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As abordagens contemporâneas do sentido da morte de Jesus

O percurso histórico considerado até agora, nos ofereceu as possibilidades de ampliar o leque de compreensão da morte de Jesus. A estruturação sócio-cultural exigiu repensar a cristologia e apresentá-la ao ser humano e ao seu contexto. O binômio moderno-passado adentra na teologia com força de continuidade gerando o desejo de reler os dogmas cristãos e os Textos Sagrados para que continuem expressando nessa nova época o que no universo teológico se caracteriza pela insistência na mudança de paradigma cultural e na superação de uma leitura fundamentalista dos textos pascais,511 considerando a ressurreição de Jesus como princípio de toda a cristologia e dirigindo o olhar para a pessoa do Ressuscitado que agora ocupa o centro. É preciso certificar-se de que nesse contexto o Jesus terrestre e crucificado é reconhecido e confessado como o Ressuscitado.512 O evento morte-ressurreição deve ser realçando no que se reflete sobre o Jesus pré-pascal e o Cristo pós-pascal.

As correntes filosóficas evidenciam o ser humano do século XX sob o crivo das seguintes qualidades: mutável e antidogmático, prático e antimetafísico, secular e areligioso, livre e socializado, desorientado e oprimido, pervertido e angustiado.513 Esse século passa a receber uma forte caracterização pelos grandes conflitos sociais e delitos políticos514 que geram toda sorte de injustiça, alimentando a dilema da miséria e do sofrimento humano. O relativismo religioso da pós-modernidade atingiu incisivamente a fé na mediação única, reveladora e salvadora de Cristo no movimento da humanidade em direção a Deus, afetando sua credibilidade.515 Neste emaranhado de relações Jesus Cristo continua sendo o “meio simbólico de Deus para a fé cristã”,516 pois, olhando para a cruz, o ser humano pós-

511 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a ressurreição: a diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 117.

512 Cf. SCHILSON, Arno & KASPER, Walter. Cristologia: abordagens contemporâneas. São Paulo: Loyola, 1990, p. 20.

513 Cf. MONDIN, Battista. Antropologia teológica: história, problemas, perspectivas. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 69.

514 Cf. SAGHENI, Guido. A Idade Contemporânea: curso de história da Igreja IV. São Paulo: Paulus, 1999, p. 207.

515 Cf. DUQUOC, Christian. O único Cristo: a sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 19. 516 HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 233.

moderno, constata que a “evidência se transforma em pasmo: ela constitui a inconfundível „marca de sangue‟ dessa verdade descoberta.”517

2.4.1 Uma nova compreensão do sentido da morte de Jesus de Nazaré

A teologia contemporânea rompeu com a ideia de uma satisfação a Deus, mediante a crucifixão e morte de Cristo, realizada por nós e em nosso lugar, enquanto se podia perceber um fenômeno mágico.518

A exaltação excessiva da cruz, experiência verificada nos séculos anteriores, causou um grave dano ao considerar que a cruz era algo querido por Deus, sem levar em contar que esse querer divino significa apenas sua livre assunção dos fatos provocados pela liberdade do ser humano, passando por cima de um prévio e decidido „não querer‟ nada de mal para seu Filho.519

A concepção da morte de Jesus como um castigo de Deus para aplacar a sua ira e para reconciliar o mundo deu lugar, portanto, à reflexão de que essa morte foi um evento salvífico, aceito livremente por Jesus, por meio do qual o ser humano é reconciliado por Deus. Trata-se de uma virada teológica e antropológica520 cuja base de sustentação remete à teologia paulina (cf. Rm 5,10). Falar de Deus no atual contexto sócio-cultural significa falar, ao mesmo tempo, da salvação dos seres humanos.521

Os teólogos modernos e contemporâneos devem muito às reflexões teológicas de Schleiermacher, para quem a redenção não é apenas uma resposta ao pecado, mas a consumação e a perfeição da criação.

Redenção e reconciliação juntas perfazem, segundo Schleiermacher, o „ofício de Cristo‟. A consequência é que na reconciliação não se trata mais de uma influência de Cristo sobre Deus para aplacar a sua ira, mas, como na redenção, dos efeitos sobre os seres humanos.522

Esse pensamento influenciou a geração dos teólogos posteriores. Karl Barth, desenvolvendo sua soteriologia, define reconciliação usando a metáfora de Jesus Cristo como

517 TORRES QUEIRUGA, Andrés. Creio em Deus Pai: o Deus de Jesus como afirmação plena do ser humano. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 150.

518 Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática II. Santo André: Editora Academia Cristã Ltda; São Paulo: Paulus, 2009, p. 568.

519 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. Recuperar a salvação: por uma interpretação libertadora da experiência cristã. São Paulo: Paulus, 1999, p. 181.

520 Cf. GALVIN, John P. Jesus Cristo. In: FIORENZA, Francis Schüssler & GALVIN, John P. Teologia sistemática: perspectivas católico-romanas. Volume I. São Paulo Paulus, 1997, cap. 5, p. 402.

521 Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Jesús en nuestra cultura: mística, ética y política. 2. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2001, p. 12.

