• Nenhum resultado encontrado

As cláusulas abusivas e a interpretação em favor do consumidor

2. CONTRATOS DE SEGURO E A NECESSÁRIA PROTEÇÃO CONTRATUAL

2.3 As cláusulas abusivas e a interpretação em favor do consumidor

Há condutas que fragilizam a relação contratual. Consequentemente por ser um contrato de adesão, a parte vulnerável na maioria das vezes adere a todas as cláusulas que foram impostas, inclusive as limitativas e abusivas. O Código de Defesa do Consumidor permite cláusulas limitativas:

Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão. (BRASIL, 1990, grifo nosso).

Como se pode ver, é perfeitamente aceitável pela própria lei de consumo o estabelecimento de cláusula limitativa, ainda assim, se mal redigida poderá gerar um profundo desiquilíbrio para ambas as partes. Dito de outro modo, a seguradora deve redigir esta cláusula de forma que o segurado compreenda as limitações da cobertura securitária.

Nota-se a importância de diferenciar as cláusulas limitativas de risco das cláusulas abusivas:

Tenho sustentado que a principal diferença entre a cláusula limitativa do risco, da qual acabamos de falar, e a cláusula abusiva está em que a primeira tem por finalidade restringir a obrigação assumida pelo segurador, enquanto a segunda objetiva restringir ou excluir a responsabilidade decorrente do descumprimento de uma obrigação regularmente assumida pelo segurador, ou ainda a que visa a obter proveito sem causa. E, como todos sabemos, obrigação e responsabilidade são coisas distintas, que não podem ser confundidas.

Portanto, a princípio, as cláusulas limitativas nos contratos de seguro não são vedadas, não sendo consideradas abusivas, devendo estar inseridas no contexto contratual de acordo com o determinado no Código de Proteção do Consumidor. (CAVALIERI FILHO,1996, p. 11 apud MOTA, 2017).

Deste modo, o contrato de seguro permite cláusulas que limitam a obrigação de indenizar do segurador pela impossibilidade de pactuar riscos universais, respeitando a natureza do contrato. Porém, o conflito de interesses se evidencia na necessidade de proteção pessoal ou patrimonial por parte do segurado, e a utilidade de delimitar os riscos para viabilizar eventual indenização. Nessa linha, o rol de incisos do art. 51 do CDC elenca o conteúdo abusivo de cláusulas que podem ser declaradas nulas de pleno direito:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;

II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;

III - transfiram responsabilidades a terceiros;

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

V - (Vetado);

VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;

VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;

VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;

IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;

X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;

XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;

XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;

XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração;

XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais; XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;

XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias. (BRASIL, 1990).

Do ponto de vista de Tartuce, “é entendimento quase unânime que o rol constante desse dispositivo é exemplificativo (numerus apertus) e não taxativo (numerus clausus)”, sendo “desnecessário o rol constante nos dezesseis incisos.”

Em outras palavras, eventualmente podem ser declaras outras cláusulas abusivas que violem o direito do consumidor que não estejam expressas nesse rol. (2017, p.75).

Conforme Bruno Miragem, “o cerne para identificação do que sejam limitações admissíveis da obrigação de indenizar do segurador-fornecedor, de modo a não prejudicar sua causa” está previsto no art. 757 do Código Civil, onde é estabelecida a predeterminação dos riscos. Ainda, o autor entende que “dessa forma, a identificação do risco garantido deve ser precisa, evitando deflagrar um alto nível de conflituosidade por ocasião da identificação do sinistro e reclamação da indenização.” (2014,p. 450).

Fundados na mesma linha de valores, o art. 423 do CC disciplina que será adotada a interpretação mais favorável ao aderente referente às cláusulas contraditórias ou ambíguas nos contratos de adesão. Verifica-se também no art. 47 da Lei Consumerista que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. (BRASIL, 1990).

A título de exemplo, quando acionada para cumprir cláusula limitativa prevista na apólice securitária, a seguradora negou o ressarcimento das despesas do funeral com o argumento que o benefício deve ser acionado em 24 horas do fato. Os familiares do falecido só tomaram conhecimento desta cláusula alguns dias após o falecimento, só então acionaram a seguradora que negou o ressarcimento dos valores gastos. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina evidencia o posicionamento mais favorável ao segurado:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE COBRANÇA – CONTRATO DE

SEGURO DE VIDA – ASSISTÊNCIA FUNERAL – EXIGÊNCIA DE

COMUNICAÇÃO IMEDIATA DO FALECIMENTO DO SEGURADO À SEGURADORA PARA REALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS FÚNEBRES – CLAUSULA CONTRATUAL ABUSIVA – NULIDADE – EXEGESE DO ART. 51, IV, DO CÓDIGO CONSUMERISTA –

INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO CONSUMIDOR – ART.

