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Claudio V F Medeiros

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

CLAUDIO V. F. MEDEIROS

O devir do conceito de “meio”entre os séculos XVII e XIX, segundo a História das Ciências de Georges Canguilhem

MESTRADO EM FILOSOFIA

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CLAUDIO V. F. MEDEIROS

O devir do conceito de “meio”entre os séculos XVII e XIX, segundo a História das Ciências de Georges Canguilhem

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Márcio Alves da Fonseca.

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CLAUDIO V. F. MEDEIROS

O devir do conceito de “meio”entre os séculos XVII e XIX, segundo a História das Ciências de Georges Canguilhem

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________ Professor Orientador

Prof. Dr. Márcio Alves da Fonseca Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

____________________________________________ Prof. Dra. Salma Tannus Muchail

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

____________________________________________ Prof. Dra. Vera Maria Portocarrero

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Fernando e Tania, e ao meu irmão, Vitor, pelo carinho e porque deram valor ao que faço. A Marcele, pelo amor, paciência e porque me traz de volta a Ítaca. A Ana Lúcia Felix, porque é linda. Ao meu amigo Nelson Barroso, porque soube ser livre; ao amigo Michel Alessandro, porque ri das coisas sérias; ao meu amigo João Francisco Gabriel, porque sabe dançar qualquer ritmo; ao meu amigo Rafael Furtado, porque é um moderno; ao amigo Anderson L. da Silva, por ser o melhor dos nossos; ao amigo Mario Marino, por ser um challenger; aos amigos Eduardo Testa, Thiago Cavalcanti e Rodrigo Terra, pelo teto, pelas portas abertas, pela rede e porque são queridos por todos os seus alunos; à minha amiga Vanessa Lopo, porque mexe com cerâmica; aos amigos Carlos de Albuquerque e Fernanda Pimentel, pelos socorros com a informática, e pelas subidas para o frio ameníssimo de Teresópolis; ao amigo Eduardo Pereira, porque me ofereceu uma oportunidade; aos meus alunos, porque me ensinaram a falar; ao amigo Ronnielle Lopes, porque é simples, boêmio e padre.

À Professora e amiga Tereza Calomeni, porque existe um dedo seu em quase tudo aquilo que escrevo, e uma saudade em tudo aquilo que recordo; aos Professores Salma T. Muchail, Peter P. Pelbart e Margareth Rago, porque me mostraram a coragem de uma filosofia que se reconhece indigna de falar pelos outros; aos Professores Carlos Arthur R. do Nascimento e Luís F. Bellintani Ribeiro, porque desde então cada aula de filosofia se tornou a derradeira; ao Professor Márcio Alves da Fonseca, meu orientador e amigo, a quem devo a confiança neste trabalho e a possibilidade de levá-lo a cabo.

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Em algum remoto recanto do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais mentiroso e

mais arrogante da “história universal”: mas

também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.

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RESUMO

A dissertação pretende fazer uma experiência analítica da historiografia das ciências de Georges Canguilhem, norteada por algumas conclusões obtidas pelo pensador no artigo “O Vivente e seu Meio” (1946-1947). O artigo em questão narra a história de um conceito científico, ou mais precisamente, a composição histórica das variações de uso e sentido que caracterizaram o conceito de “meio”. Esse conceito inaugurou – ao longo de suas reviravoltas e descaminhos entre os séculos XVII e XIX – a possibilidade da explicação de uma reação orgânica pela ação de um “meio”. Estará em jogo, consequentemente, não só a fecundidade histórica do conceito, mas as relações filosóficas entre o “meio”, entendido como uma categoria historicamente inédita do pensamento, e a individualidade do ser vivo. A dissertação adota o eixo narrativo inicial do artigo de Canguilhem, que recupera a sequência de cinco obras: Princípios de Filosofia (1644), de Descartes; Princípios Matemáticos de Filosofia Natural (1686) e

Óptica (1704) de Newton; Histoire Naturelle, générale et particulière (1749-1788), de Buffon; e Philosophie Zoologique (1809), de Lamarck. Em “O Vivente e seu Meio”,

Canguilhem estende seu recorte histórico até meados do século XX. Nossa análise, porém, concentra-se nas primeiras descontinuidades sofridas pelo conceito. Os desdobramentos do conceito posteriores ao início do século XIX não são objeto de análise na presente dissertação.

Palavras-chave: História das Ciências. Epistemologia. Filosofia Contemporânea.

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ABSTRACT

This work aimed to make an analytical experience of Georges Canguilhem’s historiography of science, guided by some findings obtained by him in the article “Le Vivant et son Milieu” (1946-1947). Such article narrates the history of a scientific concept, in other words, the historical composition of the variations of use and meaning which characterize the concept of milieu. This concept inaugurated – along its overturns and deviations between the XVII and XIX centuries – the possibility of elucidation of an organic reaction by the action of a milieu. In consequence, it’s important to elucidate not only the historical fecundity of the concept, but the relationships between the

milieu, understood as a historically new category of reasoning, and the individuality of the living being. In the consecution of this research, the initial axis of Canguilhem’s narrative will be adopted, which follows the sequence of five works: Principles of Philosophy (1644), by Descartes; Mathematical Principles of Natural Philosophy

(1686) and Opticks (1704), by Newton; Histoire Naturelle, générale et particulière

(1749-1788), by Buffon and Philosophie Zoologique (1809), by Lamarck. The analysis will be concentrated in the first discontinuities of the concept. In “Le Vivant et son Milieu”, Canguilhem stretches the frame of his analysis until mid-twentieth. Such deployments of the concept, which go further the XIX century, will not appear in the analysis of this research.

Keywords: History of Science. Epistemology. Contemporary Philosophy. Georges

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

CAPÍTULO 1. METODOLOGIA E OBJETO NA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS DE GEORGES CANGUILHEM: O QUE ESTÁ EM JOGO NO ARTIGO “O VIVENTE E SEU MEIO”? ... 14

1.1. De que a história das ciências é história? ... 14

1.2. Como? ... 26

1.3. Por quê? ... 38

CAPÍTULO 2. O CONCEITO DE “MATÉRIA SUTIL” NA FILOSOFIA NATURAL DE RENÉ DESCARTES ... 49

2.1. A árvore filosófica de Descartes ... 49

2.2. A arte da relojoaria ... 52

CAPÍTULO 3. O CONCEITO DE “MEIO ETÉREO” NA FÍSICA DE ISAAC NEWTON E A RECEPÇÃO DO CONCEITO NA FRANÇA DE D’ALEMBERT... 64

3.1. Canguilhem leitor de Newton ... 64

3.2. Newton por ele mesmo ... 75

3.3. O meio etéreo e seus fenômenos fisiológicos: D’Alembert leitor de Newton.... 92

(10)

4.1. David Hume e o Conde de Buffon se encontram na Inglaterra ... 106

4.2. A fúria da descrição ... 111

4.3. A temperatura do clima, a qualidade da alimentação e os maus costumes... 122

CAPÍTULO 5. A TEORIA DE MEIO DA PHILOSOPHIE ZOOLOGIQUE DE J.-B.-P.-A. LAMARCK ... 139

5.1. A vida segundo Lamarck ... 139

5.2. As “circunstâncias influentes” ... 154

CONCLUSÃO ... 160

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INTRODUÇÃO

Duas atitudes opostas poderiam comandar a escrita deste trabalho. A primeira seria a análise da biografia intelectual de Georges Canguilhem. Isso se faz explicando-o por seus antecedentes, pelas influências recebidas ou por suas fontes de inspiração. Mas uma biografia intelectual costuma ser também uma biografia autoral, então o que se tem é a crença na unidade-autor, logo seu pensamento é explicado dentro da exigência de se ter arquitetado um sistema. O sistema é o que move o desejo do comentador que contribui com o seu comentário propedêutico. Quando diz o já dito, quando disseca o sistema para traduzi-lo, a decepção pode ser conhecida. Blanchot diz que o comentador é infiel mesmo se reproduz fielmente o texto, “o que ele cita, as palavras, as frases, pelo fato de serem citadas mudam de sentido e se imobilizam ou, ao contrário, adquirem um valor demasiado grande”1. Se diz o não-dito, abre-se precedente para que o pensamento seja extra-ditado da sua autonomia filosófica. O comentário então submeterá questões filosóficas a certa hierarquia de valores, de onde se projetarão autores menores e autores maiores, filiações que simbolizarão patentes, diálogos verticais, pensamentos reduzidos a sistemas ou inteiramente dependentes de analogias com outros pensamentos exteriores.

