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Os instrumentos e os sentimentos perante a morte

2. O homicídio como motivo desencadeador de A Grande Arte (1983)

2.4 Os instrumentos e os sentimentos perante a morte

Em todos os crimes focados, os homicidas usam diversos instrumentos de morte, variados tipos de armas, particularmente a faca, à qual é concedido um relevo especial, uma vez que o próprio Mandrake, após ser violentamente agredido, solicita uma lição de “Percor” a Hermes, adquirindo e lendo diversa bibliografia sobre esse assunto:

Hermes explicou, de maneira fria e didática, as técnicas consagradas. A de Fairbair, a de Applegate, a de Styers, a dos gurkas nepaleses, a cigana espanhola, a Kenjutsu. (A Grande Arte, p.82)

[…]

Os livros que estavam à minha frente, e pelos quais me interessava agora, tratavam de um extraordinário instrumento, uma das principais ferramentas do homem, a primeira arma produzida cientificamente – a faca. (A Grande Arte, p.88)

São ainda referidas e utilizadas armas de fogo, designadamente revólveres e carabinas, «Havia na casa duas carabinas Urco e cinco revólveres Taurus, calibre 38.» (A

Grande Arte, p.134), bem como metralhadoras, quando ocorre o assassinato de Fuentes;

enquanto que o objecto utilizado por Zakkai para assassinar Rafael é uma tesoura:

Nariz de Ferro apanhou a tesoura que estava no chão. Estendeu-a para Fuentes.

“Acaba com ele.”

“Não mato um homem amarrado.” Rafael fechou os olhos.

“Eu mato”, disse Nariz de Ferro. (A Grande Arte, p.255)

O machete é o objecto utilizado por Fuentes para assassinar Hermes:

O desvio de Hermes foi rápido e ele conseguiu livrar a cabeça. Não impediu, porém, que o machete atingisse em cheio o seu ombro, dilacerando os

músculos trapézio e o pequeno rombóide e fraturando os ossos da clavícula e da omoplata. (A Grande Arte, p.286)

Ao envolverem-se nesta guerra declarada, as personagens masculinas revelam-se autênticos soldados de exércitos inimigos em conflito, onde o perigo de ser atacado é constante. A própria mão constitui uma arma na obra em questão, dado que várias personagens são mortas por estrangulamento, nomeadamente as prostitutas Gisela e Danusa, a agente federal Mercedes e um dos homens incumbido de assassinar Fuentes. São homicídios que têm em comum a ausência de qualquer arma interposta entre o corpo do assassino e o da vítima. Deste modo, o vocábulo “mão” não designa apenas uma parte do corpo, mas remete para a violência de uma morte realizada por mãos desarmadas e para o exercício de um determinado poder ou domínio sobre o outro.

Nestas situações de grande tensão, será importante analisarmos os comportamentos e sentimentos perante a morte de quem se vê ameaçado, de quem ameaça e mesmo de quem assiste a violentas agressões ou de alguém que é perseguido.

Logo na parte inicial do romance, Mandrake é esfaqueado por Rafael e por Camilo Fuentes e a sua namorada Ada é seviciada. Além de constituírem uma tentativa de homicídio, a violação e a agressão são um caminho, uma preparação para a morte, provocando graves lesões nos corpos:

Ada gemeu. “Chega, o homem está morto”, estranho sotaque, o do homem grande. O cordão de ouro foi arrancado com violência do meu pescoço. […]

“Tiraram um pedaço assim do teu intestino”, mostrou Wexler com os dedos. […]

“O que foi que fizeram com a minha namorada?” “Bem, ela foi seviciada.” […]

“Eles usaram o cabo da faca, me parece. Na vagina e no ânus.” (A Grande Arte, pp.75-78)

Após estas atrocidades, a atenção do advogado concentra-se na literatura existente sobre a luta com armas brancas, aprendendo diversas técnicas da arte de manusear a faca, para poder dar continuidade à sua investigação, de um modo mais seguro e com menos receio.

Ao longo da primeira parte do romance, o leitor acompanha Mandrake na perseguição a Camilo Fuentes. O facto de este ter tentado matá-lo e de ter ferido a sua

companheira cria uma relação pessoal entre os dois, nutrida por sentimentos de vingança, o que leva o advogado a extrapolar, totalmente, o nível de participação que estava a ter no caso - um meio caminho entre a actuação profissional e o interesse particular em descobrir a verdade - e a imaginar a morte do adversário:

Mas a morte, de um jacaré ou de uma pessoa, não tinha nenhuma transcendência para mim, ali no meio do mato. Eu ia matar Fuentes e sabia, amargurado, que a morte do meu inimigo me daria a mesma satisfação de esmigalhar uma barata com o pé. (A Grande Arte, pp.104-105)

Associado à violência surge o medo, que é visível, em diversos momentos de A

Grande Arte, quando Ada, após ser violada por Rafael e Fuentes, parte para a sua terra

natal, Pouso Alto, no interior do Brasil, dado que receia viver no Rio de Janeiro:

O corpo de Ada revolvia-se na cama, o seu rosto contraído de angústia. Toquei de leve no seu ombro, acordando-a.

“Estava tendo um pesadelo horrível”, disse Ada. […] Nós fomos mordidos por dois cães danados – ” […]

“Eu vou-me embora. Vou deixar você. Vou para a casa de minha mãe.” (A Grande Arte, p.82)

O pavor é, igualmente, visível nos gestos do porteiro do prédio de Roberto Mitry e no seu funcionário, Evilásio, que temem sanções ou ser mortos por Rafael:

“Quieto senão eu te mato”, disse Rafael.

