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A vida segundo Lamarck

No documento Claudio V F Medeiros (páginas 139-154)

CAPÍTULO 5. A TEORIA DE MEIO DA PHILOSOPHIE ZOOLOGIQUE DE J

5.1. A vida segundo Lamarck

Foucault dizia que, “até o fim do século XVIII, a vida não existia”484. Houvesse

a chance de se repensar, em termos de condições de possibilidade, a emergência do campo teórico recortado pela Biologia; houvesse o plano de se fazer o assentamento, nas palavras de Jacob, do seu “campo do possível”485, seria forçoso estabelecer, como o

fez Foucault, que entre Buffon e a publicação, em 1859, de A Origem das Espécies, a verdadeira clivagem, no que diz respeito a intenções de pesquisa e conceitos diretores, se dá com Cuvier. Indagar, porém, de maneira menos implícita, o sentido do conceito de “vida” na Philosophie Zoologique (1809) de Lamarck, depois contrastá-lo com as suas acepções em Cuvier e Darwin, contribuiriam para a compreensão da gama de conceitos que se desdobram deste conceito diretor. Coisa que Canguilhem indica, extrai os resultados principais, mas sem se demorar suficientemente no encadeamento de razões que o levam a tal. O Lamarck de Canguilhem leva uma feição nova – paradoxalmente, fiel a si, porque descolada da interpretação mecanicista dos neolamarckianos franceses do século XIX, porque rigorosamente presa ao texto. Há, portanto, a urgência de se pensar o sentido do conceito de vida em Lamarck, fazer notar até que ponto Lamarck tem os pés fincados no século XVIII. Mais importante, lançar luz sobre o marco e a originalidade do seu pensamento frente às biologias de Cuvier e Darwin, e isso irá remeter ao papel das “circunstâncias influentes” no mundo vivo. É, pois, justamente aí que se toma a dianteira em direção a uma verdadeira descontinuidade, dessa vez biológica, do devir do conceito de meio.

484

FOUCAULT, 2007, p. 222. 485

A vida em Lamarck é dotada de uma capacidade renovada de autonormatização, ela é, a seus olhos, um foco de resistência à natureza. A natureza é o inanimado, o estrangeiro, o avesso – diz Canguilhem quando cita Saite-Beuve –, “a pedra e a cinza, o granito da tumba, a morte”486. Por isso a importância de se fazer notar o aparecimento

inédito de uma versão positiva de meio na história do conceito. A adaptação não é a conformação coagida, é a inventividade renovada, a afirmação do meio seguida da instituição de uma norma também outra. “Parece que Darwin lamentou, mais tarde, não ter atribuído à ação direta das forças físicas sobre o vivente senão um papel secundário”487. A natureza em Darwin é um conjunto de leis provisórias, uma invenção

do conhecimento com toda a sua série de reviravoltas. Vida é seleção natural, uma sorte de “mão invisível” responsável pelo balanço da economia da natureza; ela está acabada, em seus últimos termos, na radicalidade parmenídica do ser ou do não-ser.

“O hábito ou o uso somente, tanto quanto podemos admitir, contribuiu pouco ou nada para o desenvolvimento de conformações”488 dadas. Quer dizer, para Darwin, não

há improbabilidade em acreditar que uma “pequena diferença individual assim como as variações mais acentuadas”489 possuam uma causa, mas, tratar-se-ia de uma razão

acidental, ou uma causa que está longe de poder ser atribuída à espontaneidade do vivente. Em todo caso, uma “causa desconhecida”490. Certo é que a causa não se

identifica à própria vida, a vida é binária: ou se deixa morrer, ou se participa do júri, tal como diz Canguilhem:

Mas, enquanto vivemos, sempre se é juiz ou julgado. Por conseguinte, vemos que na obra de Darwin (...) o fio que religa a formação dos viventes ao meio físico-químico pode parecer tênue. E o dia em que uma nova explicação da evolução das espécies, o mutacionismo, vir na genética a explicação de fenômenos (que Darwin conhecia, mas subestimou) de aparição de variações específicas, imediatamente hereditárias, o papel do meio se encontrará reduzido a eliminar o pior sem participar da produção dos novos seres, normalizados por sua adaptação não premeditada às novas condições de existência, a monstruosidade se tornando regra e a originalidade, banalidade provisória491. 486 CANGUILHEM, 2012b, p. 147, nota no 10. 487 Ibidem, p. 148. 488 DARWIN, 2010, p. 173. 489 Ibidem, p. 153. 490