Espera-se do comentário que ele incite o texto filosófico a manter um diálogo com o mundo das ideias da história da filosofia. Deseja-se um comentador democrata e burocrata.

A segunda atitude, aquela que aqui se busca atingir, consiste em acentuar a experiência já vivida na leitura do texto filosófico. Não acossar, por entre o vão das palavras, seja o dito seja o não-dito, mas tentar refazer a experiência analítica fabricada pelo autor. O texto como experiência, não como teorização. Uma experiência que é um rito de passagem, porque transforma o que se pensa na mesma medida em que retira o idêntico do seu estado morno de repouso. A filosofia que quer romper a placenta da identidade autoral. Michel Foucault dizia que seus livros o ajudavam a desprender-se de si e impediam-no de ser ele mesmo. O que impede o leitor de partilhar esta espécie diferente de empirismo?

1

(12)

O que se quis fazer neste trabalho foi uma experiência analítica de uma historiografia das ciências, norteada pelas conclusões já obtidas por Canguilhem. Mas ao invés de sujeitar o filósofo àqueles que se escondem atrás da sua formação acadêmica, conduzir seu próprio discurso às fontes bibliográficas que o próprio autor submeteu à interpretação. Trata-se de detalhar o fluxo de um pensamento, induzi-lo a algo como uma disritmia.

Propõe-se aqui uma incursão pontual na história das ciências de Canguilhem. Trata-se de investigar o devir do conceito de “meio” a partir do estudo empreendido pelo pensador no artigo “O Vivente e seu Meio” (1946-1947). O artigo narra os componentes simultâneos e sucessivos da história da noção de meio, as suas variações de uso ao longo de quase três séculos. A amplitude do recorte histórico, a pluralidade das fontes referidas ao longo do artigo, e a velocidade com que Canguilhem articula seu discurso, provam que não seria possível acessar este encadeamento de razões pela via do comentário. Foi preciso reconduzir algumas conclusões obtidas em “O Vivente e seu Meio” ao seu material bibliográfico correspondente. Foi preciso repetir a experiência do texto, muito talvez em defesa de um modelo socrático-pedagógico do discurso filosófico, nunca pela obsessão gratuita de querer confirmar os juízos do filósofo.

A dissertação está dividida em cinco capítulos. O primeiro é dedicado a um esclarecimento sobre a unidade metodológica da filosofia de Canguilhem, e à exposição do tema do artigo de 1946-1947. Canguilhem narra as continuidades e descontinuidades sofridas no devir do conceito de meio entre a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XX. A dissertação, no entanto, segue somente o eixo inicial da narrativa do artigo, e reflete sobre o uso operacional do conceito na sequência de cinco obras: Princípios de Filosofia (1644), de Descartes; Princípios Matemáticos de Filosofia Natural (1686) e Óptica (1704) de Newton; Histoire Naturelle, générale et particulière (1749-1788), de Buffon; e Philosophie Zoologique (1809), de Lamarck.

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O terceiro capítulo introduz os Princípios Matemáticos de Filosofia Natural

(1686) e a Óptica (1704) de Isaac Newton. Em seguida, demarca o espaço que Newton dedica ao estabelecimento do conceito de “meio etéreo” em sua obra. Por fim, narra a repercussão e o lugar que o conceito terá para a crítica posterior.

O quarto capítulo trata da teoria de meio em Buffon. Ela emerge na conjunção de duas frentes: uma leitura excessivamente cartesiana da física de Newton, de onde se extrai um componente mecânico; e um componente legado pela tradição dos antropogeógrafos, cuja influência será aqui associada à obra O Espírito das Leis, de Montesquieu.

(14)

1. Metodologia e objeto na História das Ciências de Georges Canguilhem: o que está em jogo em “O Vivente e seu Meio”?

Em uma conferência intitulada “O objeto da história das ciências”2, de 1966, Georges Canguilhem põe em questão o estatuto da história das ciências. A questão se desdobra em três pontos, cujas respostas revelam a clareza do campo de atuação da história das ciências, as opções de método adotadas e a lógica interna deste discurso. Raramente estes três momentos são tematizados conjuntamente na produção histórico-epistemológica de Canguilhem. Assim, a conferência servirá de roteiro inicial para o estudo preliminar de uma obra que, de acordo com Machado, “surpreende por sua homogeneidade temática e sua unidade metodológica”3. Por ora, certos parentescos filosóficos – como é o caso de Gaston Bachelard, François Jacob, ou Michel Foucault – serão invocados para facilitar a compreensão da especificidade metodológica dos trabalhos do historiador. Também serão alçados à discussão certos exemplos sugeridos pela história das ciências de Canguilhem – ou pela bibliografia correspondente – com o simples objetivo de ilustrar a apresentação de alguns conceitos.

1.1. De que a história das ciências é história?

Cabe perguntar a qual domínio do saber as pesquisas em história das ciências se endereçam. Caso a história das ciências fosse classificada como uma espécie de um gênero, diz Canguilhem, ela teria seu lugar ao lado das disciplinas históricas. Tendo em vista sua destinação, haveria de estar localizada na Faculdade de ciências. Porém, se

2

CANGUILHEM. “O objeto da história das ciências”. In: CANGUILHEM, G. Estudos de história e filosofia das ciências: concernentes aos vivos e à vida. Tradução de Abner Chiquieri; revisão técnica de Manoel de Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense, 2012a.

3

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fosse evocada sua metodologia, ela não encontraria lugar mais adequado senão entre as pesquisas em filosofia4. Mas a questão sobre a domiciliação da pesquisa e do ensino da história das ciências é atravessada por uma outra mais fundamental, “a questão De quê?

De que a história das ciências é a história? Que essa questão não seja feita tem a ver com o fato de que se acredita geralmente que sua resposta esteja na própria expressão de história das ciências ou da ciência”5.

Que a história das ciências não seja uma espécie de um gênero se dá pelo fato de não se reportar diretamente à história geral. Mais ainda, se a história das ciências se vale do discurso científico isto não se processa por um arrendamento dos domínios da ciência. Ela é história de um objeto que tem uma história, “enquanto a ciência é ciência de um objeto que não é história”6. Quer dizer, o “objeto do discurso histórico é, com efeito, a historicidade do discurso científico”7. Mas é preciso decodificar um pouco mais a resposta, e Michel Foucault discorre a respeito no último escrito de sua vida. O texto foi publicado em 1985, em um número da Revue de métaphysique et de morale

dedicado a Canguilhem.

A história das ciências, diz Canguilhem, que cita Suzanne Bachelard, não saberia construir seu objeto em outro lugar senão em “um espaço -tempo ideal”. E este espaço-tempo, nem lhe é dado pelo tempo “realista” acumulado pela erudição historiadora nem pelo espaço de idealidade que decompõe autoritariamente a ciência de hoje, mas pelo ponto de vista da epistemologia. Ela não é a teoria geral de toda ciência e de todo enunciado científico possível; ela é a pesquisa da normatividade interna às diferentes atividades científicas (...)8.

