barroco” faz referência ao barro, à nódoa, à pérola grossa e irregular.

Vez ou outra Adriana também cita a influência do escritor Severo Sarduy, com destaque para o livro Escrito Sobre um Corpo, que nos permite supor uma série de relações entre a obra da artista e os métodos do Barroco teorizados ali.

Mais do que nunca, parece se tratar de uma apropriação, aplicação e transformação realizadas pela artista. Como se a noção de Barroco de Sarduy fosse sintetizada num esquema operatório e posta em prática por Adriana. Ao ponto de perguntarmos se ela não usa o próprio Barroco como artifício para criar na atualidade, exercitando a artificialização por substituição, proliferação e condensação, tal como diz o texto, e conforme veremos a seguir. Como se o seu trabalho de pintura fosse colocar em operação um método, uma interpretação e uma teoria sobre o Barroco, invertendo o caminho ou retornando, quer dizer, transpondo de volta o pensamento crítico para o fazer artístico.

Inspirado na tradição crítica de Heinrich Wölfflin, Sarduy entende o Barroco como “a apoteose do artifício, a ironia e a irrisão da natureza” (SARDUY, 1979, p. 59). Em meio a essa artificialização, ele distingue aqueles três mecanismos – substituição, proliferação e condensação –, que verificamos na obra de Adriana. “Processo de artificialização por substituição”, por exemplo, de imediato faz lembrar os títulos da série Extirpação do Mal: por Incisura (Figura 29), Overdose (Figura 30), Punção (Figura 31) etc.

As semelhanças não param aí. O processo de “artificialização por substituição” diz respeito a uma relação significante-significado em que o primeiro é trocado por outro, quase sempre alheio. É o que vemos na pintura Figura de Convite I (Figura 39), reproduzida a partir de azulejos que, nos palácios portugueses, recepcionavam e indicavam o caminho ao visitante. Com óleo sobre tela, Adriana simula a azulejaria, apresenta uma mulher nua onde normalmente se encontraria um soldado trajado e aponta o caminho a um festim canibal inspirado nas fantasias que artistas viajantes popularizaram na Europa durante o período colonial latino-americano.

O procedimento artificializa a parede, substitui significantes para transformar significados, tensiona imaginários e realidades, além de exagerar na volúpia, na violência, na metáfora. Afinal, “todo Barroco não é mais do que uma hipérbole” (SARDUY, 1979, p. 62).

Por sua vez, a “artificialização por proliferação” consiste em obliterar o significante de um significado, substituindo por diversos outros, numa cadeia que progride metonimicamente e acaba por circunscrever o significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele (SARDUY, 1979, p. 62).

A obliteração foi incorporada em sua obra quando Adriana conheceu o claustro da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, na cidade de Salvador, onde encontrou uma azulejaria com imagens riscadas ou substituídas por outras (Figura 53 e Figura 54). Foi essa censura, possivelmente de ordem moral, que inspirou a série Extirpação do Mal. Existe uma proliferação de significantes nessas pinturas, que substituem a própria ideia da censura, a saber: as técnicas médicas de tratamento aplicadas nos quadros.

Também nas pinturas de sauna ocorre algo parecido. Só que ali vemos o significante oculto, enquanto os substitutos aparecem apenas nos títulos, por mais paradoxal que pareça (Figura 40 e Figura 41). Títulos como: A diva, A fonte, O chinês, O húngaro, O iluminado, O místico, O obsceno, O obsessivo, O predileto, O sedutor, O sonhador e assim por diante.

Por fim, temos a “artificialização por condensação”. Sarduy explica que,

análoga ao processo de condensação, é uma das práticas do Barroco: a permutação, espelhamento, fusão, intercâmbio entre os elementos [...] de dois dos termos de uma cadeia significante, choque e condensação

dos quais surge um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros (SARDUY, 1979, p. 65).

Adriana explora a superposição de imagens em diversos trabalhos. Suas Testemunhas Oculares X, Y e Z (Figura 27) apresentam retratos da artista como chinesa, moura e índia. Mêlée de Guerriers Nus – Redux (Figura 42) produz uma ambiguidade entre folhagens e silhuetas humanas. Kindred Spirits (Figura 43) sobrepõe retratos de Adriana, pintada como indígena norte-americana, e trabalhos de artistas minimalistas. Exemplos que, em comum, têm o fato de colocarem em diálogo significantes diversos para verificar quais significados surgem dos pontos de tensão.

Sarduy apresenta assim sua síntese:

se na substituição o significante é escamoteado e substituído por outro e na proliferação uma cadeira de significantes circunscreve o significante primeiro, ausente, na condensação assistimos à “colocação em cena” e à unificação de dois significantes que vêm reunir-se no espaço exterior da tela, do quadro, ou no interior da memória (SARDUY, 1979, p. 67).

Na sequência ele fala sobre paródia e a relação entre aparência e transparência. Para o autor, uma obra do Barroco latino-americano deve desfigurar uma obra anterior, que se pode ver nela em filigrana (SARDUY, 1979, p. 68). Esse procedimento encontraria seu ápice no carnaval, “espetáculo simbólico e sincrético em que reina o ‘anormal’, em que se multiplicam as confusões e profanações, a excentricidade e a ambivalência, e cuja ação central é uma coroação paródica, isto é, uma apoteose que esconde uma irrisão” (SARDUY, 1979, p. 68). A festa apresenta mesmo essa contradição, em que o profano se afirma pelas vias alegóricas de uma apoteose, termo que significa, literalmente, sagração do homem, transformado em deus (do grego, apo: transformação; theos: deus).

Adriana não explorou diretamente o tema do carnaval, embora a carnavalização seja elemento marcante em sua obra, seja pela profanação do passado e das suas histórias consagradas, seja pela alegoria da carne, seja pela festividade dos excessos, da sensualidade e da zombaria. Existe em sua obra um humor com requintes de crueldade, que é a própria essência libertária, selvagem, do carnaval. Suas pinturas não são literais como mimeses; estão mais para literárias na medida em que exploram perífrases,

digressões, desvios, duplicações e tautologias típicas do Barroco (SARDUY, 1979, p. 70). Como se quisesse ser e também criticar o barroquismo da linguagem pictórica, parodiando-a, amando-a e a odiando ao mesmo tempo, com os mesmos gestos, na exacerbação da imagem.

“Ao parodiar o código a que pertencem, deformando-o, esvaziando-o, empregando-o inutilmente ou com finalidades desviadas, [as citações nas imagens] não remetem mais que à sua própria artificialidade”, explica Sarduy (1979, p. 72). Tal deformação do código é sintoma da profanação que, levada ao extremo, faz com que a imagem encontre fim em si mesma. O crítico define assim o palco do Barroco: o lugar da linguagem sem limite (SARDUY, 1979, p. 74).

Ora, o fim da linguagem é a sua própria estrutura linguística; assim que ultrapassado, ela será outra coisa que não linguagem. Assim que seu dispositivo for desativado, a linguagem dará lugar a outro.

O Barroco atual, o Neobarroco, reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto [...]. Reflexo necessariamente pulverizado de um saber que sabe que já não está “docemente” fechado sobre si mesmo. Arte da dessacralização e da discussão (SARDUY, 1979, p. 79).

Está aí um dos propósitos da profanação enquanto método: questionar o inquestionável, trazendo-o à discussão no comum. Como Agamben percebeu com a acuidade da sua filosofia: a profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem (AGAMBEN, 2007, p. 79).

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