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2. Capítulo 2: Entre-lugar: conceito, escolha, “fenômeno” e caminhos

2.3. As Artes Cênicas: lugares e “entre-lugares”

Estes são, portanto, estudos sobre um possível posicionamento das artes cênicas na contemporaneidade, partindo de um olhar sobre o espetáculo “Coreografia de Cordel” da Cia. de Dança do Palácio das Artes. Tendo isso em vista, não se podem negligenciar um olhar mais amplo a estas mudanças de paradigmas das artes da cena de um modo geral na

contemporaneidade, paralelamente às alterações das ideias sobre o corpo e o pensamento metafísico ocidental.

Devemos lembrar que, além de origens comuns que bebem na fonte do expressionismo e transitam pela arte conceitual, de acordo com Pavis (2003, p. 40), as artes cênicas contemporâneas passaram a ter um caráter mais engajado “com seu contexto histórico, cultural, ideológico, a fim de não apresentar um vazio formal”, e o diálogo entre as disciplinas da Arte veio como consequência da pesquisa e busca por uma linguagem de expressão mais significativa para a subjetividade artística, uma vez que aqueles que interpretavam uma criação também são agora criadores. Esta busca se relaciona a uma nova concepção de mundo menos estrutural e disciplinar, e com a unificação pela corporeidade dos aspectos racionais e emocionais do corpo. Concepção que se abre à experimentação, o que vai além do objetivo de estruturar técnicas e sistemas.

Neste novo contexto, a Arte, enquanto área de conhecimento, busca sua autonomia não mais pela autossuficiência, mas pelo diálogo e apropriação de conceitos e teorias de outras áreas de conhecimento com as quais pode interagir bem como pelas relações que podem ocorrer entre suas subáreas. A Arte é elemento bordado por conceitos filosóficos, sociológicos, antropológicos, culturais. E o que difere atualmente as relações entre uma disciplina e outra é a capacidade de apropriação de uma por outra e, sobretudo, a possibilidade de se permearem mútua e transgressivamente, caracterizando a transdisciplinaridade.

Se Teatro e Dança, desde os seus primórdios, já se encontravam em suas fundamentações na expressão através das linguagens do corpo, na contemporaneidade podem ainda se mostrarem miscigenadas e transdisciplinares, em suas linhas de pesquisa e criação cênicas diante das necessidades expressivas próprias de cada corpo. Linhas estas que se confluem no corpo expressivo do artista, principal elemento da cena pós-moderna (PAVIS, 2003, p. 55), e tratam de questões da atualidade inter/transdisciplinarmente. Embora reconheçamos as particularidades de cada uma das disciplinas Dança e Teatro, reconhecemos pontos comuns e diálogos entre elas, dos quais surgiram linguagens transdisciplinares.

Chamamos aqui de linguagens transdisciplinares, pois, segundo Louppe (2000, p. 28), um hibridismo35 entre Dança e Teatro é um fenômeno que aparentemente já existia na dança clássica, e em alguns trabalhos contemporâneos pode aparecer pelo acúmulo de técnicas

35 Hibridismo: é a junção e dois ou mais elementos de origens diversas, sendo que, segundo Homi Bhabha (1998,

p. 165), “reverte os efeitos da recusa colonialista, de modo que outros saberes ‘negados’ se infiltrem no discurso dominante e tornem estranha a base de sua autoridade – suas regras de reconhecimento”, não pressupondo portanto o surgimento do novo, mas sim uma crítica à dominância de referenciais.

e misturas de referências, como quando se mistura movimentos de Cunningham com práticas marciais. Para ela, essas misturas muitas vezes até então funcionavam apenas superficialmente, sendo ilusórias. O que diferencia estas formações “híbridas” para o que se vê em espetáculos cênicos recentemente é que as relações disciplinares não se fazem apenas na cooperação fragmentada de linguagens na cena, com fins estéticos, mas ocorre no corpo, principalmente quando o artista que interpreta é também autor e, diferentemente de um hibridismo, as linguagens transdisciplinares são férteis e moldáveis criativamente. O corpo é então “mídia de si mesmo”, como enfatizam também Helena Katz e Christine Greiner (2005, p.130)36. Nele

linguagens e imagens se interpenetram e não são apenas uma enunciação formal, mas estão diluídas como referências de um corpo “produtor simbólico de sentido que escapa de modelos de corpos de uma semântica preestabelecida” (LOUPPE, 2000, p. 36).

