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Hal Foster cita algo semelhante à subjetivação exercida pelos dispositivos quando trata do anteparo-imagem, duas entidades coincidentes e meio indiscerníveis que nos ajudam a pensar o Mapa de Lopo Homem II e, a partir dele, outros trabalhos de arte em geral.

A origem do conceito remete, mais uma vez, a Lacan (1988); ele é quem primeiro apresenta o esquema de triângulos relativos ao que chama de pulsão escópica do olhar (Figura 12). Segundo o qual a imagem seria o que o espectador formula a partir do quadro olhado. Em outras palavras, entre o olho que vê e o objeto que é olhado cria-se a imagem, que não habita o objeto nem o olho; ela é inventada no espaço relacional que os une tanto quanto os separa. O anteparo, por sua vez, seria a subjetividade que reitera o apreendido e educa o olhar; o anteparo é o aparato cultural e também o operador da mediação entre o olho e o objeto olhado, ou melhor: é a estrutura simbólica que dá sustentação ao olhar. Ambos, anteparo e imagem, coincidem naquilo que é apreendido por quem olha um quadro; Foster trata essa coincidência em termos de anteparo- imagem.

No mapa de Adriana Varejão, a forma do continente americano, por exemplo, é apresentada e reconhecida pelo espectador, cujo anteparo sustenta tal interpretação. Assim reitera certo clichê visual, ou certo governo do olhar, como o lugar da América no globo, sempre à esquerda, a história da sua constituição, as relações comerciais e culturais com outras localidades mais ou menos reconhecíveis naquela dada imagem do mundo. Impossível separar o anteparo da imagem, assim como não se deve pensar no corpo apartado da mente ou a forma apartada do conteúdo. Pois, assim como mente é corpo e forma é conteúdo, o anteparo é em alguma medida imagem e vice-versa.

Como dissemos, o anteparo é o lugar da mediação. “Permite que o sujeito, no ponto do quadro, contemple o objeto, no ponto luminoso. De outro modo, seria impossível, pois ver sem esse anteparo seria ser cegado pelo olhar ou tocado pelo real” (FOSTER, 2014, p. 135).

Sabemos o que acontece quando se olha o mundo sem o devido anteparo. Quem nos conta é o neurologista Oliver Sacks (1995), cujo paciente viveu como um cego durante décadas até descobrir que, com uma cirurgia, poderia enxergar “como qualquer

outra pessoa”. O resultado foi terrível. Tanto o médico quanto o paciente e sua família perceberam que enxergar não é uma questão puramente visual: ao abrir os olhos pela primeira vez, o ex-cego continuava sem reconhecer ou compreender nada. O rosto à sua frente, o quadro na parede, as embalagens dos produtos no supermercado não passavam de borrões impossíveis de decodificar. Até mesmo a profundidade de campo não fazia sentido, e uma pessoa próxima e outra distante simplesmente pareciam maiores e menores para ele. Ver é diferente de entender. E é o anteparo, junto com a visão, que permite a cada pessoa construir o entendimento – as imagens de mundo – à sua maneira. Quando dizemos que o Mapa de Lopo Homem II profana uma imagem de mundo, não nos referimos apenas a uma imagem antiga de mapa, mas a uma apreensão ou um entendimento sobre o que é o mundo e também a um imaginário que se projeta sobre ele. Profana, ainda, no sentido de que pela realização de uma imagem o mundo se distancia do real; torna-se, enfim, inscrito, acessível, dimensionável, visível, dizível, pensável.

Por jamais ter sido educado a ver e jamais ter os demais sentidos associados aos estímulos visuais, a experiência de enxergar, para o paciente de Sacks, era angustiante, um verdadeiro transtorno, ao ponto de ele desejar a cegueira de volta.

Possuindo de nascença a totalidade dos sentidos e fazendo as correlações entre eles, um com o outro, criamos um mundo visível de início, um mundo de objetos, conceitos e sentidos visuais. Quando abrimos nossos olhos todas as manhãs, damos de cara com um mundo que passamos a vida aprendendo a ver. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através de experiências, classificação, memória e reconhecimento incessantes. Mas quando Virgil abriu os olhos, depois de ter sido cego por 45 anos, [...] não havia memórias visuais em que apoiar a percepção; não havia mundo algum de experiência e sentido esperando-o. Ele viu, mas o que viu não tinha qualquer coerência. Sua retina e nervo óptico estavam ativos, transmitindo impulsos, mas seu cérebro não conseguia lhes dar sentido (SACKS, 1995, p. 129).

Apesar de receber os estímulos luminosos, o paciente de Sacks permanecia “mentalmente cego”, ou agnósico, como dizem os neurologistas: capaz de ver, mas não de decifrar o que via (SACKS, 1995, p. 131). Se usarmos as palavras de Foster para

descrever suas condições, diremos que ao abrir os olhos ele foi “cegado pelo olhar e tocado pelo real” (FOSTER, 2014, p. 135). Poderíamos também dizer que olhou diretamente para o caos de Deleuze e Guattari, que emana intensamente através do rasgo no guarda-sol e das suas pupilas, como veremos adiante.