Em uma obra de 1977, Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Canguilhem retorna ao ponto: “acentuemos que a epistemologia de Gaston Bachelard foi ao encontro desse problema antes que a história das ciências fosse acusada de o ignorar”9. O problema consiste em questionar a função do das nas disciplinas referidas em história das ciências. Ele continua, valendo-se ainda de Bachelard:

4

Cf. CANGUILHEM,2012a, p. 2. 5

Ibidem, p. 2. 6

Ibidem, p. 9. 7

Ibidem, p. 10. 8

FOUCAULT, M. Dits et Écrits II, 1954-1988. Paris: Gallimard, 2001, p. 1590, tradução nossa. 9

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A maior parte de Rationalisme appliqué é constituída por interrogações sobre as causas e o valor da divisão em “regiões distintas na organização racional do saber” e sobre as relações entre “racionalismos regionais” e um “racionalismo integrante”10.

A epistemologia de Bachelard é referência permanente nos estudos de historiografia científica de Canguilhem, para quem é preciso haver intuscepção recíproca entre os trabalhos do historiador e do epistemólogo. Ora, com o fim de integrar a resposta à questão “de que a história das ciências é história?” seria importante incorrer, ainda que de forma esquemática, a uma tese do racionalismo aplicado de Bachelard. Só assim se esclareceria a que modo a história das ciências – livre da atração pela unidade normativa de toda ciência possível – é necessariamente história de uma região particular do saber científico.

Não há, em Bachelard, uma ciência do geral, assim como não há princípios de organização racional da “cultura científica”11. Semelhantemente, é preciso desabilitar a “filosofia platônica”12 nas pesquisas epistemológicas, recusar-se a ver em toda ideia aplicada uma reminiscência, uma retrospecção, ou um simples retorno à ideia primitiva. Regionalizar é uma necessidade que se impõe à pluralidade de um campo filosófico recém-aberto, e que deixou de comportar repetidas identidades. Regionalizar o espírito, diz Bachelard, “não é restringi-lo. Ele é total desde que esteja vivo”13.

No modelo de racionalismo proposto por Bachelard, “é preciso especificar toda doutrina por sua aplicação”14, neste sentido, é indispensável, no exame das regiões particulares das experiências científicas, “indagar em que condições esses setores particulares recebem não apenas autonomia, mas ainda autopolêmica, isto é, um valor de empresa sobre as experiências novas”15. Regiões do saber não são, portanto, naturalmente dadas. Elas são constituídas, balizadas pelo racionalismo. E isso se ajusta à tese que diz que certos fatos heteróclitos, no momento em que se encontram

10

Ibidem, p. 27. 11

Cf. BACHELARD, G. O racionalismo aplicado. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 31.

12

Ibidem, p. 143. 13

Ibidem, p. 159. 14

Ibidem, p. 199. 15

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encadeados no interior de regiões determinadas, e implicados numa rede de razões, adquirem como consequência o status de fatos científicos16.

Que a terra gira, eis uma ideia antes de ser um fato. Esse fato não tem, a princípio, qualquer traço empírico. É preciso pô-lo em seu lugar num domínio racional de ideias para ousar afirmá-lo. É preciso compreender para apreendê-lo17.

Trata-se, com efeito, de fragmentar o racionalismo com o objetivo de “melhor associá-lo à matéria que ele informa, aos fenômenos que ele rege, à fenomenotécnica que ele fundamenta”18. A tese ganhará em amplitude e visibilidade se for possível encontrá-la refletida em alguns temas oferecidos pelo próprio Bachelard. É o caso da demonstrável impossibilidade de uma Mecânica Racional “generalizada”, impossibilidade que é rapidamente apontada pelo autor em O racionalismo aplicado:

Acreditamos preferível dar um exemplo nítido da regionalidade

recorrendo a um tipo de experiência especial. (...) Se pudéssemos convencer nosso leitor da realidade epistemológica de tais distinções, estaríamos em melhor situação em seguida para examinar as segmentações que definem primeiro o mecanismo como uma região

do racionalismo (mecânica racional clássica) e que, em seguida, se acompanhariam por segmentações das diversas mecânicas modernas (relativista, ondulatória, quântica). Por essa inversão de capítulos esperamos começar uma luta contra o mecanismo ingênuo, simples fisiologia do realismo ingênuo; esperamos preparar a pluralidade filosófica que é a única em condições de abranger o campo filosófico prodigiosamente amplo da mecânica geral contemporânea19.

Bachelard propõe que as especificações que a Mecânica sofreu se deram pela transformação de suas bases internas. Fato que, em grande escala, exemplifica a incoerência de um racionalismo com pretensões de universalidade e, em menor escala, ou seja, dentro do próprio quadro dos fatos mecânicos, torna ainda mais improvável que se consiga sustentar a unidade de uma normatividade. No entanto, é preciso dizê-lo, se Bachelard examina “segmentações”, no sentido de preparar a pluralidade filosófica que emerge nas diversas mecânicas contemporâneas, que não se espere uma adesão à continuidade. A expectativa está na indicação de um movimento fundamentalmente

16

Cf. BACHELARD, 1977, p. 144. 17

Ibidem, p. 145. 18

Ibidem, p. 153. 19

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descontínuo, uma ruptura20, ou melhor, rupturas, que foram condições de possibilidade para a invenção de novas regiões do conhecimento.

Em O novo espírito científico, de 1934, Bachelard anuncia a finalidade filosófica de apreender “o pensamento científico contemporâneo em sua dialética e dele assim mostrar a novidade essencial”21; assim ele o faz, transitando pelos domínios da matemática, da física e da química. Mas com o objetivo pontual de caracterizar a noção de “racionalismo regional”, não será necessário percorrer todos os temas da análise de Bachelard, nem mesmo todos os novos aspectos que a Ciência Mecânica começou a assumir no início do século XX – mecânica relativista, quântica e ondulatória. Pode-se priorizar a Relatividade, como fator de segmentação de aplicação da Mecânica “em duas regiões: mecânica das pequenas velocidades (clássica) – mecânica das grandes velocidades (relativista)”22.

Por exemplo, não seria indiscreto afirmar, junto com Bachelard, que é ingênuo ver em Newton uma antecipação de Einstein. “Não há, portanto, transição entre o sistema de Newton e o sistema de Einstein”23, ou seja, não se vai do primeiro ao segundo pela acumulação do conhecimento ou correção de alguns detalhes. Se o racionalista postula o resoluto progresso das ciências, se a ciência, em particular, não conhece regressão, ou se suas “mudanças de constituição são apodíticos progressos provados”24, isso não significa que o tempo do progresso seja o mesmo tempo da memória ou da consciência. O impulso ao progresso, constituinte do campo de trabalho do racionalista, não é a consciência espelhada, “que proporcionaria uma medida do progresso do pensamento e realizaria psicologicamente os valores de coerência”25. Este

20

Machado (1981, p. 38) assegura não haver flutuações de sentido entre os termos ruptura, fratura e

corte. O que é relevante indicar é que fracture é uma expressão retirada de Cavaillès, e rupture é um termo de origem bachelardiana: “Sem dúvida é evidente que o progresso científico por ruptura epistemológica impõe o frequente refazer da história de uma disciplina que não podemos considerar a mesma, já que sob o seu nome habitual, perpetuando por inércia linguística, se encontra um objeto diferente. Para além da personalidade dos seus autores, não é só pelo volume de conhecimentos acumulados que diferem La logique du vivant (1970), de François Jacob, e a segunda edição (1950) de

History of Biology de Charles Singer, esta diferença reside sim na descoberta da estrutura do ADN (1953) e na introdução de novos conceitos na biologia, sejam os termos conservados da terminologia anterior, como organização, adaptação, hereditariedade, sejam ainda os termos inéditos, como mensagem, programa, teleonomia.” (CANGUILHEM, 1977, p. 25, grifo nosso)

21

BACHELARD, G. O novo espírito científico. Tradução de Juvenal H. Júnior. 3ª edição. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2000, p. 20.

