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As “circunstâncias influentes”

No documento Claudio V F Medeiros (páginas 154-173)

CAPÍTULO 5. A TEORIA DE MEIO DA PHILOSOPHIE ZOOLOGIQUE DE J

5.2. As “circunstâncias influentes”

O espaço que, girando e fugindo, se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela forças que geralmente se julgam privilégio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido.

A Montanha Mágica, Thomas Mann

As circunstâncias influem consideravelmente nas necessidades, nas ações, nos hábitos dos corpos vivos, e elas são inúmeras, “as mais influentes são, sem dúvida, a

diversidade dos meios nos quais eles habitam”540 (Lamarck nunca fala de “meio”, mas

de “circunstâncias influentes”541, por vezes favoráveis à força vital, outras vezes

contrárias; ou então de “meios”542, no plural; ou , por último, “meios circundantes”543).

Quantidades de fatos levam-no a deduzir que à medida que indivíduos de uma espécie são submetidos a mudanças de “situação, (...), da maneira de ser ou de hábito”544, de

“circunstâncias de habitação, de exposição, de clima, de alimentação”545, essas

mudanças chegam acompanhadas de uma resistência. Mutações que daí decorram não são explicadas por uma ação revogável da geografia. Elas não são, como em Buffon, uma desnaturalização, já que, a rigor, não há nada de natural na natureza. De fato, trata- se da explicação de uma reação orgânica pela ação de um meio, mas o meio atua como um tipo figurado de reagente, ele atualiza um fenômeno cuja possibilidade nunca deixou de ser latente. Contrário a Buffon, as circunstâncias influentes não esgotam a individualidade, quer dizer, a relação organismo-meio não põe em xeque a atividade do vivente. As mutações não são passivas, elas exigem a atividade de um “sentimento interior”546

Canguilhem diz que “Lamarck pensa a vida segundo a duração e Darwin a pensa mais segundo a interdependência”547. Mas, quem sabe, talvez não se possa dizer que

Lamarck pensa a vida também segundo o espaço. Um espaço como suporte para a circulação de uma ação, um aleatório de variáveis cuja inscrição nos “meios circundantes” seria somente um fator simplificador da análise. Ainda que este espaço seja uma forma de ação indireta sobre a organização dos corpos vivos, ainda que, como em Thomas Mann, o espaço somente desligue o indivíduo da familiaridade das coisas que o cercam, e atue assim para descompensar a segurança quanto à identidade do corpo. A natureza, entendida como um meio, é, como já dito, naturalmente um “fora”. Na medida em que sempre a “vida e o meio que a ignora são duas séries de acontecimentos assincrônicos”548, como o diz Canguilhem, então, as condições que se

tornam favoráveis à conservação das forças vitais são, em alguma medida, definições do 540 LAMARCK, 1809a, p. 231. 541 Ibidem, p. 268. 542 Ibidem, p. 231. 543 Ibidem, p. xvij. 544 Ibidem, p. 62. 545 Ibidem, p. 225. 546 Ibidem, p. 234. 547 CANGUILHEM, 2012b, p. 149. 548 CANGUILHEM, 2012b, p. 146.

próprio vivente, quer dizer, elas estão submetidas à definição de seus hábitos, à sua maneira provisória de ser.

Em Lamarck, é “por intermédio da necessidade, noção subjetiva implicando a referência a um pólo positivo dos valores vitais, que o meio domina e comanda a evolução dos viventes”549. Essa interpretação de Canguilhem põe de lado a vulgaridade

da leitura mecanicista da Philosophie Zoologique. A identidade ou a natureza fixa da organização se perde na história dos hábitos que o indivíduo mesmo contrai.

Tudo concorre portanto para provar minha asserção, a saber: que não é a forma, seja do corpo, seja de suas partes, que dá lugar aos hábitos e à maneira de viver dos animais; são, ao contrário, os hábitos, as maneiras de viver, e todas as outras circunstâncias influentes que constituem, com o tempo, a forma do corpo e das partes dos animais550.

