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Capítulo 3 – ASPECTOS DA TRANSMISSÃO MUSICAL DOS TUPINAMBÁ

3.2. Experiência musical

3.2.3. As cerimônias femininas

Como discutido no capítulo anterior, nos diversos momentos do ritual antropofágico, havia diversas práticas musicais. Fato comum em todos esses momento era a maestria de uma mulher velha (uainuy) e a presença de crianças. Essa maestria parece estar ligada mais a uma presidência, uma condução da cerimônia, do que efetivamente uma mastreia como discutido no primeiro capítulo deste trabalho.

Tal presidência não se dava pelo simples fato dessa mulher ser velha, mas pelo fato dela ter vivenciado diversas práticas culturais durante sua vida e acumulado diversos saberes, conferindo-lhe assim a capacidade de presidir cerimônias. Évreux (op. cit.) relata que as mulheres velhas ensinavam o que aprenderam às moças.

Figura 52 – Mulheres cantando e dançando ao redor do cativo Staden

Fonte: DE BRY apud MÉTRAUX, op. cit., p. 88.

Ao falar de cantos de ninar Mbyá-Guarani, Stein observa uma semelhança no modo de cantar entre mulheres da mesma família, que revelaria “um caminho de ensinamentos que talvez se desenhe pelos laços femininos de avó, mãe e filha” (2009, p. 257).

Nas representações desses momentos, figuras 38, 39, 41, 42 e 52, é possível reconhecer representações de crianças que são carregada em typoyas possivelmente por suas mães ou correspondentes. Essas crianças, peitan, podiam ser de ambos os sexos.

Sendo esta prática exclusivamente feminina, não descarto a presença de mulheres de diversas idades.

As crianças do sexo feminino começavam a vivenciar essas práticas musicais desde cedo, ainda no colo, ou melhor, na typoya de suas mães, e essa participação continuava pelo resto de sua vida, enquanto as cerimônias fossem celebradas. A criança se tornaria uma jovem mulher, uma mulher madura até se tornar uma mulher velha, que, por vivenciar diversas vezes essas práticas, acumularia os saberes pertinentes a cada prática, permitindo assim que esta presidisse tais cerimonias.

Como argumentei em relação aos cantos guerreiros, as peças vocais aprendidas na infância seriam semelhantes as executadas agora na velhice. Isto porém não fecha o repertório de canções, haveria abertura para criação e recriação de canções, mas que guardariam relação com as antigas.

3.2.4. Os pássaros

Conforme abordei no segundo capítulo, os Tupinambá imitavam diversas espécies de pássaros. Esta imitação dos Tupinambá parece estar mais próxima das mencionadas entre grupos Guarani (MONTARDO, op. cit., loc. cit.; STEIN, op. cit., loc. cit.) e dos Kaluli (FELD apud MONTARDO, op. cit., loc. cit.) do que dos Kisêdjê (SEEGER, op. cit., loc. cit.).

Montardo (apud DALLANHOL, 2002, p. 124) fala sobre a essencialidade do ouvir no processo de aprendizagem guarani, enfatizando que neste ouvir estariam englobados os sons produzidos por pássaros, árvores, córregos, outros elementos do mato e do sonho. Dallanhol diz que “é preciso estar atento para entender e aprender o que esses outros sons ou o que se vive durante o sonho ensinam” (idem).

A relação de alguns cantos destes grupos (Tupinambá, Guarani, Kisêdjê e Kaluli) com os pássaros é diferenciada, mas há claramente uma aprendizagem musical por todos eles. 3.3. Para além dos sons: confecção de instrumentos musicais

Os saberes musicais estão para além dos sons, envolveriam também conhecimentos para a confecção dos instrumentos musicais. As fontes não citam abertamente, mas através de diversos relatos e imagens é possível presumir que houvesse a participação dos mais jovens durante a confecção dos instrumentos.

Rodrigues argumenta que

fazer música, cantar, tocar instrumentos musicais, assim como confeccioná-los, são processos aprendidos dentro de um grupo social e cultural, daí a compreensão de que podemos entender os processos de ensino-aprendizagem envolvidos na confecção de instrumentos musicais (2015, p. 174).

Duarte (2014), ao falar do conhecimento indígena para a confecção de instrumentos musicais, aponta para um “saber-fazer” (ibid., p. 41), que, segundo este autor, é transmitido de geração para geração por um longo processo de aprendizado que se inicia bem cedo, ainda durante a infância.