22

Id., 1977, p. 198. 23

Id., op. cit., p. 44. 24

Id., 1977, p. 41. 25

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progresso comporta, na compreensão de um fenômeno novo, não a projeção do cogito

sobre o mastro dos acontecimentos dispostos no desnível do tempo, mas a iminência de um dever de reorganização dos princípios mais elementares de determinado saber. Esse tempo líquido, o devir do progresso, é o contraponto de um tempo totalizante, cuja história seria o teatro de reconciliação do homem com sua identidade metafísica. Aí, a história se concatenaria como que nas páginas de um livro, ela seria a metáfora do texto, ordenada segundo uma rede de razões, simultânea feito capítulos de um diário. A história aí, transliterada em texto, nada mais seria do que o colo do refúgio do sujeito.

O novo espírito científico realiza, dentre outras coisas, o que, doze anos mais tarde, Bachelard mencionaria rapidamente em O racionalismo aplicado: uma revisão do “racionalismo da Mecânica Racional clássica em função das próprias dialéticas que aplicações novas impõem”26. Ele diz:

Os conceitos e os métodos, tudo é função do domínio da experiência; todo o pensamento científico deve mudar ante uma experiência nova; um discurso sobre o método científico será sempre um discurso de circunstância, não descreverá uma constituição definitiva do espírito científico27.

A questão inicial estaria em saber a qual domínio da experiência a Ciência Mecânica, nas formas que assumiu no século XX, estaria se reportando. Canguilhem indica, em um de seus artigos dedicado a Bachelard, que já a partir das Intuições atomísticas, de 1933, o epistemólogo não se refere à ciência moderna como uma ciência dos fenômenos, mas como ciência dos efeitos, os quais são tecnicamente produzidos sem que tais fenômenos possuam equivalentes naturais ou sejam dados à experiência espontânea28. Presentemente, a ciência pensa a partir de seus aparelhos, daí o epistemólogo dizer: a “verdadeira fenomenologia científica é pois essencialmente uma fenomenotécnica”29. Tais indicações permitem enxergar uma das razões pelas quais a Mecânica moderna impõe a regionalização de seus domínios, qual seja, o novo lugar ocupado pelas matemáticas no pensamento científico. Com a Relatividade, a fórmula

26

Ibidem, p. 199, 200. 27

BACHELARD, 2000, p. 121. 28

Cf. CANGUILHEM, G. “Gaston Bachelard e os filósofos”. In: ______, 2012a, p. 202. 29

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matemática deixa de ser linguagem que traduz a experiência. É ela própria “que abre as novas vias à experiência”30:

Por exemplo, se admitimos que a ideia de atração é uma ideia simples e clara, podemos dizer que as expressões matemáticas das leis de atração não fazem mais que precisar casos particulares, que ligar junto algumas consequências, como a lei das áreas, que têm, elas também, um sentido claro e direto na intuição primeira31. Mas nas novas

doutrinas, afastando-se das imagens ingênuas, o espírito científico tornou-se de alguma maneira mais homogêneo: de hoje em diante, ele está inteiramente presente em seu esforço matemático. Ou ainda, para melhor dizer, é o esforço matemático que forma o eixo da descoberta, é a expressão matemática que, sozinha, permite pensar o fenômeno32.

Sem dúvida, mudam-se métodos e conceitos em função da emergência de novos objetos. E uma fenomenologia mecânica deixaria de envolver seus objetos na medida em que estes mesmos objetos deixassem de ser fenômenos, isto é, deixassem de ser objetos de percepção. O objeto da fenomenotécnica é um objeto não dado, nela não são os sentidos que atuam como ponto de referência para a experiência. “É um instrumento matemático”, conclui Bachelard, “que cria a ciência física contemporânea como o microscópio cria a microbiologia”33.

Pode-se insistir no valor da divisão em regiões distintas na organização do saber sem ainda lançar mão do poder de aplicação experimental próprio da Relatividade. Não há continuidade entre o sistema newtoniano e o sistema einsteiniano porque não há simplesmente um aumento da capacidade de precisão nem um alargamento das bases fundamentais, o que se tem é uma retificação de princípios sob os quais o edifício newtoniano esteve até então assentado. Porque, de fato,

não é a propósito da imagem do Mundo, como astronomia geral, que a Relatividade ganhou impulso. Ela nasceu de uma reflexão sobre os conceitos iniciais, de uma colocação em dúvida das ideias evidentes, de um desdobramento funcional das ideias simples34.

Em O racionalismo aplicado, Bachelard mostra que alguns conceitos, denominados “conceitos operatórios”, longe de servirem de resumo das observações,

30

BACHELARD, 2000, p. 55. 31

Sobre a “Lei da atração” e a “Lei das áreas” ver o Segundo Item do Terceiro Capítulo: “Newton por ele mesmo”.

32

BACHELARD, 2000, p. 52. 33

Ibidem, p. 52. 34

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funcionam na verdade como conceitos “operadores de informação. Eles trazem a marca do próprio racionalismo aplicado”35. Talvez o conceito de massa (quantidade de matéria), aplicável segundo o sistema newtoniano, receba tal denominação. Ele é uma ideia simples que, no sentido cartesiano da expressão, corresponde imediatamente a uma natureza clara e absoluta. Na definição da massa newtoniana como “quociente de uma força por uma aceleração”36 se inscreve o papel da substância do móvel, que resiste tanto mais à força quanto mais matéria contém.

A Relatividade, neste ponto particular, vai ser ao mesmo tempo menos realista e mais rica que a ciência antecedente. Ela vai desdobrar uma noção simples, dar uma estrutura matemática a uma noção concreta. Com efeito, a Relatividade fornece a prova de que a massa de um móvel é função de sua velocidade.37

Não se pode, no nível da experiência vulgar, inferir que a massa de um móvel material é infinita caso este se mova na velocidade da luz. Foi preciso que, na matematização de seus conceitos, a Física se expressasse em termos de “possibilidades experimentais”38, para que o conceito de massa, destacado da mecânica newtoniana, deixasse de ser uma ideia simples. “Só por uma desmaterialização da experiência comum”, diz o texto de 1949, “se pode atingir um realismo da técnica científica”39. A Relatividade possibilitou decompor o conceito “entre a massa calculada ao longo da trajetória (massa longitudinal) e a massa calculada sobre uma normal à trajetória, como uma espécie de coeficiente de resistência à deformação da trajetória (massa transversal)”40. Frente a objeções de que tais distinções fossem meramente vetoriais, o mais instrutivo, na exigência de precisão da massa em referência à sua velocidade, é a possibilidade de decompor e complexificar um conceito operatório. É a clara oposição entre uma ideia simples e outra composta que garante a importância filosófica deste tema no contexto do novo espírito científico, e reforça, correlativamente, a regionalização da Ciência Mecânica.

Quase não seria necessário justificar, ao longo deste estudo, as diagonais que ligam, sob relevantes aspectos, os trabalhos dos dois autores. As obras de Canguilhem

35

BACHELARD, 1977, p. 168. 36

BACHELARD, 2000, p. 46. 37

Ibidem, p. 46, grifo nosso. 38

Ibidem, p. 55. 39

Ibidem, p. 160. 40

(22)

indicam com clareza, a biografia não é diferente. Canguilhem foi chamado a suceder a cadeira antes ocupada por Bachelard na Faculdade de Letras da Sorbonne. Em um texto de 1976, diz: “quando ligamos tão estreitamente o desenvolvimento da epistemologia à elaboração de estudos de historiografia científica, nos inspiramos nos ensinamentos de Gaston Bachelard”41. O segundo e o terceiro tópicos do presente capítulo indicarão a reciprocidade entre epistemologia e história das ciências. Por enquanto, é importante reter que Canguilhem fez uso do conceito bachelardiano de “racionalismo regional”. Mas se Bachelard centrou o essencial de seu trabalho no estudo de regiões da matemática, da química e da física, Canguilhem se ocupou prioritariamente de regiões da biologia e da medicina, sem entretanto abrir mão de escrever sobre física, psicologia ou história da filosofia. Não é objetivo do presente estudo propor um panorama temático da obra de Canguilhem, mas é prudente comprovar, na própria obra do historiador, o fato de uma centralidade em domínios “regionais” do saber.