São denominações para formas inter/transdisciplinares pelas quais as artes cênicas podem se apresentar: Teatro Físico, Dança-Teatro, Teatro-Dança, Performance, etc. E embora ainda existam debates sobre o que caracteriza uma forma ou outra, estas linguagens são já mais reconhecidas e estruturadas enquanto artes da cena. Portanto não buscamos diferenciar uma linguagem ou outra dentre estas denominações possíveis, mas olhar para os elementos da expressividade surgida entre as fronteiras de linguagem, entre formas originais e inter/transdisciplinares das artes da cena, baseando-nos no espetáculo “Coreografia de Cordel” da Cia. de Dança do Palácio das Artes. Não quisemos em momento algum dizer se ele se encaixa em uma ou outras destas linguagens, se possui mais elementos de Dança ou qual a porcentagem teria de Teatro, mas abordarmos as possíveis presenças de ressonâncias destas disciplinas neste espetáculo que se anunciam nas artes da cena de um modo geral na contemporaneidade, e falar sobre seus desdobramentos cênicos o espetáculo em questão, de acordo com nossos recursos de pesquisa.

Não foi tão relevante, então, “com que” linguagens se fizeram as cenas, mas, de certo modo, “como” se constroem os movimentos e gestuais expressivos sem um referencial técnico específico. Pois segundo o ator e diretor de Teatro Luiz Otávio Burnier (2001, p.18), “(...) para o artista, a questão do como é muitas vezes antecedida pelo com o que, com quais instrumentos: a mímica, a dança, o canto, a dicção”, mas nossa atenção se volta para o que Louppe (2000, p. 35) chama de meios de criação, mais do que o para o que seriam as

36 Helena Katz e Christine Greiner desenvolveram a Teoria do Corpomídia, segundo a qual “o corpo é mídia de si

ferramentas utilizadas enquanto referenciais técnicos. Buscamos compreender a este entre-

lugar que é território, corpo e linguagem do artista. Até porque se acredita aqui que diferenciar

ou caracterizar uma linguagem ou outra já reconhecida na contemporaneidade seria uma tentativa, falha, de encontrar lugares fixos, quando se quer dissertar sobre fronteiras móveis, fronteiras não delimitadas que se diluem no entre-lugar.

Este entre-lugar das artes cênicas é a projeção expressiva do entrelugar do corpo do artista em experiências que promovem “instabilidades, desterritorializações, não localidades” (DELEUZE, 1996 apud. AMARAL, 2009, p. 89). A experiência se amplia pelo corpo do artista, projeta-se na cena e estas projeções são advindas de percepções subjetivas, dos afetos e afetações do artista pelas relações entre sua expressividade e as linguagens possíveis para seu corpo.

O corpo em criação “cria uma fenda de luz” (FERRACINI, 2006, p. 6) onde são possíveis as mais diversas ações e relações, que aceita o convite às experiências diante do mundo:

Dizer "sim" ao corpo-em-arte em resistência e, ao mesmo tempo, dizer "não" ao corpo inativo, estratificado, disciplinado, passivo, buscando colocar esse corpo engessado em movimento criativo, em linhas de fuga e campos de intensividade. (FERRACINI, 2006, p. 6).

Isso significa que a cena contemporânea coloca em relação não apenas o artista com novas concepções de linguagens, mas relaciona as micropercepções deste artista e estes devires de linguagens às micropercepções de outro artista e do espectador. Esta talvez seja uma das principais formas de a arte contemporânea questionar o que é sistematizado e estabelecido. E talvez justifique também o porquê de ser relevante para o artista reconhecer o trânsito pelas relações deste entre-lugar além de simplesmente tentar nomeá-lo e/ou defini-lo na contemporaneidade.