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O primeiro capítulo desta pesquisa foi elaborado com a preocupação voltada para as causas históricas da morte de Jesus de Nazaré. O contexto sócio-político-religioso influencia decisivamente no comportamento das pessoas: como vivem, trabalham, pensam, agem e projetam. O Reino de Deus, a partir do qual os discípulos compreenderam o messianismo de Jesus e as autoridades judaicas e romanas o condenaram, foi vivido e anunciado na abrangência de um determinado lugar e tempo histórico.

Durante a pesquisa para este capítulo, estava latente o interesse em abordar as causas históricas da morte de Jesus. Consideramos que a hipótese mais plausível da condenação e execução sumária de Jesus, registrada por todos os evangelistas, foi fixada, no madeiro, acima de sua cabeça: “Jesus de Nazaré, rei dos judeus.”315

De acordo com as palavras de Jesus: “Serei eu um ladrão? Saístes para prender-me com espadas e paus!” (Mc 14,48b), há razões para admitir que esse foi o motivo – ao menos do ponto de vista do direito romano e do direito jurídico – para a prisão de Jesus. Deste texto também se pode deduzir que Jesus se defendeu da acusação afirmando não ser um revolucionário com planos políticos, mas um mestre: “Estive convosco no Templo, ensinando todos os dias, e não me prendestes” (Mc 14,49). Entretanto, Jesus foi preso, indiciado, condenado e executado sob essa acusação.

As autoridades de Israel não queriam perder seus privilégios, por isso, condenaram Jesus perante Pilatos. No Reino apresentado por Jesus os primeiros a serem privilegiados seriam os pobres, os excluídos do sistema social e religioso, as crianças e os pecadores. Isto explica porque o Reino causou tanta divergência nas opiniões: uns aceitaram, outros combateram. Os que aceitaram a realidade do Reino de Deus, tiveram que passar pelo crivo da morte de Jesus e conceber, a partir daí, a significação dessa morte para o Reino. Os que

314 Cf. HAIGHT, Roger. O futuro da cristologia. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 68. 315 Jo 19,19; Lc 23,39; Mc 15,25; Mt 27,37.

rejeitaram o Reino pensaram simplesmente que a condenação à cruz seria o bastante para suplantar as mensagens sobre o Reino.

Os Evangelhos atestam que as autoridades responsáveis e envolvidas no processo contra Jesus eram capazes de discernir, de escolher entre Jesus ou Barrabás e, portanto, poderiam optar pela independência nacional e pela própria identidade religiosa alimentada nos átrios do Templo. Qualquer que tenha sido a competência e as decisões tomadas por aquelas autoridades, o que é certo, porém, é que Jesus foi executado conforme o que dispõe o direito romano, pois os judeus não tinham autonomia para resolver assuntos políticos, nem condenar à morte na morte na cruz.

Com sua entrega total como doação de si mesmo na cruz Jesus pretendeu – assim seus seguidores o interpretaram posteriormente – dar profundidade à Aliança. O seu sacrifício sela uma nova Aliança firmada e ratificada no seu sangue. Tudo o que era antigo, se tornou novo. Assim, seus seguidores não tardaram em perceber que com a morte de Jesus chegou um novo tempo.

O gesto profético de Jesus fez-lhes compreender, graças à interpretação das Escrituras e da recordação de suas palavras, que o antigo culto do Templo de pedra chegou ao fim. Chegou o momento da nova adoração em espírito e verdade. Deve-se, portanto, ser abatido o Templo de pedra, para que se possa sobrevir a novidade, a Nova Aliança, celebrada no Novo Templo que é o próprio Jesus crucificado no altar da cruz.

A vida de Jesus não foi um fenômeno profético a mais numa província da Galileia. Sua ação reivindicadora da ação messiânica manifestada pelo grande número de milagres, realizados em público, o fluxo crescente de seguidores, suas palavras proféticas contra a estrutura do templo que deveria ruir e em seu lugar renascer um novo culto mais fiel aos ordenamentos de Moisés provam a autenticidade de seu existir como homem inteiramente dedicado a uma causa – a causa da vida abundante.

A condenação foi o desfecho da acusação de agitador de massas que divulgava a alternativa do Reino de Deus e, ainda, como “maldito por Deus” (Dt 21,23). O Reino de Deus e, portanto, o conjunto da mensagem de Jesus, não estava inteiramente de acordo com a Lei de Moisés, pois o Deus de Jesus não é o Deus da religião. A condenação à cruz foi uma resposta a este Reino. Desta forma, queriam desautorizar a sua pregação sobre o Reino e manchar sua auto-apresentação de Filho de Deus, de cumpridor fiel das promessas de Deus a Israel, seu povo predileto.

Os argumentos usados no processo contra Jesus não são mesquinhos, pois a novidade que o Profeta da Galileia apresenta um dilema: sua mensagem vem de Deus ou são

blasfêmias. Estava em questão o judaísmo tal como era concebido pelos chefes judaicos. A conclusão do processo dependeu do modo como foi encarado este dilema. O assunto, no entanto, não foi encerrado com a crucificação.

A condenação à morte foi uma tentativa de garantir que ninguém deve produzir desordem política ou religiosa. Diante desta prerrogativa, a inocência defendida pelo próprio Jesus não pareceu suficientemente capaz de produzir algum contrapeso na balança da estratégia política.