Ibidem, loc. cit.. 491

A seleção natural é, tão claramente, uma “co-adaptação”492 porque associada à

concorrência vital que se desencadeia na persistência do mais apto. O meio “no qual vive um organismo é um entourage de viventes que são para ele inimigos ou aliados, presas ou predadores”493. Não se quer com isto apontar a insuficiência do pensamento

de Darwin, esse seria um trabalho sem qualquer valia para as necessidades desta discussão. Trata-se sim de operar uma revisão da Philosophie Zoologique sem precisar submeter, momentaneamente, o potencial do seu pensamento a algo que se assemelhe a uma polícia epistemológica.

A comparação cartesiana entre a vida e o relógio é desmontada por Lamarck através de uma lógica que já nas Leçons d’anatomie comparée (1800), de Cuvier, havia

sido banida. Há, no relógio, somente dois objetos principais a se considerar: as engrenagens e a mola, que pela elasticidade de suas partes, mantém o movimento enquanto subsiste a tensão. Um vivente tem, além de dois objetos análogos aos do relógio, ou seja, órgãos e fluidos, um terceiro: “a causa excitatriz dos movimentos vitais, de onde nasce a ação dos fluidos sobre os órgãos e a reação dos órgãos sobre os fluidos”494. Assim, a vida não é certo fenômeno que dá lugar a uma coleção de outros

fenômenos; de fato, não será uma ou outra função vital que constituirá ou substituirá conceitualmente a vida, “é a vida mesma que se torna a causa da produção das funções”495. A vida, da qual participam, por assim dizer, os organismos, se diz de duas

maneiras, ela é tanto uma causa excitatriz de movimentos orgânicos, quanto “uma ordem e um estado de coisas nas partes destes corpos, o que permite às partes obedecer à ação de uma causa estimulante”496. A distinção não desliga Lamarck de uma tradição,

um tanto quanto teológica, de referência e adesão às “forças vitais”. E no entanto este é um elo importante entre as Leçons d’anatomie comparée e a, posterior, Philosophie

Zoologique. É a vida, nisto que ela possui de original, indivisível, indefinível, nisto que ela tem de manifesto porque possibilita aos organismos participarem em comunidade desta região, vertiginosamente, fronteiriça com o não-vivo, que permite ou subjaz à possibilidade de uma classificação nas pesquisas biológicas.

492 DARWIN, 2010, p. 57. 493 CANGUILHEM, 2012b, p. 148. 494

LAMARCK, J. B. P. A. Philosophie Zoologique. Ou, exposition des considérations relatives à l’histoire naturelle des animaux. Vol. I. Paris : de l’imprimerie de Duminil-Lesueur, 1809a, p. 401, 402. Todas as citações dos dois volumes da Philosophie Zoologique de Lamarck foram traduzidas por nós para o presente trabalho.

495

Ibidem, p. 400. 496

Alguns apontamentos a serem feitos. Lamarck conceitua a vida tendo como foco a sua essencial originalidade, o que ele diz estar manifesto na observação científica das espécies. Não as espécies consultadas como se consultam peças de museu, e sim a espécie como uma “coleção de indivíduos semelhantes produzidos por outros indivíduos idênticos a eles”497, que sob a ação constante de circunstâncias que lhe são

estranhas, põe em atividade certa faculdade interna para a diversificação de seus caracteres específicos. Darwin atua em uma dimensão diferente, a vida e o vivente são pensados através da problematização das populações, ou melhor, pensados no interior de relações mútuas de dependência entre populações de seres organizados. Vida e vivente estão dissolvidos em uma analítica da larga escala, na apreciação numérica de variações incipientes pelo uso do método das médias. É, daí, metodologicamente improvável tocar na inventividade normativa do vivente individual. Cuvier, por fim, incidirá sobre a materialidade do corpo vivo, quer dizer, o vivente será capturado pelo conhecimento através do olhar vertical e em profundidade. O que existe são os corpos vivos e o paralelismo – ou, porventura, desencontros – de suas disposições orgânicas. A vida, que o vulgar enxerga como sendo signo de um princípio motor, que Lamarck chama de causa excitatriz ou estimulante, é na verdade um simples nome utilizado para indicar um conjunto de fenômenos que dão lugar à formação do organismo. Não se chega ao instante limítrofe de formação da vida, tem-se a experiência da vida já quando o corpo se encontra em formação. Um nominalismo declarado, de entrada, na primeira frase de Leçons d’anatomie comparée: “A ideia da vida é uma destas ideias gerais e obscuras produzidas em nós por certa série de fenômenos que vemos se sucederem em uma ordem constante e se manterem por relações mútuas”498. A frieza do gênio pôde