As circunstâncias não agem verticalmente sobre a forma e a organização do vivente, senão por uma via indireta. Grandes mudanças nos meios conduzem a grandes mudanças nas necessidades dos animais, tais mudanças nas necessidades têm reflexos necessários nas suas ações. Caso as novas necessidades se tornem constantes e duráveis, os animais contraem hábitos novos, tão duráveis quanto as necessidades que os fizeram nascer. Se as novas circunstâncias se tornam permanentes para uma raça de animais, eles assumirão tal ou tal maneira de agir, de modo que suas ações constituirão hábitos. Isso resulta na preferência de emprego de tal parte do corpo em detrimento de quaisquer outras. Em alguns casos, a falta de uso de uma parte chega a torná-la inútil, diminuindo- a pouco a pouco, tornando-a delgada, terminando por fazê-la desaparecer. Ao passo que, quando novas necessidades exigem a presença de outra parte, os indivíduos, por uma série de esforços, ativam sua capacidade de fazê-la nascer. O emprego constante desta parte necessária faz com que ela se fortifique e se desenvolva até atingir uma proporção considerável551. É este o conteúdo da primeira Lei da natureza:

Primeira Lei.

Em todo animal que não ultrapassou o termo de seus desenvolvimentos, o emprego mais frequente e constante de um órgão qualquer, fortifica pouco a pouco este órgão, desenvolve-o, expande- 549 Ibidem, p.146. 550 LAMARCK, 1809a, p. 268. 551 Cf. Ibidem, p. 221, 222.

o, e lhe dá uma potência proporcional à duração deste emprego; enquanto que a falta constante de uso de tal órgão, enfraquece-o insensivelmente, deteriora-o, diminui progressivamente suas faculdades, e termina por fazê-lo desaparecer552.

Lamarck tenta garantir a validade da primeira Lei envolvendo-a em um mecanismo de hereditariedade. Mas suas ideias sobre a hereditariedade são ainda incipientes, não constituem uma teoria. Seu raciocínio só é coerente porque a segunda Lei é requerida como condição de possibilidade para a Lei anterior, isto é, é preciso que os ganhos e as perdas morfológicas obtidos pelo hábito individual sejam transmitidos hereditariamente para que o novo permaneça. Ausente em quaisquer experimentações, a segunda Lei preenche uma brecha para o fechamento do sistema lamarckiano, embora mantenha lacunas não menos importantes: as questões que acompanham o mecanismo da hereditariedade, quer dizer, as questões que envolvem a formação do semelhante pelo semelhante ou, a produção e o aparecimento do novo.

Segunda Lei.

Tudo isto que a natureza fez os indivíduos adquirirem ou perderem pela influência das circunstâncias às quais sua raça se encontra exposta por muito tempo, e, por consequência, pela influência do emprego predominante de tal órgão, ou por aquela de uma falta constante de uso de tal parte; ela o conserva pela geração nos novos indivíduos que surgem, desde que as mudanças adquiridas sejam comuns aos dois sexos, ou àqueles que produziram estes novos indivíduos553.

Lamarck oferece exemplos de influência das circunstâncias sobre os hábitos dos animais. Eles não substituem os conceitos, mas a opção por um ou outro exemplo acaba por ser um detalhamento da argumentação. Ele diz que, apesar de haver um plano de organização para os animais vertebrados, do qual faz parte o fato da presença de dois olhos na cabeça, a toupeira, em função de suas condições de habitação, na medida em que vive habitualmente em lugares onde a luz não chega, “faz pouquíssimo uso da vista, não tendo senão olhos muito pequenos e dificilmente aparentes, já que ela quase não exerce o órgão”554. A toupeira e o falso-zokor só possuem vestígios cobertos do órgão

da visão, portanto o empobrecimento ou desaparecimento dos olhos foi resultado de 552 LAMARCK, 1809a, p. 235. 553 Ibidem, p. 235. 554 LAMARCK, 1809a, p. 241.

uma constante falta de uso do mesmo. Como bem se vê aqui, a ação das circunstâncias influentes é, do ponto de vista da sucessão, mediada pelas necessidades, pelas ações, por fim, pelos hábitos do vivente, elas não são fatores de “alienação” do vivente, mas o contrário.