Este aspecto das análises de Canguilhem poderia ser extraído de inúmeras situações. Seja de textos consagrados à medicina, como “Terapêutica, Experimentação, Responsabilidade”42, onde o autor critica a audácia terapêutica e interroga a prática médica em seus meios e fins, em virtude de um progresso técnico sempre inclinado a suplantar a possibilidade de uma ética médica prescritiva. Seja de textos notoriamente propositivos, como O normal e o patológico43, sua tese de doutorado em medicina, onde se desenvolve a tese de que a vida é uma atividade normatizadora, polarizada e, neste sentido, resistente a designações que, através da quantificação de dados fisiológicos, estabelecem universais como normal e patológico44. Há, entretanto, um exemplo muito elucidativo, em um texto publicado em Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, chamado “Sobre a história das ciências biológicas depois de Darwin”45. Neste texto, de 1971, Canguilhem se situa no contexto de publicação de A Origem das Espécies (1859),

41

Cf. CANGUILHEM, G. “O papel da epistemologia na historiografia científica contemporânea”. In: ______, 1977, p. 19.

42

CANGUILHEM, G. “Terapêutica, experimentação, responsabilidade”. In: ______, 2012a, p. 419-429. 43

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Tradução de Maria T. R. de Carvalho Barrocas. 6 ed. revisada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

44

O normal tem a flexibilidade de uma norma que se transforma em sua relação com condições individuais. O patológico, do ponto de vista da fisiologia patológica, também não deve significar ausência de norma. O que se tem, diria Canguilhem, são normas qualificáveis como superiores e inferiores, normas capazes de instituir normatividades diferentes em condições adversas, e, contrariamente, normas desprovidas da capacidade de reação, inclinadas a se adaptar a estados mórbidos.

45

(23)

e tenta entender o estado de algumas questões no plano da “biologia geral ou teórica, deixando de lado, sem as desprezar, bem entendido, a zoologia e a botânica descritivas”46. A tarefa é, num intervalo de tempo de quase um século, entre o XIX e o XX, comparar objetos, instrumentos e métodos de investigação da biologia teórica, com o fim de saber até que ponto a história da biologia “é realmente uma história, isto é, uma sequência de rupturas e invenções”47.

Segundo o autor, pelo menos até meados do século XIX, as ciências biológicas parecem sofrer os efeitos da confirmação newtoniana da cosmologia de Galileu. É como se para, Buffon, para os naturalistas do século XVIII, a natureza fosse representada como um ciclo eterno de movimentos regido por leis que, ainda em Lamarck, estivessem prescritas “com uma finalidade que somente seu Autor”48 sublime conserva secretamente. Canguilhem mostra como a teologia natural chamou Newton em seu socorro quando se tratava de exprimir que as relações dos corpos vivos com o meio “pareciam resultar de uma adaptação somente conseguida por uma solicitude toda poderosa”49. É mais fácil interpretar moralmente a história e ver paradoxos em tudo o que aparenta somente gratuidade. Se a Mecânica clássica derruba teórica e experimentalmente a medieval “ilusão de coincidência com o centro do mundo”50, há de se esperar que este êxito do espírito engendre novos êxitos seguidos, como se o espaço-tempo ideal reivindicado pela história das ciências fosse o palco de progressos simultâneos em todos as direções?

Não é possível fazer história da “teoria geral de toda ciência possível”, dentre outras coisas, porque a “história da verdade não é linear e monótona”51. Foi preciso esperar cento e setenta e dois anos desde a publicação dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, para que aparecesse em Londres A Origem das Espécies, e Darwin despersonificasse a natureza, definindo-a somente como “a ação combinada e os resultados complexos de um grande número de leis naturais. E, por leis, a série de

46

CANGUILHEM, 1977, p. 93. 47

Ibidem, p. 101, 102. 48

LAMARCK, J. B. P. A. Philosophie Zoologique. Ou, exposition des considérations relatives à l’histoire naturelle des animaux. Vol. II. Paris : de l’imprimerie de Duminil-Lesueur, 1809b, p. 465, tradução nossa.

49

CANGUILHEM, op. cit., p. 92. 50

Ibidem, p. 91. 51

(24)

acontecimentos que temos aceitado”52. Foi preciso que a contingência adentrasse a história para que as leis da natureza deixassem de ser naturais53, ou para que o homem perdesse a “ilusão de filiação genealógica singular”54 e constituísse, enfim, uma espécie num quadro classificatório de zoologia. “Antigamente”, diz Nietzsche com um humor que ainda falta a muitas filosofias, “buscava-se chegar ao sentimento de grandeza do homem apontando para a sua procedência divina: isso agora é um caminho interditado, pois à sua porta se acha o macaco”55.

Em suma – e isso é mais importante quando se trata de compreender por que Canguilhem escreve uma história “regional” das ciências –, ele diz, uma “revolução na cosmologia não implica necessariamente uma revolução análoga na biologia”56. E, no entanto, mesmo que cada região científica trilhe a ficção de um tempo próprio, no interior do qual se fabricam novos cenários epistemológicos, com seus objetos, conceitos e métodos particularmente ramificados, não se deve concluir que as regiões sempre guardam distância umas das outras. A obra de Canguilhem, que privilegia a análise conceitual frente a outros aspectos das ciências, que parece encontrar no

conceito a melhor manifestação da historicidade do discurso científico57, não se cansa de presumir, através da confrontação crítica de muitas abordagens, a fecundidade de um conceito ganhando corpo nas diversas formas de sua apropriação e definição. Quer dizer, tendo a história das ciências alçado uma unidade metodológica, e a fundamental consciência de que o discurso científico é caracterizado por regiões, o historiador, por vezes, lança mão das fronteiras de uma história das ciências para constituir “autenticamente uma história do pensamento”58. E o que se assiste, a partir daí, é um florescimento de assuntos: o meio, o normal, o reflexo, os monstros etc. Assuntos que designam conceitos, conceitos que, em vista do seu alcance filosófico, possuem sentido e valor.

52

DARWIN, C. A origem das espécies. Tradução de Eduardo N. Fonseca. 1. ed. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010, p. 70.

53

Será útil retornar, logo adiante, à representação da “natureza” em Lamarck para entender como ela faz por acaso o papel de “obstáculo epistemológico”, caso se tome como referência o ano de 1859, e se lance sobre o passado um olhar recorrente do historiador.

54

CANGUILHEM, 1977, p. 91. 55

NIETZSCHE, F. Aurora: reflexão sobre os preconceitos morais. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, § 49.

56

CANGUILHEM, op. cit., p. 92, grifo nosso. 57

Cf. MACHADO, 1981, p. 26. 58

(25)

É assim que o sentido e o valor da cosmologia galilaica alimentou o conceito de Natureza na História Natural clássica, e impediu momentaneamente uma revolução análoga em biologia, constituindo um verdadeiro “obstáculo epistemológico”. É assim que o conceito de meio, objeto privilegiado deste estudo, possui uma história que, possivelmente, terá o seu fio da origem rompido pelas reviravoltas por ele sofridas, em decorrência, sobretudo, de suas sucessivas migrações para regiões científicas distintas: física, história natural, biologia etc. Se uma certa ciência requer “a determinação do que, na experiência, deve ser tido como real”59, a historia das ciências requer a determinação da historicidade de um discurso científico que deve, antes de tudo, ser tido como contingente. Porém, se, por um lado, “o objeto em história das ciências nada tem de comum com o objeto da ciência”, por outro, é preciso ter em mente até que ponto diz-se que estas duas atividades, ciência e história, convergem para uma preocupação com o problema da verdade.