Inclusive, já que citamos esses dois filósofos, caberia ainda associar o anteparo ao próprio guarda-sol que protege os olhos do espectador: uma coleção de opiniões prontas, ideias ordenadas, conhecimentos estruturados que confortam e permitem olhar o mundo sem ser destruído pelo real. Uma coleção de referências, pressupostos e conhecimentos que guia a experiência de olhar.

Tal firmamento habita a tela antes mesmo que o pintor ponha tinta sobre ela e determinará a imagem por vir. Pois uma vez disposto no mundo, é impossível ignorar a sua realidade, e toda obra responderá a ela ao mesmo tempo em que passará a compô-la. O contradispositivo da pintura se dá pela imagem que consegue se deslocar um pouco além ou um pouco aquém de seu anteparo. Como afastar-se por completo cega o olhar, e coincidir por completo o conforta, basta um deslocamento sutil para criar um ponto de tensão entre o que se vê sem entender direito e o que se frustra na expectativa do olhar.

Adriana Varejão parece aplicar essa ideia em Tea and Tiles II (Figura 37) e em Margem (Figura 38), instalações em que a imagem pintada e o suporte não coincidem com exatidão, como costuma acontecer. Embora a imagem a que aquela ideia se refere não se resuma à forma pictórica, assim como o anteparo não é a tela em branco; em ambos os casos, falaríamos de uma representação compatível com a aproximação conceitual aqui proposta.

Profanar o anteparo-imagem é a operação do artista visual que deslegitima aquilo que é evidente da imagem, desviando do óbvio, do clichê, do preconceito, na direção de sentidos outros. É uma violência contra a imagem e contra o olho, pois destitui suas certezas, seus lugares-comuns; é uma reinvenção do olhar.

Para isso o artista se arma de artifícios que desarmam dispositivos. De maneira tão paradoxal quanto dizer que faz operar a inoperância da linguagem pictórica; ele pratica a inoperatividade, ou seja, a atividade operatória da inoperância. “Mesmo que o olhar possa aprisionar o sujeito, o sujeito pode domesticar o olhar. Essa é a função do

anteparo: negociar uma deposição do olhar como numa deposição de armas”, diz Foster (2014, p. 135), dialogando com as ideias de Lacan.

Pouco adiante, o autor acrescenta que “assim é a contemplação estética segundo Lacan: algumas obras de arte podem tentar um trompe-l’oeil, um engano do olhar, mas todas aspiram a um dompte-regard, a uma domesticação do olhar” (FOSTER, 2014, p. 136). Vimos antes o conceito de dompte-regard como uma espécie de tentativa de abandonar o anteparo, ainda que impossível; Hal Foster chama atenção para um segundo movimento dessa tentativa, que é a educação do olhar, ou a sua “domesticação”, na medida em que ele requisita a criação de um novo anteparo. Tanto um quanto o outro são impossíveis pelo simples fato de que não podemos ignorar por completo o contexto simbólico em que fomos criados, somos constituídos por ele na mesma medida em que o constituímos; assim como não podemos providenciar um novo anteparo, pressupondo que a sua criação é um procedimento puramente voluntário.

Mesmo com suas figurações de homens, carnes e azulejos, Adriana Varejão pinta com uma literalidade que não se reduz à mera apresentação de temas; ela promove apropriações e embates numa recusa de pacificar o olhar, o que para Foster é próprio da arte contemporânea:

é como se essa arte quisesse que o olhar brilhasse, que o sujeito se sustentasse, que o real existisse, em toda glória (ou horror) de seu desejo pulsátil, ou ao menos evocar essa condição sublime. Para tal, essa arte atua não só para atacar a imagem como também romper o anteparo ou indicar que ele já foi rompido (FOSTER, 2014, p. 136).

Se Adriana parece apenas aplicar de maneira literal o ataque contra o anteparo- imagem é porque da literalidade ela faz irromper a volúpia e o drama barrocos. Chamamos esse procedimento de “artifício”. Que é como o termo indica: estratagemas artificiais que atuam sobre as estruturas da pintura; eles acolhem e atacam o olhar, amam e ferem a imagem, desejam e assassinam o real. Os artifícios barrocos são verdadeiros em seus engodos, sinceros em suas mentiras, sensuais na sua razão de serem explícitos. Mais uma vez, não se trata de simples literalidade, mas de ambiguidades e paradoxos. Tal como Foster escreve sobre o retorno do real:

a relação da arte da apropriação com o anteparo-imagem não é tão simples: ela pode ser crítica do anteparo, até hostil, e fascinada por ele, quase apaixonada. E às vezes essa ambivalência sugere o real; isto é, como a arte da apropriação trabalha para revelar as ilusões da representação, ela pode atravessar o anteparo-imagem (FOSTER, 2014, p. 141).

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