Toda nova necessidade exige novas ações para satisfazê-la. Exige que o animal faça a experiência “seja do emprego mais frequente de alguma de suas partes que antes ele fazia menos uso, o que a desenvolve (...), seja do emprego de novas partes que as necessidades fazem nascer insensivelmente nele, pelos esforços de seu sentimento interior”555. Mas em que consiste o “sentimento interior”? Ele é insensível já que não é

movido pela vontade. É “uma força de origem mais ou menos misteriosa, ‘um poder’”, dirá Jacob, que “assemelha-se um pouco à força vital: é o apanágio unicamente dos seres organizados”556. Lamarck é obscuro na definição do conceito, não o suficiente

para que não se possa entender que ele atribui ao “sentimento interior” a resposta às necessidades de transformação das organizações. É ele, por exemplo, o sentimento interior, a causa da presença de chifres nas cabeças de alguns mamíferos.

Em seus acessos de cólera, que são frequentes, sobretudo entre os machos, seu sentimento interior, por seus próprios esforços, dirige mais fortemente os fluidos em direção a esta parte de sua cabeça, produz-se então uma secreção de matéria cornificada em alguns, e de matéria óssea misturada com matéria cornificada em outros, dando lugar a protuberâncias sólidas: daí a origem dos cornos e dos chifres (...)557.

São também os esforços do sentimento interior que explicam o alongamento do pescoço da girafa, o que a permite elevar sua cabeça a quase vinte pés de altura:

(...) sabe-se que este animal, o maior dos mamíferos, habita o interior da África e vive em lugares onde a terra, quase sempre árida e sem vegetação, obriga-o a colher a folhagem das árvores. Resultou deste constante hábito que, depois de muito tempo, em todos os indivíduos da raça, suas patas da frente se tornaram maiores que as de trás, e seu pescoço se alongou (...)558. 555 Ibidem, p. 234. 556 JACOB, 1983, p. 154. 557

LAMARCK, op. cit., p. 256. 558

Por mais que Lamarck diga que todo este conjunto de seres vivos participe de um ciclo eterno de movimentos, regidos por leis e por uma ordem sempre imutáveis559, os meios, ainda assim, trabalham sem cessar na decomposição das organizações que existem, no desbloqueio dos princípios que conservam seus estados de combinação, sempre à espreita para restabelecer tais princípios ao seu original estado de caos560. “Mas fiz ver que existe também, ao mesmo tempo na natureza, uma causa particular, potente e continuamente ativa, com a faculdade de formar combinações (...). Agora, esta causa potente (...) reside na ação orgânica dos corpos vivos”561. Daí a mutação ser

entendida como um esforço renovado da vida para não ser desligada deste circuito de circunstâncias tão influentes quanto indiferentes. Para Canguilhem, a “adaptação, sendo o efeito de um esforço, não é, portanto, uma harmonia; ela não é uma providência, é obtida e nunca garantida”562. E, de fato, o sistema de mundo lamarckiano, de perto, é

menos harmônico do que aparenta. Há em todos os corpos organizados, “durante a vida, uma luta perpétua entre aquelas circunstâncias que compõem a força vital; e aquelas, sempre renascentes, que a decompõem563”. Além da força vital, causa das combinações, diversificações, multiplicações, dos corpos vivos, existe uma força contrária, que tenta submeter o vivente às leis da matéria inerte. A vida é atravessada por uma faculdade de resistir às leis da matéria inerte. O vivente se recria continuamente com o intuito primeiro de satisfazer às necessidades exigidas pela natureza e pelas circunstâncias, e neste sentido, não perder a vantagem, por enquanto garantida neste perpétuo conflito.

559 Cf. Id., 1809b, p. 465. 560 Cf. Ibidem, 1809b, p. 101. 561 Ibidem, p. 101. 562 CANGUILHEM, 2012b, p. 147. 563

CONCLUSÃO

Lamarck diz que a força vital “sustenta uma luta perpétua contra as forças às quais obedecem os corpos inanimados; logo a vida não é outra coisa a não ser um combate prolongado entre essas duas diferentes forças”564. O vivente nasce da polêmica

coexistência de forças. Uma tensão alternada entre pólos qualitativamente diferentes e um confronto pela preponderância. Lamarck segue uma tendência quase idêntica à de Bichat, que define a vida como um conjunto das funções que resistem à morte565. Mas quando as circunstâncias mudam e se tornam constantes, e, com elas as necessidades, uma nova raça particular está em vias de se formar. É nessas condições que Canguilhem conclui que “a vida resiste unicamente se deformando para sobreviver a si mesma”566.

