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Em primeiro lugar, convém esclarecer que tratamos aqui dos dispositivos conforme Agamben os define a partir de uma atualização das teorias de Michel Foucault, que, por sua vez, remonta à positividade hegeliana. A saber: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40).

O dispositivo exerce uma força sobre a vida, ainda que nem sempre seja evidente, perceptível, visível. Força de subjetivação que conforma visibilidades, dizibilidades e pensabilidades na medida em que dá a ver e educa o olhar, discursa e educa a dizer, produz pensamentos e educa a compreender. É nesse sentido de controle que dizemos “regimes” de visíveis, dizíveis e pensáveis.

Porém nem toda força do dispositivo atua no nível elucidativo. Também há no regime estético invisibilidades, indizibilidades e impensabilidades. Isso significa que o dizível implica também silêncios e educa o calar-se; o visível opera desaparecimentos e educa ignorâncias; o pensável sustenta irracionalidades e educa o não questionamento. São forças que atuam debaixo da superfície aparente do mundo e que inflamam, tais como as carnes sob o Mapa de Lopo Homem II.

Esse conjunto de forças resulta em processos de subjetivação. Como Agamben explica, “o termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito” (AGAMBEN, 2009, p. 38).

O autor retoma o direito e a religião romanos para explicar que a consagração, obtida por meio do sacrifício, implicava retirar algo do uso comum e oferecê-lo aos deuses, de maneira que se tornava inacessível, intocável, improclamável. Em outras palavras, consagrar significava retirar da esfera do direito dos homens, que é o nível profano. Enquanto a profanação reverteria o processo, restituindo ao livre uso comum.

Se teoricamente isso parece simples, na prática produz as violências mais diversas e complexas. Por muitas razões: o sagrado de um sujeito pode ser o profano de outro; todo sagrado ainda detém algo de profano e vice-versa; o sagrado e o profano não são inerentes aos objetos, às qualidades, aos valores, às crenças, aos pensamentos, aos discursos, às matérias: os efeitos se produzem na relação com seus sujeitos. Por isso, “a

estratégia que devemos adotar com os dispositivos não pode ser simples, já que se trata de liberar o que foi capturado” (AGAMBEN, 2009, p. 44).

Agamben explica que “a profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido” (AGAMBEN, 2009, p. 45). Nesse sentido, a arte manifesta algo de contradispositivo quando desconstrói estruturas e as devolve ao domínio dos homens, sejam estruturas linguísticas, políticas, religiosas, sociais, históricas etc.

Entretanto, a arte visual é também um dispositivo de visualidade que afasta do comum estruturas linguísticas, políticas, religiosas, sociais, históricas e assim por diante, de maneira que não se diluam na vida e desobedeçam à autoridade das teorias da arte nem das instituições como os museus, as escolas e os editais, ou a autoridade da própria técnica, que estabelece modos de fazer e expectativas sobre os produtos.

A arte visual sustenta visibilidades e invisibilidades, discursividades e silenciamentos, pensabilidades e não questionamentos. Um verdadeiro paradoxo que profana ao mesmo tempo em que consagra; o que não surpreende, pois todo contradispositivo depende do dispositivo para existir, tanto quanto a resistência depende da opressão e a realidade depende do real, e vice-versa.

Todo dispositivo precisa criar os seus sujeitos de modo que possa exercer o governo deles. Caso contrário, quer dizer, acaso aqueles sujeitos não fossem submetidos ao processo de subjetivação que os conforma, o exercício do governo se reduziria a um mero ato de violência. Se é possível e aceitável um governo para além da violência que sujeita seus indivíduos, isso ocorre porque os dispositivos exercem com eficácia sua função de subjetivação.

Para citar um exemplo concreto: se existe um governo que proíbe outra prática matrimonial que não a monogamia, e se essa prática não é considerada um ato de violência contra a liberdade ou de inquestionável submissão à lei, ocorre que certos dispositivos produziram com sucesso os sujeitos desse governo. Pois, nas palavras de Agamben, “o dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações e somente enquanto tal é também uma máquina de governo” (AGAMBEN, 2009, p. 46).

Encontramos em Deleuze uma espécie de pequena glosa, não intencional, sobre resistir aos dispositivos, ainda que os próprios contradispositivos operem processos de

subjetivação semelhantes. Ele explica: “quando alguém lhes informa, alguém lhes diz o que vocês supostamente devem crer. Em outros termos: informar é fazer circular uma palavra de ordem. [...] A informação é exatamente o sistema de controle” (DELEUZE, 2013, p. 395).