O porteiro ficou imóvel, segurando o embrulho, as mãos tremendo. Rafael tirou o revólver que estava na sua cintura. […]

Pálido, Evilásio começou a tremer e deixou-se arrastar, junto com João para o interior do apartamento. (A Grande Arte, pp.190-191)

Salientemos o sentimento de ódio e a frieza que Camilo Fuentes manifesta durante os combates que trava, particularmente quando se confronta com Hermes:

Hermes sabia que o oponente mais fácil de lidar era aquele movido pelo ódio ou pelo medo. Percebeu logo, porém, que Fuentes não sentia nenhuma dessas

duas emoções. Notou que o adversário possuía aquilo que Cassidy lhe dissera, durante o treinamento, ser a grande qualidade do lutador – o “ódio frio”. Esse ódio extraordinário não prejudicava, ao contrário, fortalecia a indispensável disciplina mental do combatente. (A Grande Arte, p.285)

Analisemos ainda os vários momentos antes da ocorrência da morte, nos quais quem está a ser ameaçado manifesta, claramente, o terror que sente, como no caso de Rafael, forçado a ingerir baratas:

Fuentes retirou uma das baratas, que se debateu entre os seus dedos, agitando pernas e antenas. Ao ver a barata Rafael arregalou os olhos e ficou lívido. Fuentes curvou-se sobre ele, segurou seu rosto e começou a enfiar a barata na boca de Rafael. Rafael trincou os dentes e procurou livrar o rosto da pressão dos dedos de Fuentes. Os dois lutaram por algum tempo. Espremida contra os lábios cerrados de Rafael a barata espedaçou-se cobrindo-lhe a boca e o queixo com uma gosma viscosa, fedorenta. Fuentes olhou o rosto de Rafael que rolou pelo chão como um rato envenenado, raspando a boca no soalho. (A Grande Arte, p.254)

Também Hermes durante o confronto com Fuentes pensava, de um modo estratégico e calculista, em todos os gestos e atitudes que deveria executar para que o adversário não o apanhasse desprevenido no momento decisivo:

Hermes sabia que com Fuentes, naquela posição, a passata não funcionaria. Seria uma luta de um golpe único, sem os talhos, cortes, incisões preliminares comuns nas lutas de faca e que antecedem ao golpe mortal. Ele tinha, agora, duas alternativas: aparação ou evasão. (A Grande Arte, p.286)

Em A Grande Arte, os crimes são planeados e preparados estratégica e atempadamente, tal como sucede quando Thales Lima Prado apresenta a proposta aos membros principais do Escritório Central de aniquilar Zakkai, acto para o qual incumbe Hermes:

“Mas Zakkai ter me procurado não foi, não foi uma coisa boa. A Aquiles sempre foi preservada. […] Mas seja lá o que for que Zakkai sabe, só nos resta um caminho. Estão de acordo?”

Todos menearam a cabeça concordando. (A Grande Arte, p.217) […]

“Você tem que achar Zakkai. Achar e acabar. Se conseguir o vídeocassete, melhor ainda.”

Hermes, fleumático, olhou Lima Prado. “Rápido e rasteiro”, este acrescentou. Como costumavam dizer no Regimento. (A Grande Arte, p.234)

Zakkai tem conhecimento de que há um plano por parte do Escritório Central para matar Fuentes, Mandrake e ele próprio, por conseguinte procura o boliviano para que unam as suas forças e combatam quem pretende destruí-los:

“Agora eu faço uma proposta e você decide. Vamos nos unir para destruir os nossos inimigos”.

Nariz de Ferro tivera informações de que Mateus estava recrutando dois matadores, para fazer uma “limpeza”, sabia, pelo mesmo informante, que Fuentes estava na lista vermelha; e mais, que também estavam marcados: um “advogado chamado Mandrake” (“não, não conheço”, respondeu Fuentes); um traficante, Carlinhos Gordo (“também não”), ele, Zakkai.

“Pago três vezes mais. Vê o que você acha do meu plano.” (A Grande Arte, pp.227-228)

Após a execução da morte de Rafael e a recuperação da cassete de vídeo, que se encontrava na casa daquele, Fuentes considera que não é necessário assassinar mais ninguém, todavia Zakkai recorda-lhe que o contrato estabelecido por ambos implicava a morte de mais duas pessoas:

“Morreu muita gente para ver, ou não ver, isto aqui.” Zakkai sacudiu o cassete com a fita.

“Agora não precisa morrer mais ninguém”, disse Fuentes.

Temos ainda uma última coisa a fazer. Se não for necessário matar, não matamos. Mas combinamos a morte de duas pessoas. É o nosso contrato.” (A Grande Arte, 279)

Zakkai deseja eliminar o presidente do Escritório Central, de modo a assumir o comando das operações e tornar-se detentor de todo o poder. Ele pretende fazer uma demonstração de força e provar a todos que consegue sobreviver num mundo tão adverso:

Zakkai acreditava que, matando Lima Prado, não restaria no Escritório Central ninguém com capacidade de liderança para aglutinar o grupo em torno de um objectivo comum, o que lhe permitiria assumir o comando. “ A Máfia é que sabe das coisas”, dizia Nariz de Ferro, “arreglo ou morte!” (A Grande Arte, p.277)

Este romance produz uma sensação de vazio e confronta-nos com uma sociedade multifacetada, contraditória, onde impera a desigualdade. Ao tematizar as incertezas do homem urbano, Rubem Fonseca apresenta um mundo opressor e cruel, em que cada cena de perseguição, morte ou sexo, contribui para a purgação de derrotas permanentes.