Não é gratuita a especial atenção que o historiador dá à Philosophie Zoologique no artigo “O Vivente e seu Meio”. Uma parte de suas intenções veiculadas no artigo não só constitui um desdobramento de suas ideias em O normal e o patológico, como o próprio Lamarck é invocado como um símbolo distante, quase historicamente esquecido, do vitalismo filosófico próprio da obra de Canguilhem. Esses são temas que devem, enfim, ser recuperados e, em seguida, oferecidos na forma de desfecho.

As ciências da vida compartilham entre si o uso de certos conceitos, como a ideia de meio. “Ocorre com a medicina o mesmo que com todas as ciências. É uma atividade que tem raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar o meio e organizá-lo segundo seus valores de ser vivo”567. Também a ideia de vida como um

impulso à evolução, à variação das formas, à iniciativa contra as transformações do meio, sobretudo como um conceito cuja estrutura é histórica antes de ser natural, está presente nas posições desenvolvidas, por Canguilhem, em O normal e o patológico.

Bichat dizia que o animal é habitante do mundo, ao passo que o vegetal é habitante apenas do local que o viu nascer. Esse pensamento é ainda mais verdadeiro em relação ao homem do que em relação ao animal. O homem conseguiu viver em todos os climas; (...) o homem é o animal que, por meio da técnica, consegue variar, no próprio local, o 564 LAMARCK, 1809b, p. 97. 565 Cf. CANGUILHEM, 2012b, p. 147. 566 Ibidem, p. 147. 567

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Tradução de Maria T. R. de Carvalho Barrocas. 6 ed. revisada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 176.

ambiente de sua atividade. (...) É verdade que se poderia objetar que, nesse caso, as constantes fisiológicas expressariam o efeito das condições externas de existência sobre o ser vivo; e que nossas suposições sobre o valor normativo das constantes seriam desprovidas de sentido. (...) No entanto, insistimos que as funções biológicas são ininteligíveis, do modo como são reveladas pela observação, quando se traduzem os estados de uma matéria passiva diante das transformações do meio. De fato, o meio do ser vivo é também obra do ser vivo que se furta ou se oferece eletivamente a certas influências568.

Entre a tese de doutorado de Canguilhem (1943) e o artigo “O Vivente e seu Meio”, só se passaram três anos. É quase como se O normal e o patológico restringisse, ao campo da fisiologia patológica, os efeitos do conceito de vida, para, a partir daí, pensar o estatuto do normal e do patológico. Tanto o artigo quanto a tese defendem a hipótese da vida como detentora de uma normatividade de caráter originário. Um diferencial, por outro lado, deve estar no fato de que o primeiro texto situa a vida em relação ao meio; enquanto o segundo contrasta a normatividade própria da vida em seu estado normal com aquela que é própria do estado patológico. No último caso, ambas as normatividades representam pólos contrários inscritos na dinâmica da vida. Nem o normal, na forma do indivíduo sadio, significará a rigidez de um fato coercitivo considerado a partir, por exemplo, de uma média da população; nem o patológico terá o sentido de uma ausência de norma. O notável é o fato de haver momentos em que as temáticas dos dois textos, tese e artigo, se cruzam e lançam luz uma sobre a outra:

É por referência à polaridade dinâmica da vida que se podem chamar de normais determinados tipos ou funções. Se existem normas biológicas, é porque a vida, sendo não apenas submissão ao meio mas também instituição de seu próprio meio, estabelece, por isso mesmo, valores, não apenas no meio, mas também no próprio organismo. É o que chamamos de normatividade biológica569.

A saúde, em O normal e o patológico, é também “uma margem de tolerância às infidelidades do meio”570. O vivente é aquele a quem cabe um luxo de poder instituir

normas que se atualizam, normas flexíveis o suficiente para se autotransformarem na relação com condições individuais adversas. “A fronteira entre o normal e o patológico 568 CANGUILHEM, 2009, p. 132, 133. 569 Ibidem, p. 175. 570 Ibidem, p. 148.

