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AS CARACTERÍSTICAS DA SOBERANIA NO REGIME DA BIODIVERSIDADE

CAPÍTULO IV: O PRINCÍPIO DA SOBERANIA NA CONVENÇÃO SOBRE

3. AS CARACTERÍSTICAS DA SOBERANIA NO REGIME DA BIODIVERSIDADE

Considerando-se que o princípio da soberania estatal adapta-se aos ditames das ações da comunidade internacional, sendo em alguns momentos reafirmado, como no tocante à soberania permanente sobre os recursos naturais, e noutros minimizado em virtude de interesses maiores, nomeadamente a defesa dos direitos humanos, pode-se afirmar que os Acordos Multilaterais Ambientais não se revestem das características tradicionais do poder soberano, pois este é inadequado à solução dos problemas ambientais globais.420

Klemm e Shine421 atestam a dificuldade para elaborar regimes jurídicos internacionais ambientais, devido à consolidação marcante do princípio da

418 BARROS -PLATIAU, Ana Flávia. A legitimidade da governança global ambiental e o princípio da

precaução.In: VARELLA, Marcelo Dias; BARROS -PLATIAU, Ana Flávia (orgs). Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 401-415. p.405.

419 PELLET, Alain; DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen. Direito Internacional Público. 2ed (7. ed

francesa). Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 1334.

420RAMLOGAN, Rajendra. The environment and international law: rethinking traditional approach.

Vermont Journal of Environmental law. Op. cit.

421 KLEMM, Cyrille de; SHINE, Clare. Droit international de l´environnement: diversité biologique.

soberania (liberdade de exploração) entre as nações. Não obstante, contemporaneamente os Estados aceitem cada vez mais que o exercício do seu direito soberano não é absoluto, mas ao contrário, limitado.

A expansão da concepção absoluta da soberania pode ter valor no cenário político, mas na realidade nunca foi aventada pelos teóricos, pois, embora a caracterizassem como absoluta, não deixavam de lhe estabelecer limites. Um poder sem limites será vislumbrado, por exemplo, nos Estados totalitários.

Contemporaneamente, a soberania dos Estados não equivale a uma liberdade absoluta em matéria política ou jurídica; é limitada pela Carta das Nações Unidas, bem como por alguns princípios de direito internacional, como demonstrado no item anterior. Os direitos humanos e ambientais globais limitam e condicionam a soberania dos Estados, mas não implica na abolição dos sujeitos nacionais. De acordo com Almino, os Estados sem abdicar de sua soberania e livre para atuar assumem compromissos para solucionar problemas globais, pois “justamente por serem globais, seriam também seus”.422

Os conceitos de soberania, concebidos nos séculos XVI e XVII, estabeleciam algumas restrições ao livre exercício do poder pelo Rei. 423 A Carta das Nações Unidas fixaram outros limites à soberania dos Estados. Entretanto, os limites propostos pelo regime ambiental, em especial pelo de biodiversidade, diferem um pouco destes.

Uma sociedade internacional e o próprio DIP não seriam possíveis sem os limites impostos à liberdade dos Estados. No regime da biodiversidade não foi

422 ALMINO, João. Naturezas Mortas: a filosofia política do ecologismo. Brasília: IPRI, 1993. p. 95. 423 (FOREST PEOPLES PROGRAMME. Les droits des peuples autochtones, la souveraineté des

États et la Convention sur la diversité biologique. 2004. Disponível em: <http://www.fern.org/media/documents/document_831_833.pdf>. Acesso em: 29 de outubro de 2005)

diferente. Foram estabelecidos parâmetros para a atuação soberana dos Estados. De um lado se reconheceu a soberania destes sobre sua biodiversidade, mas, do outro lado, foram fixadas a responsabilidade, o dever de prevenir, de cooperar e de informar sobre os danos ambientais.

Em síntese, a CDB adota a soberania responsável e cooperativa dos Estados, ou seja, a liberdade das Partes para utilizarem sua biodiversidade, esta pautada no interesse comum da humanidade424 e no desenvolvimento sustentável. O DIP evoluiu de um direito de coexistência entre os Estados para um direito de cooperação com novas responsabilidades.

