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Capítulo 3 – ASPECTOS DA TRANSMISSÃO MUSICAL DOS TUPINAMBÁ

3.1. Aprendizagem, observação e imitação

3.1.2. Os velhos tupinambá

Ao pesquisar o status dos velhos nas sociedades nas TBAS na década de 1970, Seeger (1980) mostrou-se surpreso com o pouco conhecimento e a escassez publicações sobre o assunto. Tal cenário pode ter mudando consideravelmente desde esta constatação. Ao tratar de saberes nestas sociedades, considero ser indispensável abordar esta faixa etária.

Dallanhol aponta que

há consenso entre os autores de que a transmissão dos saberes indígenas se realiza por via oral, no convívio diário entre as gerações, e os mais velhos destacam-se por serem portadores dos conhecimentos das técnicas e das tradições tribais (2002, p. 115).

Entre os Tupinambá, o trabalho para os thuyaue (homens velhos) era facultativo, no entanto, trabalhavam espontaneamente conforme suas forças. Faziam isso por tradição, para servirem de exemplo para os mais novos (FERNANDES, 1989); iniciavam os cantos – alguns destes cantos, pelo menos – começando com uma forte e grave, conforme informa Évreux (op. cit.). Eram as uainuy (mulheres velhas) que começavam o choro e lamentações (ÉVREUX, op. cit.) e “eram elas as mestras das moças, transmitindo-lhes os conhecimentos e as técnicas tribais femininas” (FERNANDES, ibid., p. 242).

Entre os Mbyá as belas palavras, rezas, narrativas e cantos que são associadas à sabedoria dos mais velhos colaboram na transmissão oral da sociocosmologia do grupo para as novas gerações, e isto em diferentes contextos do cotidiano (STEIN, 2009, p. 267).

Ao discutir aspectos do discurso público dos Kisêdjê, Seeger (2015) aponta para uma relação entre idade dos indivíduos e tamanho das frases: “quanto mais jovem o intérprete, mais curtas as frases [do discurso]. Quanto mais velho, mais sábio e mais público o intérprete, maiores as frases” (ibid., p. 109 e 110). A observação de Seeger revela dois pontos: os velhos, por terem maior conhecimento e maior vivência desta prática, apresentam frases maiores, o que não acontece com os mais jovens que por estarem se iniciando nesta prática e possuírem um nível de conhecimento limitado em relação ao dos velhos, apresentam frases curtas.

É preciso considerar também que os próprios Kisêdjê diziam que o dircurso público só competia aos mais velhos, o que indicaria mais que uma simples relação de vivência com o tamanho das frases (SEEGER, 2015). No entanto, o próprio Seeger observou que havia uma relação entre a idade e o conhecimento com o tamanho das frases. Os colaboradores de Tugny (op. cit.) disseram que os jovens Tikmu’um possuem pouco conhecimento para traduzir cantos.

A instrução que se dá a partir dos velhos também é algo comum nas sociedades indígenas nas TBAS. Entre os Kisêdjê o indivíduo que escutassem as falas dos mais velhos se comportariam conforme a tradição da sociedade (SEEGER, 2015).

Um conjunto onomástico sem nenhum adulto sai de uma casa. Seu integrante mais velho tem cerca de dez anos. Duas mulheres velhas, avós dos meninos, os ajudam, indicando onde girar e voltar-se para a casa e instruindo-se sobre quando prosseguir e cantar no pátio (SEEGER, ibid., p. 219).

Nesta passagem fica claro que os jovens não possuíam conhecimento e vivência suficiente para as cerimônias, foi necessário o auxílio das mulheres. Conforme os jovens aumentassem sua vivência e consequentemente o conhecimento da cerimônia, tal auxílio não mais se faria necessário. Mesmo sendo mulheres e a cerimônia masculina, por serem bem mais velhas, as mulheres possuíam um conhecimento sobre esta cerimônia que os jovens do sexo masculino ainda não possuíam.

No entanto, ser velho na sociedade tupinambá não significaria ser portador de conhecimentos cerimoniais.

Fernandes já havia alertado para não se pensar a sociedade tupinambá como uma sociedade na qual “da criança ao adulto ou ao velho chegar-se-ia fatalmente a produtos estereotipados, através de mecanismos exteriores simples de modelação estandardizada do caráter dos seres humanos” (1976, p. 71). Participar das cerimônias e envelhecer não seria um simples sinônimo de adquirir conhecimentos.

Os homens kisêdjê fabricavam suas próprias máscaras cerimoniais. No entanto, não eram todos que sabiam confeccioná-las, alguns apenas colhiam o material necessário à confecção, palmas de buriti, e pediam aos homens que sabiam para confeccioná-las (SEEGER, 2015).

Segundo Seeger (2015), durante a performance coletiva dos homens Kisêdjê, aconteciam erros, por parte dos homens mais novos, mas também os homens velhos cometiam erros durante a performance. Entre os Kisêdjê era o especialista ritual quem costumeiramente liderava a prática dos cantos em uníssono (SEEGER, 2015).

Estes dois exemplos dos Kisêdjê refletem bem o que estou argumentando: a relação velho e conhecimento não seria mecânica.

Uma das posições de Fernandes que mais geram polêmicas é a de que a sociedade tupinambá seria igualitária e sem hierarquias:

todos podiam aprender algo em qualquer tipo de relação social, o que convertia qualquer indivíduo em agente da educação tribal e projetava os papéis de “adestrador” ou de “mestre” em todas as posições da estrutura social (1986, p. 72).

A leitura que tenho das obras de Fernandes me leva a entender que os mais velhos possuíam um conhecimento maior, mas isso não quer dizer que estes não poderiam aprender algo com os mais novos. Haveria uma mútua instrução entre os indivíduos da mesma faixa etárias, além dos indivíduos jovens compartilharem conhecimentos com os mais jovens.

Tal processo pode ser verificado em outros estudos. De acordo com Grupioni

embora os pais sejam os responsáveis mais diretos pela criação dos filhos, o processo mais amplo de socialização, de transformar as crianças em completos membros de sua sociedade, é efetuado também pelos parentes mais próximos e até pela comunidade inteira. Tios, tias, avós, avôs e irmãos mais velhos participam ativamente deste processo (apud RODRIGUES, 2015, p. 178).

Segundo Stein, muitas crianças Mbyá cantam “mitã mongueá (acalantos) para os mytaï (bebês), seus irmãos menores ou outros afins, uma das estratégias de cuidado que lhes é delegada dentro da família” (2009, p. 203).

Seu Artur Benite, colaborador de Dallanhol, disse que

qualquer pessoa pode aconselhar, ajudar o outro, pode ser até menor, mas mais sabido, pode ser menina também, então, vai falar pro outro assim: olha tu não ouviste o que Nhanderu falou? Não anda assim, não faz assim. Assim, se um esquece o conselho da reza, já o outro vai falar, porque ele ouviu. E assim que se faz (2002, p. 116).

Em sua pesquisa, Dallanhol observou que “todos ensinam e todos aprendem, sendo que a idade aparece como um fator distintivo de conhecimento, quanto mais velho, mais sábio” (ibid., p. 135).