É importante precisar que quando Canguilhem se refere ao “conhecimento”, não se está falando de outra coisa senão da verdade, da verdade científica. “A filosofia de Canguilhem é uma epistemologia”60, diz Machado, na justa medida em que sua pesquisa concerne à verdade, à “história da relação progressiva da inteligência com a verdade”61. Não a verdade escondida nas coisas desde a aurora do conhecimento, aguardando, na ordem do dia, a profecia do descobrimento, mas a verdade institucionalizada, produto do trabalho de deposição de hipóteses e verificações em função da exposição de proposições objetivas. Diz-se “objetivas” no sentido estrito do termo, já que só pode haver ciência de objetos que admitem medida e explicação causal – ou na medida em que toda ciência tende “à determinação métrica pelo estabelecimento de constantes ou invariáveis”62, segundo suas palavras em O normal e

o patológico.A pesquisa de Canguilhem consiste, enfim, em fazer a história da verdade veiculada pelo discurso da ciência, “entendida como discurso verificado sobre um setor delimitado da experiência”63. Nas belas palavras de Michel Foucault:

Não se pode, na história das ciências, admitir a verdade como adquirida, e já não se pode deixar de fazer a economia concernente ao verdadeiro e à oposição do verdadeiro e do falso. É esta referência à

59

CANGUILHEM, 2012a, p. 10. 60

MACHADO, 1981, p. 17. 61

CANGUILHEM, op. cit., p. 13. 62

Id., 2009, p. 169. 63

(26)

ordem do verdadeiro e do falso que dá a esta história sua especificidade e sua importância. Sob que forma? Tendo em mente que se tem por fazer a história dos “discursos verídicos”, ou seja, de discursos que se retificam, corrigem-se, e que operam sobre eles mesmos todo um trabalho de elaboração determinado pela tarefa de “dizer verdadeiro”64.

Se é a verdade o objeto de análise de Canguilhem, a verdade operada em certas regiões, de certas ciências; mais ainda, os “discursos verídicos” em sua dimensão processual65, histórica, e, portanto, não adquirida, sempre inacabada, pode-se concluir que a história das ciências faz precisamente a história da “veridicidade”66. Por uma dupla razão: porque seu objeto é a historicidade do dizer-verdadeiro e porque o dito

científico, ao invés de representar a verdade, habita o domicílio da verdade. “Se a ciência é o lugar da verdade”, afirma Machado, “é que ela deve estar na verdade, no sentido em que só seus procedimentos são capazes de produzi-la”67.

Conforme a análise for ganhando em complexidade, o perfil do campo de atuação da história das ciências, especificamente canguilheniana, será lapidado com maior precisão. A ponto de se poder situar, como o fez Machado, a análise da descontinuidade não propriamente ao nível de “regiões” epistemológicas, traço marcante da epistemologia de Bachelard, e sim ao nível do conceito, do contexto conceitual e, para além das fronteiras entre os domínios científicos, ao nível da intenção diretriz da formulação e uso dos conceitos.

1.2. Como?

A história das ciências não é o portfolio do progressivo aperfeiçoamento do espírito humano, ou o inventário de revoluções, seja em física, fisiologia, biologia, sendo representadas, como num caligrama, pela biografia de seus atores: Newton, Claude Bernard, Darwin etc. Foucault é preciso ao comentar Canguilhem, é a

64

FOUCAULT, 2001, p. 1588, tradução nossa. 65

Cf. MACHADO, 1981, p. 21. 66

Cf. CANGUILHEM, 1977, p. 20. 67

(27)

“referência à ordem do verdadeiro e do falso que dá a esta história sua especificidade e sua importância”68. Convém desdobrar esta asserção tendo como ponto de apoio outro comentário, desta vez de Machado: uma característica básica da história epistemológica de Canguilhem é “a atenção às descontinuidades que assinalam o nascimento e qualificam o desenvolvimento progressivo dos conceitos”69.

O progresso das ciências nem sempre é linear e contínuo, razão pela qual o historiador deve agregar à sua análise tanto os êxitos, quanto os fracassos e os erros que foram obstáculos para o desenvolvimento de novas verdades. Isto irá precaver o historiador de enxergar na atividade dos cientistas um trabalho de descobrimento de uma verdade que, apesar de oculta, sempre esteve ali, presente, à espera da iniciativa do gênio. Valorizar erros e manter-se atento a obstáculos que surgem ao longo do progresso das ciências – ou, em termos foucaultianos, preservar a referência não só à “ordem do verdadeiro”, mas à “ordem do falso” inclusive – possibilitam abrir, consideravelmente, o horizonte das análises históricas.

Naturalmente, Canguilhem herda de Bachelard esta postura metodológica, que se afasta sobretudo da concepção positivista da história das ciências. Em um texto que, segundo Canguilhem, condensa as investigações e os ensinamentos epistemológicos do

savant francês, Le matérialisme rationnel, de 1953, Bachelard dirige críticas àqueles que ele considera “os continuístas da cultura”:

Já que se faz uma narrativa contínua dos acontecimentos, crê-se facilmente reviver os acontecimentos na continuidade do tempo e se confere insensivelmente a toda história a unidade e a continuidade de um livro. Escondem-se assim as dialéticas sob uma carga de acontecimentos menores. E nisto que concerne aos problemas epistemológicos que nos ocupam, não nos beneficiamos da extrema sensibilidade dialética que caracteriza a história das ciências70.

A metáfora usada por Bachelard sugere o modo pelo qual as verdadeiras dialéticas são como que raspadas do texto da história, semelhantemente às folhas de um palimpsesto. Ao passo que acontecimentos menores, que criam entre si uma contínua (e artificial) monotonia, sobrepõem-se tanto às polêmicas quanto ao descontínuo do progresso científico. Machado adverte que o descontínuo, no texto de Bachelard, não se

68

FOUCAULT, 2001, p. 1588, tradução nossa. 69

MACHADO, 1981., p. 45. 70

(28)

esgota no ato de fundação de uma ciência, não é somente a passagem do pré-científico ao científico que designa o descontínuo do progresso científico. “Mesmo depois de seu nascimento, o progresso, que a caracteriza essencialmente, se realiza por rupturas sucessivas. É este movimento de reformulação do saber que é chamado por Bachelard de dialética”71. Canguilhem não adota o termo “dialética” para definir o movimento incessante de reformulação e ampliação das bases do saber, mas escreve, em 1963, um texto a respeito da acepção do conceito na filosofia bachelardiana72.

A história das ciências não é, portanto, a crônica do progresso da verdade, ela não é a descrição dos episódios passados de uma ciência cuja verdade atual há de ser como que a linha de chegada. Uma tal atitude parece se sentir autorizada a valorar sobre um passado que, justamente por constituir uma anterioridade cronológica, receberia o

status de pré-científico. É o que ele chama, um tanto quanto didaticamente, de “noção positivista da história das ciências”73. Mas Canguilhem opera uma torção destes valores. Uma atitude positivista encobriria “um dogmatismo e um absolutismo latentes”74, que deveriam ser confrontados com um esforço em “pesquisar e fazer compreender em que medida (...) o passado ultrapassado continua o passado de uma atividade para a qual se deve conservar o nome de científico”75. Um esforço em recuar ao passado de uma ciência para reconstituir a especificidade de um momento, reconstituir uma linguagem anteriormente falada. Porque, de fato, tendo sofrido a revisão de seus pressupostos, tendo perdido sua atualidade, a linguagem de uma ciência tende a ser, em seguida, ininteligível. Ainda que de uma perspectiva puramente pedagógica, a compreensão dessa linguagem anteriormente falada parece ser a condição para que se consiga falar das razões de sua negação posterior.

Que fique claro que o interesse do historiador pela ordem do falso, pela “sucessão de tentativas, impasses e recomeços que teve por efeito a constituição daquilo que essa ciência considera atualmente como sendo o seu objeto próprio”76, não é capricho ou apreço por uma erudição burguesa. Sem referência à história das ciências a

71

MACHADO, 1981, p. 37. 72

Cf. CANGUILHEM. “Dialética e Filosofia do Não em Gaston Bachelard”. In: ______, 2012a, p. 207-219.

