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4. A morte natural em Memorial do Fim: a Morte de Machado de Assis (1991)

4.2 A presença da morte

Em Memorial do Fim: a Morte de Machado de Assis, Haroldo Maranhão retira do contexto original os romances e as personagens machadianas, adquirindo estas últimas até outras identidades, uma vez que se constroem seres ficcionais que se confundem com as figuras históricas que estiveram presentes ao longo da vida e nos últimos dias do célebre autor de Dom Casmurro.

Perante o título, somos induzidos a pensar que o moribundo seja Machado de Assis, porém também somos levados a presumir que existe a possibilidade de ser outra figura pertencente à órbita da ficção machadiana, dado que, nos primeiros capítulos do romance, o agonizante não é directamente nomeado e a luz foi retirada dos aposentos onde o mesmo

Árvore é uma Vaca (1986). Parte da sua obra foi publicada em jornais e revistas brasileiros e em publicações

portuguesas, além de ter ainda trabalhos publicados na antiga Checoslováquia e nos Estados Unidos.

215

Cf., Marcelo Pen, «Morte e obsessão artística marcam prosa de Haroldo Maranhão», in Folha de S. Paulo, 16 de Julho de 2004. [www.meguimaraes.com]

se encontra. Este aspecto remete para o próprio Machado de Assis e para o conto de sua autoria intitulado «Missa do Galo»216, cujas cenas são, na sua maioria, iluminadas com luzes indirectas, havendo sempre uma área de penumbra. O artifício de usar zonas escuras - que o leitor precisa de iluminar para que delas possa extrair algum significado - será, identicamente, utilizado por Haroldo Maranhão e não será por acaso que essa dúvida é gerada a partir de referências a nomes do âmbito da obra machadiana, tais como Conselheiro, Joaquim Maria, Livramento, que criam uma expectativa em torno do moribundo217.

Na narrativa, a constante transição de uma personagem para outra, de Machado de Assis para o Conselheiro Aires, do Conselheiro para Machado, implica que o leitor proceda a uma apreensão do código narrativo machadiano e do próprio código haroldiano, alicerçado no autor de Quincas Borba. Deste modo, o romance em análise tanto pode ser lido pelo viés da morte do Conselheiro Aires, célebre personagem machadiana, como pelo viés da morte de Machado de Assis:

– É a Francisca, Sr. Machado. Vim vê-lo. Estava com saudades suas. E o senhor, não sentia saudades minhas?

O Conselheiro pareceu que renascesse por uns segundos; elevou as pálpebras descobrindo os olhos afundados nos ossos da face, e buscou-a com o olhar vazio. Murmurou deitando nas palavras as poucas forças que lhe sobravam:

– E eu… estou com saudades…. da Vida…218

Benedito Nunes destaca o papel de relevo, e mesmo obsessivo, que o tema da morte assume na obra haroldiana, em geral, e no romance em análise, em particular, bem como a singular homenagem prestada por Haroldo Maranhão a Machado de Assis, considerado a figura mais representativa do Realismo:

Memorial do Fim realiza agora um já idoso amor, casando a verve lúdica nutriz da narrativa de Haroldo Maranhão com o tema obsessivo da morte, que demoradamente visitou-a na fantasmagoria carnavalesca de 1981: A Morte de Haroldo Maranhão.

216

Ver a este propósito Machado de Assis, «Missa do Galo», in Contos, Porto, Lello & Irmão Editores, 1985, pp.135-147.

217

Cf., Rogério da Silva Lima, O Dado e o Óbvio: o Sentido do Romance na Pós-Modernidade, Brasília, EDU/Universa, 1998, pp.93-94.

218

A mesma verve lúdica […] responde pelo presente livro, um esplêndido jogo de espelhamento: o romance de Haroldo Maranhão ficcionaliza Machado de Assis mirando-se na morte dele, e machadianiza-se por sua vez, amador na coisa amada transformado. Só um mestre – e já é tempo de se proclamar o valor magistral da ficção do romancista paraense – poderia atingir essa superior metamorfose, ao mesmo tempo apaixonante homenagem de um escritor a outro escritor.219

A morte é uma presença constante e, particularmente, representativa do universo ficcional do próprio Machado de Assis, tal como assinala Leda Maria da Costa:

Independentemente dessa atribuição, a temida senhora aparece em todos os cantos da literatura machadiana, não como um simples adereço, mas participando ativamente da dinâmica narrativa. […] Machado opera milagres. Retira a morte da sua habitual imobilidade e a torna um dos motores que faz seu universo ficcional funcionar. No mundo dos vivos, rodeado de ilusões e movido pelo falseamento, ela emerge como uma das únicas verdades possíveis. Verdade, no entanto, cercada de mentiras. Se a morte desmistifica, é também desmistificada ao ser esvaziada dos excessos de sentimentalismo que lhe são atribuídos e que, muitas vezes, são sustentados por interesses escusos e dissociados da simples piedade cristã ou de qualquer outro sentimento real.220

A autora, que estudou os vários modos através dos quais a morte é representada em

Memórias Póstumas de Brás Cubas, refere que o quarto do moribundo, os enterros, os

cemitérios e os rituais fúnebres constituem um apoio à configuração do cenário em que a ficção machadiana se desenrola.

Em Memorial do Fim, a isotopia da morte passa por substantivos como choro, luto,

velórios, óbito, defunto, enfermo, morrediço, finado, sucumbente, morto, cadáver, enterro, ataúde, sepultura, jazigo e cova; por verbos como morrer, inumar e sepultar; e por

expressões como forças da morte, leito mortuário e trabalhos fúnebres.

O romance de Haroldo Maranhão tem como personagem central Machado de Assis/Conselheiro Aires, este último protagonista do derradeiro romance machadiano, intitulado Memorial de Aires, coincidências no mundo da ficção que se fundem com o

219

Benedito Nunes, «A morte de Machado de Assis» (intr.), in Memorial do Fim: a Morte de Machado de

Assis, de Haroldo Maranhão, São Paulo, Marco Zero, 1991. 220

mundo do real histórico, aspecto que também ocorre noutros romances do autor221. Além da fusão entre o real e a ficção, Benedito Nunes observa a presença sistemática de thanatos na obra em análise:

Eis porque, como texto basculante entre o real e o imaginário, Memorial do Fim (A Morte de Machado de Assis) ocupa o lugar inconfundível na linhagem do romance biográfico […] a linha ou linhagem tanática, que recapitula o curso de uma vida a partir de seu fim, concentrando-se no momento extremo da morte, por onde o ficcional se introduz no biográfico. […] Aqui, Machado de Assis morituro, personagem do romance, permanece na órbita da sua própria ficção. Quem morre, superpondo Carolina a Carmo, a bela Fidélia à prestimosa Hilda, é o Conselheiro Aires, cujo Memorial chega ao último fim. “Conversa do papel para o papel”.222

O romance Memorial do Fim constitui uma insólita e sóbria homenagem ficcional prestada a Machado de Assis por Haroldo Maranhão, revelando-se uma densa reflexão sobre a questão da morte e da escrita.