47 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – COBERTURA

DEVIDA – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – CONDENAÇÃO EX OFFICIO – APELO DESPROVIDO.

"Completamente abusiva e descabida a exigência da seguradora de condicionar o pagamento do auxílio funeral à contato anterior com a

sua central de atendimento, porquanto sabe-se que a morte de um familiar trata-se sempre de um momento trágico e que envolve inúmeras providências imediatas" (TJSC, Des. Sérgio Izidoro Heil). Diante da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à relação existente entre segurado e seguradora, os contratos de seguro devem ser interpretados de forma mais favorável ao consumidor, decidindo-se acerca de eventual dúvida em favor do segurado.

A seguradora deve ser condenada em litigância de má-fé quando obsta processualmente o cumprimento da obrigação advinda do contrato de seguro com fundamentos esparsos e sem força a derruir o direito do segurado, porquanto marchar de forma inversa descreditaria as relações jurídicas como um todo.

(TJ-SC - AC: 159744 SC 2007.015974-4, Relator: Fernando Carioni, Data de Julgamento: 16/08/2007, Terceira Câmara de Direito Civil, Data de Publicação: Apelação Cível n. , de Capital, grifo nosso).

O Tribunal decidiu em favor do consumidor, condenou a segurada ao ressarcimento do valor previsto na cláusula de assistência funeral e declarou nula, com fundamento no art. 51, IV do CDC, a mesma em virtude da abusividade em limitar o período para acionar seguro. Ainda, o relator salienta que conforme o art. 47 da legislação consumerista os contratos de seguro devem ser interpretados de forma favorável ao consumidor.

No mesmo sentido, entendimento do Superior Tribunal de Justiça na análise de cláusula abusiva em contrato de seguro de danos de patrimônio de pessoa jurídica mostra-se atualmente favorável ao consumidor mesmo este não sendo pessoa física.

A ementa colacionada evidencia o posicionamento da Corte, no caso em exame a seguradora alega que a segurada não preenche os requisitos de consumidora final por ser pessoa jurídica, porém, o art. 2º do CDC dispõe que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Sendo aplicada a legislação consumerista:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA DO CDC. CONTRATO DE SEGURO. PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. PROTEÇÃO DO PRÓPRIO PATRIMÔNIO. SÚMULA 83 DO STJ. TRIBUNAL A QUO CONCLUIU PELA NATUREZA ABUSIVA DA

MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA E ANÁLISE DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO. 1. A pessoa jurídica que firma contrato de seguro visando à proteção de seu próprio patrimônio é considerada destinatária final dos serviços securitários, incidindo, assim, as normas do Código de Defesa do Consumidor. Acórdão estadual em consonância com a jurisprudência do STJ, atraindo a incidência da Súmula 83/STJ. 2. O Tribunal de origem, à luz dos fatos e provas, concluiu pelo abuso da cláusula que limita a velocidade dos ventos em caso de vendaval, para o recebimento de indenização securitária. A pretensão de alterar tal entendimento demandaria o revolvimento do suporte fático-probatório e análise de cláusulas contratuais, incidindo, portanto, as Súmulas 5 e 7, ambas do STJ. 3. Agravo interno desprovido. (STJ - AgInt no AREsp: 1392636 SP 2018/0290155-4, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 09/04/2019, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/04/2019, grifo nosso)

Ainda, a seguradora alega com base no art. 757 do CC, que para ser devido o pagamento indenizatório os riscos devem ser predeterminados e expressos na apólice ou no bilhete de seguro. Ocorre que, na cláusula 3.1 do contrato consta que a cobertura para vendaval será para ventos de no mínimo 54 km/h, salienta a seguradora que os ventos que danificaram o patrimônio da segurada atingiram velocidade máxima de 46 km/h, argumento utilizado para não conceder a cobertura securitária.

O entendimento do Tribunal e da Corte Superior, referente a cláusula do contrato que estipula a velocidade mínima dos ventos em casos de indenização por vendaval é abusiva, visto que os ventos atingiram força suficiente para causar estrago ao bem segurado. Inegavelmente, a desvantagem excessiva motivou o STJ em manter a decisão em favor da consumidora.

Logo, é possível notar a crescente judicialização das relações advindas dos contratos de seguros referentes a interpretação das cláusulas limitativas e a busca pela nulidade de cláusulas abusivas. A apreciação pelo Poder Judiciário dessas demandas não exclui a seguradora de possibilitar ao segurado o direito de conhecer o conteúdo regulador das condições gerais e cláusulas predispostas, principalmente as limitativas de risco, como serão analisadas no próximo capítulo.