revalorar a origem do movimento próprio dos corpos vivos reduzindo-a a um efeito cuja fonte reside, em última análise, na ascendência. Tudo o que extrapola essa verdade converte-se em especulação. Foucault diz que, em Cuvier, “a vida se recolhe no enigma de uma força inacessível em sua essência, captável apenas nos esforços que faz, aqui e ali, para manifestar-se e manter-se”499. Logo, será enfim anulada a crença em gerações espontâneas, “a vida só nasce da vida”500, não existe vida que não se tenha transmitido

497

LAMARCK, 1809a, p. 54. 498

CUVIER, G. Leçons d’anatomie comparée, Tomo I. Paris : Baudouin, Imprimeur de l’Institut National

des Sciences et des Arts, 1800, p. 1. As citações das Leçons d’anatomie comparée de Cuvier foram

traduzidas por nós. 499

FOUCAULT, 2007, p. 376. 500

dos pais à sua descendência através desta sucessão ininterrupta. “Não se pode portanto remontar à primeira origem dos corpos vivos, nós não temos recursos para lançar luz sobre a verdadeira natureza das forças que os animam, senão no exame da composição de seus corpos”501.

O tom, aparentemente, enigmático da percepção de que a vida não existia, de fato, antes do século XIX, talvez ceda a uma análise pormenorizada da Philosophie

Zoologique. Assistir ao desdobramento do conceito, dentro dos limites demarcados por essa obra, equivale a demonstrar que a Biologia – termo talvez cunhado pelo próprio Lamarck – não foi a extensão depurada cientificamente da História Natural (ela também não foi produto de uma rachadura interna na História Natural, de onde teriam derivado a Geologia, a Geografia e a Biologia, para a tecitura de suas histórias pessoais). Não se trata de dizer que a História Natural enfim se reencontra consigo, ou com sua essência negligenciada, na invenção da Biologia. É que, de fato, esta é a primeira vez em que a vida emerge como objeto de uma ciência empírica, e isto por três razões imediatamente constatadas. Primeiro porque, até o século XIX, as produções naturais eram divididas, pelos naturalistas, em três reinos: o animal, o vegetal e o mineral. Dirá Lamarck que, até então, “os seres compreendidos em cada um destes reinos são comparados entre si e como que sobre uma mesma linha, ainda que uns tenham uma origem bem diferentes dos outros”502. Abre-se um imenso hiato entre corpos vivos e matéria bruta, já não é

permitido situá-los num mesmo plano ou interligá-los por alguma nuance. Animais e vegetais possuem a faculdade de se alimentar, de se desenvolver, de se reproduzir, e, o mais importante, eles são necessariamente destinados à morte. A vida ganha uma especificidade, e é dentro deste limite que se inscreve a Biologia.

O quadro teórico traçado por Jacob em A Lógica da Vida aproxima-se, algumas vezes, das posições de Foucault em As palavras e as coisas. Talvez ambos admitam que a influência de Lamarck sobre seus contemporâneos deveu-se menos à proposta de uma gênese do mundo vivo, operada por aperfeiçoamentos em etapas sucessivas, e mais “ao fato de ele ter descoberto no vivo uma unidade que transcende a diversidade, de ter traçado uma fronteira entre o orgânico e o inorgânico, de ter centrado a análise dos corpos vivos em sua organização”503; em suma, de ter talvez inaugurado uma nova 501 CUVIER, 1800, p. 7. 502 LAMARCK, 1809a, p. 91. 503 JACOB, 1983, p. 153.

direção para uma Biologia nascente. Ora, para além de um recenseamento de objetos de conhecimento, há um segundo motivo que confirma a originalidade do aparecimento da vida no centro de uma ciência empírica: uma guinada no que diz a respeito ao caráter para a condução da classificação no interior dos reinos. Canguilhem soube medir bem em que proporção Lamarck continua sendo “um homem do século XVIII, isto é, de uma idade em que as pesquisas em morfologia, fisiologia, etologia dos organismos permanecem dominadas por um imperativo geral de classificação e de ordenação escalar”504. O biólogo segue, em princípio, os passos de seu professor, Buffon.

