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2. Capítulo 2: Entre-lugar: conceito, escolha, “fenômeno” e caminhos

2.1. Noções de relações disciplinares importantes para a ideia de entre-lugar

Na busca do reconhecimento deste território fronteiriço, borrado e permeado por micropercepções diversas, desde os processos criativos até os espetáculos já concebidos, encontrei territórios férteis, preenchidos constantemente por relações rizomáticas32 e efêmeras

entre as disciplinas Teatro e Dança; “(...) lugares diferenciados de expressão estética, que não se pretendiam configurar locais de ‘um’ nem de ‘outro’, mas de fazer brotar algo que estivesse riscado no diferente, no meio, no que brotasse das presenças instaladas, no entre-lugar” (BRAGA, 2011, p.2).

Neste território das artes da cena, múltiplas informações se encontram e se relacionam com as sensações no corpo do artista, sendo estas informações muitas vezes embasadas por conteúdos e princípios disciplinares e áreas do conhecimento específicas, os quais podem se relacionar de formas diversas. São, portanto, lugares, multidisciplinares por si só, pois neles habitam as disciplinas das artes cênicas, as áreas do conhecimento com as quais elas podem dialogar e as informações dos corpos dos artistas, meio de criação fundamental. Porém a multidisciplinaridade não pressupõe a cooperação e muito menos a transgressão dos limites entre estas disciplinas, apenas a existência simultânea delas em um mesmo espaço. Quando estas informações começam a se relacionar, é o tipo de relação entre elas que determina a formação deste lugar e suas expressividades.

32 Gilles Deleuze diz a respeito do conceito de Rizoma desenvolvido por ele e Félix Guattari: "(...) é precisamente

um caso de sistema aberto. (...). Todo mundo sabe que a filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é quando os conceitos são relacionados a circunstâncias e não mais a essências. Mas por um lado os conceitos não são dados prontos, eles não preexistem: é preciso inventar, criar os conceitos” (DELEUZE, entrevista publicada no jornal "Liberácion", em 23 de outubro de 1980). São portanto as relações rizomáticas tipos de relações não sistematizadas, as quais relacionam conceitos e disciplinas circunstancialmente de formas diversas e efêmeras, na criação e recriação de conceitos que também são efêmeros.

A Transdisciplinaridade pressupõe a articulação de elementos que passam entre, além e através das disciplinas. Para Domingues (2012, p. 5), “(...) sua índole é transgressiva, levando à quebra das barreiras disciplinares e à desobediência das regras impostas pelas diferentes disciplinas” (DOMINGUES, 2012, p. 5). Não ignorando a cooperação entre disciplinas que propõe a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade representa aqui a diluição de Teatro e Dança, enquanto disciplinas, e de suas formas híbridas já reconhecidas, na criação de algo que transgrida esta divisão entre uma disciplina e outra. Na interdisciplinaridade existe a relação de cooperação, mas não há transgressão de limites. A transdisciplinaridade é uma interdisciplinaridade intensificada pela transgressão.

A pós-disciplinaridade, por sua vez, sendo um termo que advém dos Estudos Culturais33 e dialoga com o pensamento pós-estruturalista, faz alusão àquilo que, a partir de uma relação inter/transdisciplinar, transgrida a noção de disciplina a partir do descentramento e da desconstrução destas forças disciplinares. A pós-disciplinaridade, segundo Marcos Aurélio Santos Souza (2007, p.2), pesquisador da Universidade de Brasília, é uma das principais características do entre-lugar, uma vez que ele não nega, mas representa um produto da diluição das estruturas disciplinares. Ele explica que

(...) deslocar, descentrar, descontruir significam dar visibilidade, reforçar as ideias de lugar, centro e construção. Para (Michel) Foucault e (Jacques) Derrida – autores pós- estruturalistas – é mais interessante do que simplesmente negá-las, mesmo porque algo só pode ser contrariado ou atacado se visto, e bem visto (SOUZA, 2007, p.5).

Tendo isso em vista, também em Dança observamos esta ideia de afirmação pela diluição formal, como quando Merce Cunningham e John Cage, na tentativa de negarem sistematizações técnicas constroem uma nova metodologia de criação, a qual desloca o referencial de criação e de dramaturgia do enredo ou dos sentimentos para o acaso e o movimento em si, descentra os referenciais técnicos em prol da pesquisa corporal, e desconstrói relações como a interdependência entre dança e música.

Com outras dimensões e configurações, são observadas desde então nos trabalhos de Dança pós-modernos estas características do entre-lugar pós-disciplinar. A própria desconstrução do dualismo corpo e mente no século XX e o descentramento dos processos de construção do conhecimento e das percepções de mundo pela corporeidade colaboram para uma visão de um corpo permeado pela inter/transdisciplinaridade de informações e ideias e dotado

33 Os Estudos Culturais se ocupam com as experiências e relações interculturais formadoras das civilizações,

de uma expressividade que projeta de alguma forma o reflexo desta confluência de vivências, conceitos, técnicas, memórias. Então

(...) a casa ela mesma não é a casa vista de nenhum lugar, mas a casa vista de todas as partes. O objeto acabado é translúcido, é penetrado de todos os lados por uma infinidade atual de olhares que se recortam em sua profundidade e não deixam nada escondido aí (MERLEAU-PONTY, 1994, p.82).

Em outros termos, nada existe por si só, mas depende da forma como é idealizado, criado, visto e apreendido pelas pessoas. A casa não é definida pela soma de suas características objetivas, mas pela diversidade de olhares sobre ela. E se o reconhecimento de algo se relaciona com as relações perceptivas que ele desperta, sua idealização e criação também carregam projeções perceptivas de seu criador.

A criação aqui é vista como a projeção de um entrelugar pós-disciplinar que é a corporeidade do criador, ou, nas Artes, a corporeidade do artista. O deslocamento do foco de criação artítica do referencial técnico para o corpo do artista, a valorização desta corporeidade como meio de criação pela pós-modernidade cênica encaminha, muitas vezes, para o descentramento das disciplinas na criação pela expressividade própria de cada artista. O olhar para as relações com o espectador e suas percepções sobre a obra também descentra a ação do fazer artístico e/ou da criação de subjetividades para reconstruções transdisciplinares em um corpo que frui a obra de arte. Desconstrói-se, juntamente com a desconstrução do pensamento cartesiano sobre o corpo, o modelo estruturalista de mundo, de conhecimento, de criação em artes.

A pós-disciplinaridade é aqui identificada como algo inerente ao corpo do artista- sujeito, e se projeta cenicamente em uma linguagem que se encontra em um entre-lugar artístico percebido por outros entrelugares corpóreos dos espectadores, o que é observado em “Coreografia de Cordel”.