Como o controle se dá? Por meio de dispositivos linguísticos, morais, jurídicos etc. Deleuze não usa o termo “dispositivo”, mas o que fala compartilha questões com esse nosso objeto de pesquisa. Em especial porque, tanto para ele quanto no nosso caso, a obra de arte pode operar como contrainformação. Que se torna eficaz quando é um ato de resistência (DELEUZE, 2013, p. 396).

Ora, resistir a quê?, poderíamos perguntar. À ordem, aos sistemas de controle, às clausuras a que a sociedade se sujeita? De que vale resistir se o dispositivo continua a operar e a oprimir os seus sujeitos?

Se pensarmos junto com Deleuze, talvez a resistência seja o primeiro passo. O segundo daria numa bifurcação: levantar-se contra o dispositivo ou criar desvios.

Seja um atentado ou uma linha de fuga, a arte poderia operar como contrainformação. Para Deleuze, ela não somente pode, mas sem dúvida operará. Pois “nem todo ato de resistência é uma obra de arte, ainda que, de certo modo, ele seja. Nem toda obra de arte é um ato de resistência e, entretanto, de certo modo, ela é. [...] Apenas o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens” (DELEUZE, 2013, p. 398).

Ocorre que os contradispositivos tampouco podem ser apartados dos seus sujeitos, e tal como os dispositivos eles também devem subjetivar para serem exercidos. Quer dizer, se o contradispositivo não produzir os seus sujeitos insurgentes, seus atos de violência se reduziriam a um mero exercício de governo. Pior: é quase sempre o que acontece. Daí os atos de resistência, as articulações de oposição, os levantes e combates reproduzirem os meios e métodos estabelecidos que pretendem enfrentar. Daí o contradispositivo atuar também como um dispositivo, exercendo uma positivação e amparando uma positividade de ordem prática, ideológica, hipócrita. Quem dera os contradispositivos pudessem, em vez de subjetivar, produzir contrassujeitos.

Com isso em mente fica difícil concordar com Agamben quando ele coloca o problema da profanação dos dispositivos como urgente (AGAMBEN, 2009, p. 50-51),

uma vez que a profanação pode apenas dar uma volta no círculo e retornar, enfim, ao ponto de origem, ou talvez muito próximo dele. De fato, as consagrações e profanações movimentam sistemas de valores econômicos, morais, intelectuais, estéticos etc. desde sempre e com alguma frequência, de onde é possível produzir conhecimento e, com sorte, até alguma sabedoria. Justamente por isso não há razão de urgência, considerando que não é novidade e tampouco produzirá uma transformação radical nas formas de vida.

Todavia o filósofo faz um alerta semelhante à nossa conclusão: o problema da profanação “não se deixará colocar corretamente se aqueles que dele se encarregam não estiverem em condições de intervir sobre os processos de subjetivação, assim como sobre os dispositivos, para levar à luz aquele Ingovernável, que é o início e, ao mesmo tempo, o ponto de fuga de toda política” (AGAMBEN, 2009, p. 51).

Diante dessa perspectiva pessimista, segundo a qual mesmo a revolução não trará nada de novo senão mais um novo para envelhecer, e que continuará a produzir sujeitos e sujeitados, por que insistir? Talvez simplesmente porque esse movimento é o que mantém vivo um desejo, um propósito, um pulso. Vitalidade que, aqui sim, aproxima-se da arte pela sua necessidade criativa, e que pode se manifestar artisticamente como ato criador.

Mais do que constatar que o Mapa de Lopo Homem II profana certa estruturação da história, da política, das sociedades, entre outras, cabe perguntar que sujeitos, subjetividades e governos essa profanação destitui e quais ela produz. Não existe uma resposta que dê conta disso de maneira geral. Como vimos, profanações e consagrações se fazem na relação do espectador com a obra, dependem de organizações de tempo, espaço, disposição etc., resultando necessariamente numa experiência singular.

Se existe formulação mais abrangente, seria apenas a que aponta o limite da profanação como método de criação, apresentação e experiência estética: o ponto em que o objeto artístico e a própria instituição “Arte” destituem o outro para tomar o poder para si e passar a exercê-lo.

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