Reconhece na taxonomia, no enquadramento dos indivíduos em uma escala classificatória, uma ordem arbitrária, nada garante que a verdade sobre a natureza esteja adequada à vontade insondável de seu Autor505. E, no entanto, se porventura artificial, a classificação é necessária quando se trata de fixar o conhecimento sobre uma multidão exuberante de corpos naturais, ou ainda quando se trata de facilitar a sondagem das relações reais que existem entre eles.

A natureza não se deu ao trabalho de estabelecer distinções entre seus objetos, ora, é tarefa exclusiva das ciências naturais colocá-las em evidência, a ordem será então um caos decifrado. Um avanço das ciências naturais depende, em primeiro lugar, de um consenso em torno da nomenclatura, este “sistema de nomes atribuídos seja aos objetos particulares, como cada raça ou espécie de vivente, seja aos diferentes grupos destes objetos, como cada gênero, cada família e cada classe”506. O emprego de uma

nomenclatura universal viabilizaria a comunicação, seja de ideias, seja de observações sobre objetos concernidos por elas. Assim, Lamarck irá compor um mapa biológico, no interior do qual as espécies estarão dispostas em ordem hierárquica.

A Biologia comporta dois reinos, ambos constituídos por “corpos organizados vivos”507: o animal e o vegetal, que se distinguem porque os animais são os únicos

dotados da irritabilidade de suas partes (a irritabilidade é mais do que a faculdade do movimento, do sentimento ou da digestão; seu efeito consiste em “uma contração que sofre, em um instante dado, toda a parte irritável, no contato com um corpo estranho; contração que cessa com a sua causa, e que se renova reiteradamente, após o

504

CANGUILHEM, 2012a, p. 224. 505

Cf. LAMARCK, J. B. P. A. Philosophie Zoologique. Ou, exposition des considérations relatives à l’histoire naturelle des animaux. Vol. II. Paris : de l’imprimerie de Duminil-Lesueur, 1809b, p. 465. 506

Id., 1809a, p. 34. 507

relaxamento da parte”508). As classes são as primeiras divisões gerais que se

estabelecem em um reino, embora Lamarck sustente a divisão entre classes de animais vertebrados e de invertebrados. O marcante deste fato é que o biólogo diz serem artificiais os limites entre as classes, ou seja, há reais continuidades, há uma sorte de progressão sem lacunas entre invertebrados e vertebrados, por exemplo. De todo modo, o reino animal decifrado se diversifica em quatorze classes, a saber, seguindo uma ordem crescente de aperfeiçoamento e complexificação: os Invertebrados: Infusórios, Pólipos, Radiados, Vermes, Insetos, Aracnídeos, Crustáceos, Anelídeos, Cirrípedes, Moluscos; e os Vertebrados: Peixes, Répteis, Pássaros, Mamíferos. No interior de cada classe subsistem ordens como, por exemplo: a ordem dos moluscos céfalos, estes possuem cabeça, olhos etc, e se regeneram (ou se “reproduzem”) através da cópula; e a

ordem dos moluscos acéfalos, que não possuem cabeça nem olhos, e que não dependem da cópula para se regenerar. Em seguida, as famílias, uma porção da ordem natural que é circunscrita na ordem e que, por sua vez, é composta por gêneros. Os limites que circunscrevem uma família são sempre artificiais porque sua extensão e determinação são ainda questões abertas. Gêneros são tais como pequenas famílias, eles designam a reunião de espécies que se aproximam em razão da semelhança entre os caracteres mais essenciais e mais numerosos. Quanto às espécies: “é útil dar o nome espécie a toda coleção de indivíduos semelhantes, que a geração perpetua no mesmo estado contanto que as circunstâncias de sua situação não mudem o suficiente para fazerem variar seus hábitos, caractere e forma”509. Há, para além dessas partes constituintes das ciências

naturais, aquilo que Lamarck irá chamar de distribuições sistemáticas, ou seja, os inclassificáveis, toda uma pluralidade de animais e vegetais que não estão conformados à ordem biológica da natureza.