73

CANGUILHEM, G. “A Teoria Celular”. In: ______. O conhecimento da vida. Tradução de Vera L. A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012b, p. 40.

74

Ibidem, p. 40. 75

Id., 2012a, p. 7. 76

(29)

epistemologia estaria exposta ao risco de encontrar precursores onde não há. “Quantos precursores não foram assim procurados no transformismo darwiniano entre os naturalistas, ou os filósofos, ou somente os publicistas do século XVIII!”77 Se sempre existissem precursores – como quer o positivismo em história das ciências – se a verdade atual sempre estivesse disponível no passado em forma embrionária, “a própria ciência não teria dimensão histórica senão em aparência”78, porque a análise nunca se lançaria efetivamente sobre o passado, porque o passado, graças ao precursor, estaria em constante processo de atualização.

O precursor é um pesquisador, um filósofo, um cientista, mas acima de tudo um símbolo. Os precursores têm a função de ser a fonte de sentido e inteligibilidade para qualquer transformação ou problema teórico que venha a ser discutido futuramente por outro. Sobre este ponto Canguilhem é sempre enfático. Ele lista critérios para que se reconheçam verdadeiros precursores em história das ciências:

Em suma, enquanto uma análise crítica dos textos e dos trabalhos relacionados pelo choque da duração heurística não tiver estabelecido explicitamente que há de um e do outro pesquisador identidade da questão e da intenção de pesquisa, identidade de significação dos conceitos diretores, identidade do sistema dos conceitos de onde os precedentes tiram seu sentido, é artificial, arbitrário e inadequado a um projeto autêntico de história das ciências colocar dois autores científicos numa sucessão lógica do começo ao fim, ou de antecipação à realização79.

Identidade da questão, identidade de significação dos conceitos diretores, identidade do sistema de conceitos de onde os precedentes tiram seu sentido. Sem abandonar a supracitada referência de Canguilhem à teoria da evolução, pode-se utilizar os três critérios para indagar a possibilidade de uma sucessão lógica entre Lamarck e Darwin e pensar, neste mesmo movimento, a crítica dirigida aos precursores em história das ciências.

Identidade da questão: o prefácio de Philosophie Zoologique, de 1809,esclarece a origem dos problemas que percorrem todo o livro:

77

CANGUILHEM, 2012a, p. 15. 78

Ibidem, p. 14. 79

(30)

As condições necessárias à existência da vida se encontram completas na organização menos composta, mas também reduzida ao seu mais simples termo; tratava-se de saber como essa organização, através de causas de mudanças quaisquer, puderam conduzir outras menos simples, e dar lugar às organizações gradualmente mais complexas que nós observamos na extensão da escala animal80.

Em Lamarck, os seres vivos descrevem uma continuidade desde a gênese, uma continuidade do ponto de vista do parentesco, uma progressão do ponto de vista da complexificação da organização. Assim, dos mais simples aos mais complexos, os seres vivos se aperfeiçoaram gradualmente ao longo do tempo, a ponto de poderem ser espacializados no interior de uma hierarquia natural. A natureza, após ter produzido animais aquáticos de toda ordem, conduziu-os “pouco a pouco a viver no ar, primeiro sobre a margem das águas, em seguida sobre todas as partes secas do globo”81. À força das circunstâncias de habitação e dos hábitos contraídos, surgiram irregularidades e anomalias que, dentro da gradação da organização animal, constituem lacunas aparentes. Aparentes ou provisórias, e por motivos muito específicos, seja porque a biologia aguarda o aperfeiçoamento dos domínios estudados, seja porque o homem eliminou algumas espécies, seja porque certas espécies se modificaram e se tornaram irreconhecíveis. Lacunas que de modo algum podem comprometer “uma ordem pré -estabelecida. As mudanças, os progressos, as anomalias aparentes, estão mantidas dentro de limites que eles mesmos não saberiam ultrapassar”82.

O problema é que a questão levantada por Lamarck difere vertiginosamente daquela que parece dirigir a argumentação de A Origem das Espécies: “Como acontece

que uma pequena diferença entre as variedades se amplie a ponto de tornar-se a grande diferença que observamos entre as espécies?”83 Os cinquenta anos que separam as duas obras realçam a singularidade do lugar de onde os dois autores tomam a palavra.

Haveria aí um certo número de coisas que mereceriam ser previamente pensadas e discutidas se o objetivo desta incursão não fosse, tão somente, justificar a crítica de Canguilhem à história dos precursores e, simultaneamente, buscar apreender as

80

LAMARCK, J. B. P. A. Philosophie Zoologique. Ou, exposition des considérations relatives à l’histoire naturelle des animaux. Vol. I. Paris : de l’imprimerie de Duminil-Lesueur, 1809a, p. iv, v, tradução nossa.

81

Ibidem, p. 134, tradução nossa. 82

Ibidem, p. 101, tradução nossa. 83

(31)

precauções de método que delineiam seus escritos histórico-epistemológicos. Fazer justiça a Lamarck significaria, por exemplo, descrever suas reais contribuições para o estabelecimento das bases da Biologia, o descontínuo que emerge em seus escritos se comparados à História Natural de Buffon, as inovações. Três ou quatro notáveis inovações, rigorosamente descritas por Foucault em As palavras e as coisas, de 1966, e que serão invocadas no último capítulo do presente trabalho. A primeira consiste na concepção do ser vivo como uma verdadeira organização, um organismo, ou seja, um corpo como um encadeamento de estruturas que executam aquelas funções necessárias à vida. Em segundo lugar, a própria capacidade de se pensar uma ciência cujo objeto é a vida. A noção de vida, que se reportará à atividade de ordenação das espécies, ou que irá condicionar uma nova abertura epistemológica dedicada às empiricidades e, portanto, divorciada do inorgânico da História Natural. Uma outra seria a quebra do paralelismo na ordenação da multiplicidade das espécies84, e a capacidade de criar verdadeiras relações hierárquicas em função do grau de complexidade das organizações, e aí se inscreveria, naturalmente, uma polêmica decisiva com Darwin.

Onde Lamarck enxerga uma “escala animal”, uma pirâmide de espécies orientadas em direção a uma complexificação que responde às demandas de suas necessidades internas e dos meios, Darwin enxerga “variedades” que lutam entre si pela

preponderância, pela reprodução, pela sobrevivência. Parece não haver, assim, identidade de questão.

Também não há identidade do sistema de conceitos de onde conceitos diretores extraem sentido. A História Natural – e a Biologia de Lamarck, em certa medida – não ultrapassa o plano do imperativo de classificação dos vivos. Seja, por exemplo, quando Buffon e Lineu percorrem pela linguagem a superfície visível das espécies; seja quando Lamarck descreve identidades e diferenças a partir da decomposição operada pelo olhar

84

Talvez a quarta inovação não ganhe um sentido tão adequado senão no cerne de uma arqueologia do saber. Foucault encontra em Lamarck a indicação de uma modificação no caráter que determina a classificação dos vivos. De fato, os efeitos desta modificação poderiam ser sentidos na região própria da biologia teórica, já que é na ordem das funções essenciais ao ser vivo, na complexidade e importância das funções desempenhadas pelos organismos, que passam a estar fundados os critérios para ordenação da escala animal e vegetal. No entanto, a arqueologia não se reporta à historicidade do discurso científico somente, interessa-lhe abarcar a região do “saber”, quer dizer, as leis que regem o modo como as coisas são “percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e sabidas” (FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 9ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 298). As descontinuidades que interessam a Foucault não estão restritas ao dizer-verdadeiro de certas ciências, interessam-lhe os limites daquilo que pode ser amplamente percebido, visto ou dito. “Começa-se”, com Lamarck, mas também com A. Smith, com A.-L. de Jussieu, diz Foucault, “a falar sobre coisas que têm

(32)

em profundidade, ou na constatação da disposição de determinados órgãos, ou na presença ou ausência dos mesmos85. Não há em todo caso, para dizê-lo em um vocabulário foucaultiano, uma ruptura com o jogo das representações. Mas entre Lamarck e Darwin, houve Cuvier – como Foucault atesta – e com Cuvier a fuga de um conhecimento que se quer o duplo da natureza:

O ser vivo era uma localidade da classificação natural; o fato de ser classificável é agora uma propriedade do ser vivo. Assim desaparece o projeto de uma taxinomia geral; assim desaparece a possibilidade de desenrolar uma grande ordem natural, que iria sem descontinuidade do mais simples e do mais inerte ao mais vivo e ao mais complexo; assim desaparece a procura da ordem como solo e fundamento de uma ciência geral da natureza86.