Tudo o que aconteceu a Jesus, no seu processo e na sua paixão, foi acolhido como o cumprimento da Escritura. Com base na Escritura foi possível compreender a morte de Jesus de Nazaré como sacrifício pelos nossos pecados, expiação completa da culpa humana e redenção definitiva.

Quando a Escritura foi aplicada aos acontecimentos ao entorno da paixão de Jesus uma nova luz acendeu na escuridão para lhes dar explicação e significado. Assim, tal morte não aconteceu por acaso, mas, enquanto acontecimento no contexto da história de Deus com seu povo, seu significado revela a lógica do cumprimento da Escritura, isto é, da vontade de Deus, cujo plano salvífico foi levado concretamente ao fim, até à máxima consequência como oferta total da Vida pela vida, do Filho pelos filhos. A Palavra dá crédito ao sacrifício do Filho, pois se cumpriu nesse acontecimento.

A Escritura revelou que a morte de Jesus acontece no contexto do serviço de expiação. E somente aí realiza a reconciliação e se torna luz para os povos, pois estava dentro da história e foi concretização da Palavra, mas ao mesmo tempo, representou rompimento e ultrapassagem da própria história.

A morte de Jesus, na verdade, foi um triunfo. A cruz “revela a Deus não apenas em si mesma, mas conjuntamente com o caminho histórico que leva Jesus à cruz.”316 A crucificação

deixou evidente a ideologia dos piedosos que dão mais importância às Leis do que ao ser humano. O fracasso aparente da morte não rompe a fé em Jesus e em seu Reino. Os acontecimentos que se seguiram à cruz confirmam que a experiência da ressurreição fez reviver que o sentido de fidelidade prevaleceu sobre a maldição da cruz e o sentido de filiação suplantou o abandono aparente. Assim, a ressurreição possibilitou a afirmação do mistério da vitória da vida sobre a morte. O sentido da morte de Jesus transcendeu o aspecto jurídico – seja romano ou judaico.

316 SOBRINO, Jon. Cristologia a partir da América Latina: esboço a partir do seguimento do Jesus histórico. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 212.

A subida de Jesus para Jerusalém para viver a sua Páscoa da sua morte e ressurreição (cf. Jo 12,1ss) tinha como meta a oferta de si mesmo até às ultimas consequências. Ele quis se entregar totalmente, sem reservas. Embora com medo, abandonou-se nas mãos do Pai. Esta oferta total de Jesus, o dom de sua Pessoa, substituiu todos os sacrifícios antigos.

A morte de Jesus tem sua significação política e religiosa decorrente de sua ação e de sua mensagem. A morte na cruz foi uma consequência histórica da vida de Jesus. Na cruz, Jesus experimenta os limites humanos: sua obra parecia desmoronar; ele desejou a solidariedade dos seus discípulos e clamou ao seu Pai. No entanto, foi corajoso até o fim: diante do Sinédrio ou diante de Pilatos deu testemunho de fidelidade ao seu Pai (Abbá) e ao Reino.

Na morte do Filho, Deus-Pai não só revela seu poder histórico, mas também seu amor histórico. O Pai entrega historicamente o Filho à morte (cf. Jo 3,6; 1Jo 4,9s) e nessa ação histórica mostra sua última essência como amor: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). “É na impotência da cruz que se revela a onipotência de Deus; é no abandono e no sacrifício da cruz que nós podemos adivinhar algo do modo propriamente divino da sua bondade.”317

Depois da morte de Jesus, os seus discípulos continuaram a se reunir para recordar as suas palavras e ensinamentos. Fizeram uma re-leitura dos acontecimentos e concluíram que Jesus era verdadeiramente o Filho de Deus, o Profeta, o Messias e o Servo Sofredor.318 Seu messianismo não era o que nacionalismo judaico aspirava. Jesus não fora derrotado, como queriam os seus opositores.

Podemos sintetizar afirmando, em caráter conclusivo, a partir deste aparato histórico da vida de Jesus de Nazaré em inteira relação solidária com seu contexto, que a morte de Jesus não foi por si, mas por nós. Ele não morreu por causa de suas faltas, por uma causa pessoal, mas por nós, pela humanidade, pela nova realidade já esplendidamente anunciada como Reino de Deus.

Refletindo sobre o modo como Jesus morreu, os discípulos encontraram luz para compreender a continuidade entre o Crucificado e o Messias. Assim, o conteúdo do Salmo 22 foi a chave de leitura para interpretar o silêncio de Jesus ao ser humilhado e ferido. Jesus era, portanto, o Cordeiro que, sem nenhuma culpa, foi arrastado ao matadouro. Estas imagens, extraídas do Antigo Testamento, iluminaram a superação do escândalo da cruz e esclareceram que a morte de Jesus foi „por nós‟ e „por nossos pecados‟ e que, portanto, não é maldição, mas

317 SCHILLEBEECKX, Edward. Deus e o homem. São Paulo: Paulinas, 1969, p. 243. 318 Cf. Mt 21,11.46; Lc 7,16; 13,33; Mc 6,15; Jo 6,14; 7,40.

salvação. Destas reflexões e desta fé neo-testamentária dependeu as interpretações posteriores.

O próximo capítulo tratará desses conceitos não somente ao interno das primeiras comunidades cristãs, mas também no decorrer das gerações que se seguiram até o tempo que se pode definir como hoje.