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3. O suicídio em Trapo (1988) de Cristovão Tezza

3.2 As circunstâncias da morte

O romance Trapo tem início após uma profunda crise e tensão na vida da personagem central, num momento em que a situação torna-se de tal modo insustentável que culmina no seu suicídio.

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Cf., Carlos Alberto Faraco, «Trapo e outras histórias», in Nicolau, Curitiba, Julho de 1988. [www.cristovaotezza.com.br]

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Cf. Elisa Campos de Quadros, «Trapo de Cristovão Tezza» in Revista Letras, Universidade Federal do Paraná, Publicação do Curso de Letras do Sector de Ciências Humanas, Letras, Artes da Universidade Federal do Paraná, n.º 37, 1988, pp.293-304. [www.cristovaotezza.com.br]

Inicialmente, as circunstâncias reais da morte de Trapo são fornecidas por Izolda Petroski, proprietária da pensão onde ele residia há cerca de dois anos, referindo que o suicídio ocorreu num domingo de manhã e que foi utilizado um revólver com silenciador, funesto acontecimento que lhe causou grande perturbação:

– Domingo de manhã ele deu um tiro na cabeça. (Trapo, p.17) […]

– Professor, eu estou tensa, preciso descarregar. Um menino de vinte anos, uma simpatia, farrista, fino, educado, incapaz de uma maldade, de repente você abre a porta do quarto e vê ele morto, ensanguentado, com um revólver na mão, meu Deus! Eu não acredito! Dois anos morando comigo, era como um filho! […]

– Ele se matou a que horas?

– Segundo os homens, entre as nove e dez da manhã. – Mas vocês ouviram o tiro e…

– Que tiro?! Ninguém ouviu nada. Tinha silenciador no revólver. Fui abrir a porta cinco da tarde, pra trocar roupa de cama. Pensei que tivesse saído sem me avisar, o que era raro. (Trapo, pp.21-22)

Nas cartas de Trapo surge também a alusão à compra da arma acima mencionada, à possibilidade de pôr termo à vida e de assassinar o pai:

Comprei uma arma – uma belíssima Magnum com silenciador (a mesma do Cobrador de Rubem Fonseca, sou exigente), munição, um pacote de maconha e algumas gramas de cocaína. Acho que não preciso de mais nada para enfrentar a vida. […]

Absolutamente limpo – um anjo das trevas – acariciei a Magnum carregada. Cheguei a aventar a hipótese do suicídio – não por ele em si, mas pelas manchetes do outro dia. […] Não, é cedo ainda. Se eu me mato, eles jamais saberão o que perderam. Melhor matar os outros; meu pai, por exemplo. (Trapo, pp.57-58)

Izolda destaca a relação de grande afeição, quase maternal, existente entre ela e Trapo, enquanto que a relação com a família era muito problemática e distante:

É o que eu digo, como um filho. “Dona Izolda, tô chegando”: isso quando estava saindo. Ou então: “Tem um leitinho aí para rebater a cigarrada?” Uma vez

ele chegou e disse, quero que esse teto caia se não é verdade: “Dona Izolda, que pena que a senhora não é minha mãe”. Ele odiava a família, isso dava pra notar. (Trapo, p.22)

[…] – E a família dele?

– Trapo só falava mal. “Meu irmão é um babaca, só pensa em se encher de dinheiro. Meu pai é um sem-vergonha.” […] E minha mãe uma idiota, mas uma idiota que está do lado deles. Que pena que a senhora não é minha mãe.” Nunca me esqueci, professor. (Trapo, p.35)

Apesar da relação familiar ser conflituosa, a proprietária da pensão nunca suspeitou da possibilidade da ocorrência de uma atitude tão drástica e violenta por parte do seu hóspede preferido:

– Mas, Izolda, não havia nada que sugerisse a possibilidade do suicídio? Amanhã começarei a reler as obras completas de Conan Doyle.

– Absolutamente nada! Pelo menos que eu notasse. (Trapo, p.22)

Ela retrata Trapo como um jovem alegre, enérgico e bem-humorado, aspectos nada característicos de um suicida, o que causa espanto ao professor Manuel:

– Agora, farrista ele era. Todo o dia chegava de madrugada e dormia até a hora do almoço. […] Ele estava sempre atropelado, não parava quieto. […]

– Curioso, Izolda. Pela descrição, esse tal de Trapo não tem absolutamente nada de suicida.

– Mas ele se matou! Ou o senhor acha que estou mentindo?

– Claro que não, Izolda. Eu sei que ele se matou. O que quero dizer é que o temperamento dele, alegre, expansivo, farrista, é justo o contrário do que se esperaria de um suicida.

– Isso é verdade. (Trapo, p.23)

No entanto, reflectindo mais um pouco sobre a conduta de Trapo, ao longo dos dois anos de convívio, Izolda constata que ele manifestava, por vezes, sintomas de depressão:

– Mas… – ela remexe a memória, acende outro cigarro, a sala nublada. – Trapo não era só assim. Tinha períodos de depressão também.

Completava o quadro do adolescente em revolta. Euforia e depressão. Milhões deles pelo mundo, borboletas confusas durante dois, três anos, até passarem num concurso do Banco do Brasil ou tirarem o diploma de bacharel em alguma coisa. (Trapo, p.23-24)

Pela descrição da proprietária da pensão, o professor Manuel conclui que o suicida, provavelmente, era poeta, aspecto que ela confirma, salientando o apreço que sentia pela dedicação de Trapo à leitura e à escrita. Aliás, encontrou-o morto com a cabeça em cima de um conjunto de livros:

– E era poeta, não? Surpresa:

– Como o senhor sabe?! – Pelo quadro. […]

– Agora, a verdade seja dita, era um menino inteligentíssimo. Passava o dia lendo. Gastava todo o dinheiro dele em livro. Era livro por tudo quanto é canto, não tinha mais onde botar, debaixo da cama, da mesa, da prateleira, na cadeira, na gaveta da cómoda, no chão, um em cima do outro. Duas obsessões: ler e escrever. […]

E ele morreu com a cabeça em cima de uma pilha de livros, como travesseiro, o sangue cobrindo tudo, meu Deus, eu não posso lembrar da hora que abri a porta… eu não posso… nem pensar que… (Trapo, pp.24-25)

Trapo não divulgou a intenção do suicídio, não partilhou com nenhum amigo a sua dor, deixando-se invadir pelos sentimentos de incompreensão e de desespero. Assim, decidiu, voluntariamente, pôr termo à vida quando se encontrava só no seu quarto, tendo como única companhia a arma e os seus diversos livros.