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Capítulo V – Análise das Aulas

V. 2.3 As aulas da professora Débora

Desta professora foram gravadas em vídeo um total de 06 horas-aula, durante duas semanas consecutivas, já que a carga horária da disciplina era de 4 horas-aula

semanais, divididas em dois dias. Para a análise microscópica usamos apenas as duas primeiras aulas, ou seja, usamos um total de 1h 30min 06s de vídeo, cujo conteúdo foi a estabilidade de carbocátions. Estas aulas foram gravadas no mês de setembro, no início do segundo mês de aulas na disciplina. Para a análise das aulas desta professora, a categorização foi feita diretamente sobre a imagem em vídeo, o que permitiu levar em conta não só a linguagem verbal, mas um conjunto de modos de comunicação empregados pela professora.

Para entender como as aulas da professora Débora se organizam, na sequência didática, novamente iniciamos a demarcação dos episódios analisando sua disposição temporal. A construção do mapa de episódios (Anexo 12) permitiu elaborar uma ideia inicial de como a aula é segmentada em uma série temporal.

Assim como nas aulas da professora Rosa, os exercícios são parte importante das aulas da professora Débora e, por isto, a cada vez que um novo exercício era proposto, um novo episódio foi demarcado. Durante as sequências em que a professora Débora explicava o conteúdo, usamos como pistas contextuais (contextual cues) os marcadores de fronteira de Gumperz (1992), que foram, principalmente, o uso da palavra ―bom...‖ seguida de uma pequena pausa.

As aulas da professora Débora se referem a conteúdos considerados, tanto pelos estudantes quanto por alguns pesquisadores, como difíceis, envolvendo conceitos de estereoquímica para o entendimento de algumas reações orgânicas. Esta também foi uma característica do conjunto de aulas da professora Rosa.

a) Os episódios

Os episódios de conteúdo da professora Débora também foram categorizados com base no que entendemos ser a função do conteúdo trabalhado, ou seja, de acordo com a intenção da professora ao apresentar aqueles conteúdos.

Tabela 15 – As categorias de episódios construídas a partir da análise da aula 1 da professora Débora

Categoria de Episódio Número de

episódios Tempo Organização e manejo da classe 7 4min e 42s

Agenda 1 28s

Conteúdo: desenvolvimento 20 49min e 03s

Conteúdo: fechamento 5 5min e 01s

Exercício 12 29min e 07s

Modelagem 02 1min e 45s

TOTAL 47 1h, 30min e 06s

Podemos observar que a categoria conteúdo foi a que usou maior tempo da aula. A categoria seguinte, em número de episódios, é a de exercício. Entre os episódios de exercício há os que envolvem o tempo do estudante (9min e 34s) e os que envolvem o tempo de correção no quadro (19min e 33s). Porém, durante o tempo do estudante, a professora escreve o exercício no quadro e vai explicando ou se dirige aos estudantes para que os mesmos relembrem o conteúdo do livro, lido anteriormente à aula. Portanto, não chegam a ser episódios de exercício com tempo exclusivo para os estudantes.

As estratégias usadas pela professora e vislumbradas a partir da construção do mapa de episódios são descritas a seguir:

b) As estratégias

b.1) A organização da agenda

Ao usar o discurso em sala de aula o professor espera dos estudantes a compreensão desse discurso. Considerando Bakhtin (2003a), sabemos que toda a compreensão da fala viva, do enunciado vivo, é de natureza ativamente responsiva (p. 271). Porém, o próprio Bakhtin admite que esta resposta pode se manifestar por ações ou pode permanecer como compreensão responsiva silenciosa, o que representaria uma compreensão responsiva de efeito retardado. Isto pode significar que, ao entrar em contato com o enunciado do outro, o sujeito pode estar em um processo interativo, mesmo que não o represente em voz alta ou em ação subsequente.

Embora a professora Débora use um discurso não interativo e de autoridade na sala de aula, é provável que a agenda rigorosa por ela imposta produza interações dos

estudantes com o conhecimento, ou algum ato de significação. Nesta análise discutimos um conjunto de estratégias de agenda, usado pela professora, para situar os interlocutores no contexto geral da conversação, mantendo e regulando o contato dos estudantes com a ciência e com os temas desenvolvidos em sala de aula.

Na primeira aula da disciplina – que não faz parte do conjunto de aulas gravadas em vídeo, mas que foi assistida pela pesquisadora – a professora entrega o programa da disciplina e impõe a agenda, explicando-a minuciosamente. Nela ficam explícitas quais são as responsabilidades dos estudantes para com a disciplina, as quais analisaremos brevemente.

A disciplina está dividida em onze itens de conteúdo, distribuídos nas quinze semanas de aula. Na primeira aula de cada um destes temas os estudantes terão que ter lido o conteúdo, conforme os livros didáticos já indicados, e entregar, no início da aula, um resumo ou o que a professora chamou de questionário. Este questionário consiste na elaboração de uma questão sobre o conteúdo, com a respectiva resposta. A professora Débora está colocando o livro didático como interlocutor, provavelmente para iniciar o processo de aculturação dos aprendizes na ciência, antes mesmo da aula acontecer. Ao envolver os estudantes em uma leitura prévia do conteúdo, pressiona-os para que se aproximem do contexto do qual ela fala. Assim, o processo desencadeado durante a aula consiste em um segundo contato com os conceitos e, portanto, uma reelaboração conceitual.

Nas gravações de aulas em vídeo, que envolviam uma parte específica deste conteúdo, foi possível perceber que os estudantes atenderam a orientação da professora. Na primeira aula, assim que chegavam à sala, entregavam à professora o resumo/questionário, que era guardado por ela, para posterior análise.