François Jacob – que, em sua obra A lógica da vida, traçou, nas palavras de Canguilhem, “um quadro incomparável”87

da história da biologia – parece ter chegado a conclusões semelhantes valendo-se das divergências entre as leituras que Darwin e Lamarck fazem dos fósseis.

Pode-se imaginar a especial atenção que os séculos XVIII e XIX deram a estes monumentos do passado. Eles tornam evidente que a superfície do globo não foi sempre a mesma. Quer dizer, há formações geológicas que se sobrepõem espacialmente no tempo, e é nessa pacífica indistinção de tempo e espaço que está a sua raridade. A história dos seres vivos é indissociável do tempo da Terra, e as superfície terrestres de outrora, sobre as quais viviam populações de espécies, estão hoje sepultadas em camadas descontínuas de fósseis e rochas. Existem paisagens subterrâneas que preservam idades, muitas vezes, perdidas. O decisivo é que, até Darwin, “a estrutura do mundo vivo, tal como ele é visto atualmente, expressava então uma necessidade transcendente”88

. Talvez Lamarck nunca admitisse “espécies perdidas” no interior de seu sistema, “pois o que desaparece é exatamente compensado pelo que aparece. Nenhuma etapa da escala pode ser escamoteada, nenhum grupo de animais extinguir-se.

85

Sobre estes pontos, recorrer aos dois últimos capítulos desta dissertação. 86

FOUCAULT, 2007, p. 369, 370. 87

JACOB, F. A lógica da vida. Tradução de Ângela L. de Souza. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. Contracapa.

88

(33)

(...) À medida que os organismos ascendem e deixam seu lugar vazio, outros vêm ocupá-lo”89

.

Darwin diverge de Lamarck quanto à leitura destes registros. A comunidade da descendência, com suas rupturas, descontinuidades, extinção de formas intermediárias, revela um “elo oculto (...), e não algum plano de criação desconhecido”90. Rompida a continuidade escalar entre os seres, desaparecem as relações hierárquicas. A natureza91 não projetou uma cadeia hierárquica entre os seres, dos mais simples aos mais compostos, nem conserva os elos desta cadeia em função de uma harmonia preestabelecida por Deus. Na medida em que um “grande número de espécies atuais assemelha-se então a um pequeno número de espécies desaparecidas”92, as comparações entre o número de espécies do passado e do presente podem ser representadas por um cone com a base virada para cima. Darwin retira a necessidade da história, na medida em que nenhuma teleologia se oferece à experimentação, e isso por dois motivos. Primeiro porque existem verdadeiras lacunas na árvore genealógica dos seres vivos. Segundo, porque a “variação dos seres não está necessariamente ligada à ideia de utilidade, de necessidade, de progressão. Ela pode ser gratuita”93. O aparecimento de uma forma nova não tem caráter inevitável, o aparecimento de novos caracteres, a aquisição ou o desaparecimento das partes dos animais não obedece a alguma finalidade necessária.

Na medida em que as variações não são inevitáveis, diria Darwin, elas também não são uma moldagem interessada ou mecânica do meio. A capacidade do vivo de variar é inerente ao próprio vivo. O “meio”, as “circunstâncias influentes”, não são, como quiseram os neolamarckianos94, fatores de ação unilateral sobre os seres vivos, “meio” é sim um resultante de forças em conflito, cuja “seleção natural” é o expoente decisivo. O “meio” – embora Darwin não se utilize do termo – simplesmente dá cabo

89

JACOB, 1983, p. 158. 90

DARWIN, C. L’Origine des espèces, trad. Franç., Paris, 1873, p. 443 apud JACOB, 1983, p. 171. 91

A “natureza”, que pode muito bem ser identificada como um “conceito diretor”, como um “conceito operatório” da História Natural clássica, é caracterizada por Foucault, a partir do pensamento de Cuvier, nos seguintes termos: “Assim desaparece a ‘natureza’ – entendendo-se que, ao longo de toda a idade clássica, ela não existiu primeiramente como ‘tema’, como ‘ideia’, como fonte indefinida do saber, mas como espaço homogêneo das identidades e das diferenças ordenáveis” (FOUCAULT, 2007, p. 370). 92

JACOB, op. cit., p. 168. 93

Ibidem, p. 161. 94

(34)

daqueles menos adaptados para se reproduzirem em condições adversas. Porque os seres não estão isolados, e o que há de relevante nisto é que há uma malha de relações entre eles. À “conservação das variações favoráveis”, e à destruição das que são nocivas, diz Darwin, apliquei o nome de “seleção natural”95

ou de “sobrevivência do mais apto”96 .

O papel do tempo na gênese dos seres vivos foi, até o começo do século XIX, atravessado pela aplicação da noção de necessidade. A necessidade formatava o sistema de conceitos que presidiam os primeiros anos da biologia. Na medida em que Cuvier, Darwin ou Wallace introduzem, no seio das empiricidades, a noção de contingência, deixa de haver “identidade do sistema de conceitos de onde os conceitos diretores tiram seu sentido”. Não há, portanto, em Lamarck, uma antecipação do que viria a ser uma teoria da evolução, pelo menos não diretamente. Não há, inclusive, em razão de um terceiro fator – segundo os três critérios traçados por Canguilhem. É que muitos conceitos diretores, na medida em que decorrem de sistemas de conceitos extremamente singulares, não se correspondem mutuamente. A este respeito os exemplos se multiplicariam. Quais paralelos possíveis entre o que Lamarck denomina “circunstâncias influentes” e a importância relativa que Darwin confere àquilo que ele chama de “condições/ambiente”? Ou, segundo as novas motivações classificatórias do século XIX, como não atentar para a mudança epistemológica que há na negação de uma “escala animal” linear, e a representação da história da vida ganhando corpo na imagem de um centro de irradiação do qual se desdobram raios diversificados?

Muito mais adequado seria, no entanto, pensar o papel do conceito de “espécie” na prática das investigações biológicas. É manifesto o ceticismo de Darwin, que se abstém de discutir as diferentes definições dadas ao termo. “Nenhuma destas definições satisfez completamente a todos os naturalistas, e, contudo, cada um deles sabe vagamente o que quer dizer quando se refere a uma espécie”97. Na verdade, a supracitada questão diretriz de A Origem das Espécies, já põe em jogo a consistência deste conceito. A questão poderia ser levantada em outros termos: Como certas “espécies nascentes”, ou seja, pequenas diferenças entre as variedades, puderam se

95

A expressão “seleção natural” pode parecer controversa ao leitor desatento. Trata-se, na verdade, quando se diz “seleção”, de uma “seleção” sem agente, sem sujeito, porque, inevitavelmente, na luta pela existência e reprodução, o meio conserva ou dispensa as variações mais adaptadas. Ela é “natural”, por outro lado, porque as variações, e adaptações não obedecem a uma necessidade ou finalidade, caso contrário muitas espécies não se extinguiriam.

96

DARWIN, C. L’Origine des espèces, trad. Franç., Paris, 1873, p. 85 apud JACOB, 1983, p. 176. 97

Imagem

Figura 1  –  Fonte: NEWTON, 2012b, p. 180.
Figura 2 – Fonte: NEWTON, 2012a, p. 86.
Figura 3 – Fonte: LAMARCK, 1809b, p. 465.

Referências

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