424 Conforme Kiss, o interesse comum da humanidade reforça a responsabilidade dos Estados para com a

preservação do meio ambiente. (KISS, Alexandre. Droit international de l’environnement. Paris:

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O termo “soberania” adquire diferentes significados, a depender dos interesses e atores debruçados no estudo da questão. Em alguns momentos, é tido como absoluto, em outros, como relativo, como responsável ou ainda como inexistente. Compreender o conceito de soberania e suas características, com base no regime da biodiversidade, foi uma das tarefas deste trabalho.

O conceito de soberania surgiu no século XIV, com a obra de Jean Bodin. Ele definiu o poder soberano como perpétuo, absoluto, indivisível, inalienável, todavia, estabeleceu limites, como o respeito às leis naturais e divinas. Posteriormente, no século XVI, Grotius considerou o poder soberano do Estado alienável, não perpétuo, indivisível e absoluto. Ele aceitou os limites impostos por Bodin, e afirmou que o Estado deve observar o Direito Natural, as leis de Deus e o Direito Internacional.

Hoje, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do Direito Internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar os seus próprios recursos, na aplicação da sua própria política ambiental. Contudo, tem também a responsabilidade de assegurar que as atividades sob a sua jurisdição ou controle não prejudiquem o ambiente de outros Estados ou de áreas situadas fora dos limites da sua jurisdição. A soberania do Estado se estende desde a área terrestre, incluindo as águas interiores, até o mar territorial e os fundos marinhos. Nessa área, o Estado é a autoridade máxima e exerce o poder exclusivamente, mas seus direitos estão cada vez mais limitados e seus deveres se ampliando.

Verifica-se que, mesmo após a elaboração de políticas internacionais de proteção ao meio ambiente, a perda de biodiversidade prossegue, a desertificação e o desflorestamento se intensificam, os efeitos adversos da mudança do clima e os desastres naturais tornam-se mais evidentes.

O regime internacional de proteção da biodiversidade não foge ao movimento contemporâneo de reconhecimento e limitação do poder soberano do Estado. A transformação de um bem ambiental em patrimônio comum da humanidade, e a responsabilidade exigida do Estado quanto à gestão de seus recursos, restringe sua independência para utilizar os recursos naturais, ainda que dentro do seu território. Diversamente, reconhecer a soberania dos Estados sobre determinados bens ambientais garante, juridicamente, sua independência e autonomia.

A soberania jurídica dos Estados para utilização e preservação da biodiversidade está resguardada pela Convenção- Quadro sobre Diversidade Biológica e na Declaração de Princípios. Contudo, este Tratado contempla limitações como o dever de conservá-la para as gerações presentes e futuras, explorando-a de modo sustentável, além de não provocar danos nos territórios vizinhos.

No regime de acesso aos recursos genéticos identifica-se o fortalecimento da soberania, já que o Estado atua de modo mais intenso, estabelecendo regras e legislações sobre acesso, e afastando as comunidades locais que tiveram seu importância reconhecida na CDB, na Declaração de Princípios e na Agenda 21. Por outro lado, a liberdade estatal é restringida por suas obrigações de cooperar, de facilitar, para outras Partes da Convenção, o acesso aos seus recursos genéticos; de transferir tecnologia; de promover a repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos do acesso. Assim, a soberania é ao mesmo tempo preservada e balizada juridicamente na Convenção da Diversidade Biológica.

Por fim, ao refletir sobre a relação entre soberania e meio ambiente, constata-se que o aumento da interdependência global diminui o grau de liberdade estatal, ou seja, a soberania deixou de ser absoluta, mas o Estado ainda é independente para gerir sua biodiversidade mediante normas jurídicas mais especificas e eficazes.

A independência estatal é reafirmada na CBD, ao se reconhecer o poder soberano dos Estados para explorar sua diversidade biológica e determinar o acesso, ao se estabelecer que as decisões nas COPs serão mediante consenso. Entretanto, o dever de cooperar, de prevenir, de precaver, de se responsabilizar pelos danos ambientais transfronteiriços restringiu, significativamente, o âmbito de liberdade do Estado.