é imprecisa para diversos indivíduos considerados simultaneamente, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo indivíduo considerado sucessivamente”571. Quer dizer, a norma é da ordem do indivíduo, não da espécie, o

conceito de normal, consequentemente, não é suscetível de ser medido objetivamente. Aquilo que é normal em determinada condição pode se tornar patológico em outra. “Ser sadio significa não apenas ser normal em uma situação determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais”572. A norma aqui é entendida

fora da experiência binária da lei, ela é sempre relativa a algo, e o algo em questão há de ser o próprio indivíduo, ao invés do universal.

Contrário ao que se poderia achar, a vida no estado patológico não constitui ausência de normalidade. A doença é justamente o impulso conservador do vivente no que diz respeito ao seu estado mórbido atual. É a incapacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes, ou uma impossibilidade de superar as constantes ou invariantes biológicas vigentes no estado antigo de normalidade. Logo, o “doente é o doente por só poder admitir uma norma (...), o doente não é anormal por ausência de norma, e sim por incapacidade de ser normativo”573.

É mais ou menos possível que se admita, aqui, a influência de Nietzsche em A

Vontade de Potência; são possíveis também coincidências entre a dura coexistência da moral de escravos e senhores, em Genealogia da moral, e a vida como polaridade na obra de Canguilhem574. Quanto às tendências, talvez temáticas, da história das ciências, imprescindível é indicar que Canguilhem segue uma trilha aberta pelos estudos de patologia humana de Goldstein, sobretudo no que diz respeito à concepção do vivente como um pólo organizador da experiência, ou desta vitalidade orgânica ativada na escolha dos valores e das normas que lhe são próprias575. Como a presente dissertação

571 CANGUILHEM, 2009, p. 135. 572 Ibidem, p. 148. 573 Ibidem, p. 138. 574

“(...) o que valem os nossos juízos de valor e as nossas tabelas de valores como tais? O que decorre de sua dominação? Para quem? Em relação a quê? – Resposta: para a vida. Mas o que é a vida? Aqui se torna necessária, portanto, uma nova versão, melhor definida, do conceito de ‘vida’: minha fórmula para isso reza: vida é vontade de poder” (NIETZSCHE, F. Fragmentos Finais. Seleção, tradução e prefácio de Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, NF/FP 2[190] outono de 1885 – outono de 1886).

575

Sobre as relações que podem existir entre Canguilhem e Goldstein, ver o artigo da Professora Dr. Silvana de S. Ramos (USP): RAMOS, S. de S. “Vida e vivente na filosofia francesa contemporânea”.

pretendeu não tanto uma circularidade em torno da biografia intelectual das personagens que se escondem sob o Canguilhem-Autor, e sim o encadeamento histórico dos pensamentos que propuseram, de uma forma ou de outra, uma teoria de meio, privilegiou-se a análise das conclusões obtidas no artigo “O Vivente e seu Meio”. Naturalmente, alguns parentescos filosóficos foram colocados em segundo plano; já nomes como Bachelard, Koyré e Foucault comparecem em momentos oportunos, justificados por suas semelhanças metodológicas.

O ponto de coincidência, dos dois textos de Canguilhem em questão (O normal

e o patológico e “O Vivente e seu Meio”), está na abordagem do conceito de vida. Ao retomar o essencial das ideias de Lamarck no artigo de 1946, e atribuir às necessidades, às ações, aos hábitos, as iniciativas renovadas de superação (ou adaptação) do meio, ele diz:

O meio incita o organismo a orientar por si mesmo seu futuro. A resposta biológica prevalece, e muito, sobre a estimulação física. Enraizando os fenômenos de adaptação na necessidade, que é a um só tempo dor e impaciência, Lamarck se centrava no ponto em que a vida coincidia com seu próprio sentido, em que, por meio da sensibilidade, o vivente se situa absolutamente, positiva ou negativamente, na existência, na totalidade indivisível do organismo e do meio576.

Há paralelos entre a normatividade do estado patológico e o vivente ameaçado pelas variações das circunstâncias influentes. Ou entre a normatividade própria do

No documento Claudio V F Medeiros (páginas 154-173)

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