Na primeira aula gravada em vídeo, a professora entregou aos estudantes uma lista com os tópicos principais a serem trabalhados, divididos em subitens, sendo cada um deles acompanhado da representação química relativa ao mecanismo de reação que seria discutido naquele tópico. Outra lista entregue foi de exercícios. Para cada um dos tópicos trabalhados eram indicados alguns exercícios pela professora, para que o mecanismo em questão fosse aplicado. Certamente esta é uma estratégia que só trará resultados satisfatórios quando os estudantes já tiverem uma ideia do conteúdo.

Outro conjunto de atividades de interação com o conteúdo foram definidas na primeira aula da disciplina. Uma delas se refere a uma lista de substâncias químicas para as quais os estudantes deveriam ir montando as estruturas químicas, em horário

extraclasse. Este trabalho deveria ser entregue em uma data que foi agendada e que era próxima ao final do primeiro bimestre.

Além desta atividade, o sistema de avaliação do professor exige que os estudantes se mantenham atentos aos conteúdos e dediquem algumas horas de estudo semanais para tal. No período de quinze semanas foram agendadas 05 provas e 10 testes. As provas abrangeriam todos os conteúdos já trabalhados, sendo, portanto, cumulativas. Os testes seriam realizados geralmente no início das aulas e durariam cerca de quinze minutos. Durante a filmagem do conjunto de seis aulas, divididas em três dias, no segundo e terceiro dias os estudantes foram submetidos a estes testes.

Ao forçar os estudantes a desenvolverem várias atividades extraclasse, a professora certamente está esperando que os aprendizes sejam envoltos em um processo interativo, provocado pela leitura prévia do conteúdo, por sua explanação em sala de aula e por uma leitura posterior, que prepare o estudante para provas/testes.

b.2) Inclusão de outros modos semióticos

Certamente a maioria de nós, professores, já passou pela experiência de que, ao entrar em uma sala de aula cujo ambiente está descontraído, os estudantes mudam imediatamente de postura, de forma a aguardar a orientação do professor. Isto pode ser considerado um exemplo de que a entrada do professor em sala de aula está carregada de significados. O professor não precisa avisar que a aula vai começar, pois isso já está subentendido quando os estudantes mudam de postura e/ou silenciam. A ciência que estuda o processo de significação ou os mecanismos mentais que conduzem a determinado entendimento chama-se semiótica.

Para o conjunto de aulas da professora Débora, dirigimos o olhar para um dos modos semióticos mobilizado pela professora, que auxilia na construção de determinados conceitos. Este consiste no uso de modelos de estrutura molecular do tipo bola-vareta.

Selecionamos um dos episódios no qual este modelo é usado. Ao fazer um exercício de mecanismo de reação em que ocorria uma inversão na configuração da molécula, a professora usa o modelo bola/vareta e, nele, mostra o que seria a migração que ocorre nos grupos substituintes, comparando com o modelo bidimensional desenhado no quadro de giz. A Figura 11 mostra a comparação feita entre os modelos

bidimensional e o tridimensional e a Figura 12 mostra o momento em que o professor usa o modelo para mostrar a inversão.

Figura 11 – Comparação feita pela professora Figura 12 – Inversão explicada no modelo trid., Débora entre os dois modelos. pela professora Débora.

O modelo bola/vareta, mesmo no curso superior e em uma disciplina de conteúdo avançado, pareceu ser útil aos estudantes na construção de significados. Apesar de a aula ser pouco interativa, conforme classificação usada por Mortimer e Scott (2003), um estudante confirma a expectativa da professora com o uso dos modelos.

Professora: Quando vocês leram essa parte do intermediário... em ponte... tinha ficado alguma dúvida? Humm?

Estudante: Tinha... ali na configuração... agora deu pra perceber (o que é) a inversão e a retenção.

Professora: Ficou claro agora?

Estudante: (confirma com movimento da cabeça)

Professora: Eu pedi pra vocês lerem, porque na hora em que a gente fala você pensa em qual foi sua dúvida e coloca ....

Trata-se do uso de outro modo semiótico que não apenas a fala e a escrita. De um modo verbal e visual, quando fala e desenha o modelo no quadro, passa para um modo gestual/ação, representado pela manipulação de bola/vareta, com o qual mostra a migração do radical de um carbono para outro carbono e a inversão que acontece nas ligações do carbono que recebe o radical.

b.3) Clareza na agenda ou contrato pedagógico

Na relação ensino-aprendizagem, o contrato consiste na definição do número de aulas, do horário, do conteúdo, do livro-texto, da metodologia de trabalho em classe, das tarefas e responsabilidades dos estudantes e do professor, da disponibilidade para

atividades paralelas, das regras e instrumentos de avaliação entre outros. Apesar de, neste caso, ser uma agenda imposta pela professora Débora, fica muito claro quais são as responsabilidades dos estudantes para com a disciplina curricular.

Villani (1999) argumenta que a importância do contrato pedagógico pode ser percebida sobretudo nas situações nas quais a falta de sua explicitação conduz a impasses na relação entre professor e estudantes, cada qual com expectativas diferentes. Ao explicitar o contrato pedagógico, a professora elenca uma série de responsabilidades ao estudante. Este, caso não cumpra as tarefas constantes no contrato, pode fracassar na disciplina. Neste caso, a responsabilidade pelo fracasso pode facilmente ser vinculada ao não cumprimento da agenda, inclusive pelo próprio estudante.

O fato de os estudantes avaliarem positivamente a professora Débora pode, então, estar relacionado à clareza da agenda imposta no primeiro dia de aula e à percepção dos estudantes de que alcançam os objetivos da disciplina quando fazem a interação com o conteúdo em atividades extraclasse, conforme exigência da professora.