Estabelecer relações, analogias, semelhanças é determinar parentescos entre os seres vivos. Segundo Lamarck, existem “relações naturais”510, que impedem a flutuação

de opiniões acerca dos critérios a serem tomados, que impedem a arbitrariedade na distribuição metódica dos seres vivos. É o estudo do vivente segundo as partes anatômicas que o compõem, segundo a materialidade do seu corpo, segundo um tipo de enquadramento funcional, que oferece o método sólido para reconhecer “seja a identidade dos indivíduos de uma mesma raça, seja a diferença que existe entre as raças 508 LAMARCK, 1809a, p. 93. 509 Ibidem, p. 75. 510 Ibidem, p. 40.

distintas.”511 É sempre a partir da “organização interior”512, das funções orgânicas dos

viventes, que é estabelecido o caráter para as principais relações dentro de uma hierarquia natural. Na verdade, ele conclui, são as partes essenciais à conservação da vida que fornecem o caráter para as relações entre os animais (ao passo que, entre os vegetais, este é extraído das partes essenciais à frutificação). Relativamente aos animais, portanto, é à anatomia comparada que a zoologia pedirá emprestado os recursos para a determinação das relações.

A consideração da organização interior dos animais, aquela dos diferentes sistemas que a organização apresenta em toda extensão da escala animal, e esta, enfim, dos diversos órgãos especiais, são, portanto, as principais considerações que devem fixar nossa atenção no estudo dos animais513.

Lamarck relata que Lineu interpretou, sob o signo de “animais com membros articulados”, uma vasta série de animais, os quais quis reunir em uma classe única, os

Insetos. Eis uma boa evidência do privilégio conferido aos caracteres exteriores. Lineu simplifica. Lamarck dirige o olhar à organização interior, para então repartir esta multidão de seres “com membros articulados” em três classes, onde a sucessão será sinônima de complexificação funcional: Insetos, Aracnídeos, Crustáceos.

Com efeito, os crustáceos têm um coração, artérias e veias, um fluido circulante, transparente, quase sem cor, e todos respiram por verdadeiros brônquios. Isso é incontestável, e embaraçará sempre aqueles que se obstinam em dispô-los entre os insetos, em razão do fato de eles terem membros articulados514.

Estes animais, com membros articulados e pele crustácea, diferem dos aracnídeos e dos insetos porque apresentam um sistema de circulação não tão empobrecido, já que dotado de um coração muscular; porque seu órgão respiratório, à maneira dos moluscos, se vê desenvolvido na forma de brônquios; porque, segundo Lamarck, revelam os últimos traços de um órgão da audição. Portanto, duas coisas importantes a serem observadas. É a partir do nível de complexidade da organização interior do corpo que se extrairá o critério para a classificação. É neste sentido que 511 LAMARCK, 1809a, p. 42. 512 Ibidem, p. 45. 513 Ibidem, p. 87. 514 Ibidem, p. 177.

Lamarck decide desalojar os crustáceos de sua condição anterior, apesar da aparência das articulações e membros. Em segundo lugar, o estabelecimento de uma hierarquia de viventes a partir de certa relação de importância refletida nos graus de complexidade de suas funções orgânicas. Motivo pelo qual o biólogo dispõe os crustáceos abaixo dos anelídeos, cirrípedes e moluscos, e imediatamente acima dos aracnídeos e dos insetos. Aqui, diz Foucault, “as relações de importância são relações de subordinação funcional”515. O conceito de vida exercerá, em tais condições, um papel de referencial

para a organização do vivente, e, consequentemente, para a situação do organismo, ligado às funções orgânicas que ele comunica, no interior deste novo método de caracterização.

Algumas coisas precisar estar suficientemente claras. Quais são as condições essenciais à existência da ordem e do estado das partes de um corpo para que o mesmo participe da vida? Em outras palavras, em quais condições a vida se revela em seus termos mais primitivos, indispensáveis, fugidios, ou menos complexos, para que aí ela se apresente no que tem de mais geral e comum, permitindo ao biólogo traçar um tênue co-pertencimento de todos os viventes a uma só lógica? Um co-pertencimento que irá remeter também, ao longo de um largo intervalo de tempo, a gradações mais ou menos complexas da organização interior, conforme o vivente se singulariza, modifica-se, irradia-se para além da gênese primitiva da vida. Questões que devem ser dirigidas à extremidade inferior do reino animal, onde perfilam viventes cuja organização é a mais simplificada, como a classe dos Infusórios. Os indivíduos dessa classe se resumem a

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