Segundo Rodrigues, entre os Apinayé o processo de aprendizagem de confecção de artesanato, os instrumentos musicais inclusive, ocorre no núcleo familiar: “para aprender a

confeccionar um instrumento musical é necessário que haja um homem Apinayé que domine este saber, que usualmente habite a mesma casa do aprendiz e que esteja disposto a ensinar” (op. cit., p. 189).

Esse aprendizado no núcleo familiar entre os Apinayé pode ser explicado pela própria observação de Rodrigues, de que este grupo “não têm a tradição de ter uma casa dos homens para se reunir, socializar, ensinar e aprender” (idem).

Como já apresentei, as fontes históricas apontam para a transmissão de saberes entre pais e filhos, mães e filhas, aqui também se incluiria a confecção dos instrumentos musicais.

Segundo Abbeville (op. cit.), os Tupinambá eram muito engenhosos na fabricação de artefatos que usavam para a caça, pesca, guerra e outras atividades. Como apresentado no capítulo anterior, eram engenhosos também na fabricação dos instrumentos musicais.

Na figura 26, que representa um momento de confecção do uaí, temos três indivíduos: um adulto portando um maracá e com uaí em ambas as pernas; um segundo adulto unindo os frutos da árvore em uma linha, provavelmente feita de algodão; o terceiro indivíduo, claramente uma criança do sexo masculino, está auxiliando o segundo adulto na cofecção do instrumento. A criança está com os braços flexionados segurando um uaí, provavelmente parcialmente confeccionado.

A figura 24 representa um momento de colheita do fruto da árvore cohyne para confecção do maracá. Na figura reconhecemos três indivíduos: um homem colhendo os frutos, uma criança auxiliando este homem e uma mulher realizando uma etapa diferente com o fruto, provavelmente preparando-o para a confecção do maracá.

O aray dos Araweté, ao lado do fumo, é o “emblema” principal do xamã (VIVEIROS DE CASTRO, 1986). Segundo Viveiros de Castro (idem) esse instrumento corresponderia ao

maracá tupinambá, só os homens casados o possuíam. A estrutura interna do aray é confeccionada pelas mulheres e o acabamento pelos homens (idem).

No caso dos Tupinambá, talvez houvesse trabalhos femininos e masculinos na confecção do maracá. Mas o que aqui interessa é a presença da criança auxiliando o homem, provavelmente seu pai, na colheita dos frutos para posterior confecção do maracá.

A criança, em ambas as imagens, seria um Kunumy, dos sete aos quinze anos aproximadamente, pois era nesta fase que os indivíduos do sexo masculino acompanhavam os pais, aprendendo os conhecimentos necessários à vida social.

Esta análise apontaria para o “saber-fazer”, conforme proposto por Duarte (op. cit., loc. cit.), a transmissão dos conhecimentos necessários à confecção dos instrumentos musicais pelos mais velhos aos mais novos, transmissão iniciada na infância. Tal saber-fazer, entre os

Tupinambá, aconteceria no cotidiano dos indivíduos. Este saber-fazer se ligaria com o que Stein (2009) chamou de aprendizagem no fazer entre os Mbyá-Guarani, o aprender fazendo verificado por Dallanhol (2002) também entre os Mbyá-Guarani.

Rodrigues fala sobre a importância dos objetos musicais apinayé, bem como da transmissão do conhecimento de como confeccioná-los, apontando como estes artefatos “fazem parte da manutenção social e sobrenatural e do fortalecimento cultural deste povo” (2015, p. 194).

A partir da leitura das fontes sobre os Tupinambá, que revelam os aspectos do saber- fazer instrumentos musicais, fica claro também, como entre os Apinayé (RODRIGUES, op. cit., loc. cit.), como eles faziam parte da manutenção social e sobrenatural e do fortalecimento cultural dos Tupinambá.

Busquei neste terceiro capítulo abordar especificamente os aspectos da transmissão musical entre os Tupinambá, tarefa que, como disse na introdução deste trabalho, só foi possível após a construção dos dois primeiros capítulos. Utilizei alguns estudos etnomusicológicos sobre sociedades indígenas que tratam de aspectos da transmissão musical nestas mesmas sociedades.