522 PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática II. Santo André: Editora Academia Cristã Ltda; São Paulo: Paulus, 2009, p. 567.

juiz que é julgado por nós: esse juiz assume nosso lugar como pecadores e é julgado em nosso lugar. Quando a criatura renega o Criador, perde-se a si mesma.523 Barth acentua que reconciliação é em si e unicamente um feito do próprio Deus e como tal se tornou acontecimento na morte de Jesus.524 Tal reconciliação patenteia-se na paixão e morte de Jesus. O foco da interpretação da morte de Jesus vai se ampliando, sem, contudo, se esquivar dos fatos da Sexta-feira Santa como o ponto de inflexão da história.525

Na esteira de Schleiermacher e Barth estão os teólogos da vertente evangélica: Rudolf Bultmann, Schubert Ogden e Paul Tillich. Nos dois primeiros, a salvação consiste no encontro existencial com Deus, em Jesus Cristo, e assim, somos justificados pela fé.526 Em Paul Tillich, há uma novidade ontológica que concebe a salvação como destinação de um novo ser. “A história da cruz de Jesus como o Cristo não relata um evento isolado em sua vida, mas aquele evento ao qual se encaminha a história de sua vida e no qual os outros recebem seu sentido.”527 Em Jesus as forças desagregadoras da existência foram vencidas e, por esse

motivo, ele se tornou o Cristo, no qual Deus salva, regenera, justifica e santifica. Quando o ser humano eleva-se a centro de si mesmo e do seu mundo, vive um processo que Tillich chama de queda.528

Merece destaque a cristologia da cruz que Moltmann desenvolveu para assegurar que o Crucificado encontra seu fim na ressurreição. Para este teólogo, nem a crucificação, nem a ressurreição têm um valor exclusivo, antes constituem o ponto de identificação do Cristo: na cruz e na ressurreição Jesus é e permanece o Filho de Deus.529 Walfhart Pannenberg, por sua vez, destaca que a morte expiatória de Cristo não nos preserva da morte terrena, mas nos preserva no juízo de Deus para a vida eterna.530

Karl Rahner aborda a questão do sofrimento humano como uma maneira concreta de participar da paixão redentora de Cristo, mas especifica que é preciso compreender que o

523 Cf. MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Editora Teológica; Paulus, 2003, p. 70.

524 Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática II. Santo André: Editora Academia Cristã Ltda; São Paulo: Paulus, 2009, p. 575.

525 Cf. HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 354 e 362. 526 Cf. Ibid., p. 371.

527 TILLICH, Paul. Teologia sistemática. Três volumes em um. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1984, p. 366.

528 Cf. MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Editora Teológica; Paulus, 2003, p. 125.

529 Cf. SCHILSON, Arno & KASPER, Walter. Cristologia: abordagens contemporâneas. São Paulo: Loyola, 1990, p. 97 e 102.

530 Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática II. Santo André: Editora Academia Cristã Ltda; São Paulo: Paulus, 2009, p. 584.

sofrimento não pode ser perpetuado. Constitui para o cristão um dever sagrado dizer „não‟ a este sofrimento humano, pois Deus quer a vida. Contudo, é preciso verificar o perigo de abdicar da cruz.531 A cristologia passa a ser abordada a partir do viés antropológico o que dá margem à presença-encanação de Deus em um homem concreto: Jesus de Nazaré.

O teólogo Edward Schillebeeckx enfatiza, frente ao desejo do ser humano de auto- redimir, o acontecimento da morte de Jesus de Nazaré, concebendo-o como uma parábola da salvação de Deus e paradigma de humanidade. “O anúncio cristão sobre o sentido salvífico da morte de Jesus na cruz remonta ao conteúdo básico da própria pregação de Jesus.”532 Uma vez

que o gênero humano é impotente para realizar a plena libertação de si mesmo deverá encontrar em Jesus Cristo sua única expressão emblemática.533 Sem a compreensão da mensagem e da prática de Jesus, a partir de sua morte e ressurreição, a cristologia pascal será apenas um mito, forçando a uma separação do mundo concreto e, portanto, despida da esperança.534 “Cristo dá satisfação ao Pai em nosso lugar e em nosso amor, por nossa desobediência e nossa irreligião.”535

A cruz também constitui perigo para nossas concepções arbitrárias, é juízo sobre os caminhos de nossa experiência do que significa ser-homem e ser- Deus. Revela-se na cruz de maneira suprema e definitiva a humanidade de nosso Deus, o núcleo da mensagem de Jesus sobre o reino de Deus: Deus que só chega a valer os seus direitos no mundo humano, na integridade e felicidade dos homens; inclusive através do sofrimento.536

Christian Doquoc, refletindo o sentido da morte de Jesus, conclui que a partir da constatação de que a novidade radical do Reino de Deus não criou raízes na vida de seus destinatários, Jesus se obrigou a aplicar a dimensão de futuro em seu anúncio e a integrar a sua morte no movimento de desarraigamento de um passado que freava a novidade de sua mensagem. Desde estão a morte de Jesus deixou de ser o desfecho de um mal-entendido e se tornou símbolo de um processo intentado por Deus.537

531 Cf. RAHNER, Karl. O homem e a graça. São Paulo: Paulinas, 1970, p. 202.

532 SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 165.

533 Cf. MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Editora Teológica; Paulus, 2003, p. 738.

534 Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. En torno al problema de Jesús: claves de una cristología. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1983, p. 127.

535 SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo: Sacramento do Encontro com Deus: estudo teológico sobre a salvação mediante os sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1967, p. 37.

536 ID. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 168.

2.5 A abordagem do tema da morte de Jesus na teologia latino-americana