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2. A ORDEM DE SANTIAGO

2.3. Património e Visitações

2.3.4. As comendas e os outros bens

Um sistema de controlo interno havia sido inicialmente criado pelo Papa Alexandre III, na bula fundacional de 1175, referida por Oliveira (2005), que nomeava visitadores anuais através dos capítulos gerais. Para além da inspeção à atuação local dos freires e representação do mestre na resolução dos “pequenos diferendos e conflitos que punham em risco a coesão interna”76, a partir de 1310, passou a caber explicitamente aos visitadores a providência do tombo de todas as propriedades da Ordem nas suas comendas, bem como indicação da necessidade de intervenções para manutenção de castelos, igrejas e outros edifícios. Cópias desses tombos eram entregues aos visitadores seguintes para facilitar a atualização desses inventários, e garantir a transparência e a rapidez das visitas.

Como se refere nos pontos anteriores, e se pode verificar na Figura 35, a maior parte dos castelos da Ordem distribuem-se pelo Vale do Sado e Vale do Guadiana, acrescentando Aljezur que foi uma doação tardia de D. Dinis realizada nos finais do século XIII. Luís Filipe Oliveira refere que a distribuição dos castelos é evidência física do trajeto que a campanha cristã realizou no sul de Portugal, sob o patrocínio de São Tiago, para ir alargando a segurança da fronteira móvel com milícias e equipamentos, em direção à costa sul. Marques (1986) acrescenta que a estrutura arquitetónica do sistema defensivo, a parte urbana e o termo circundante, constituíam a base da administração e ordenamento do território algarvio após a reconquista.

Tendo D. Paio Peres Correia, mestre da Ordem de Santiago, sido o protagonista da conquista do Algarve, mas prestando este lealdade a ambos os reinos de Portugal e Castela77 - que se debatiam pela posse do Algarve - entende-se que tenha havido relutâncias de D. Afonso III relativamente aos espatários.

76 Salienta Oliveira (2005) que os relatos dos visitadores aos capítulos gerais terão inclusivamente

sido a base de definição de algumas das normas dos Estabelecimentos do séc. XIII.

77 Em consequência do tratado de 1253, que lhe dava vantagem também sobre o governo dos

castelos de Tavira, Loulé, Faro, Paderne, Silves e Aljezur (por bigamia de D. Afonso III, este perdera o favor da Igreja e havia dado estes castelos ao governo de um intermediário – mordomo D. João de Aboim) e que se manteve até ao tratado de Badajoz em 1267, no qual se devolve a D. Afonso III a plenitude jurídica sobre o Algarve, mas continuava Afonso X a exercer a sua influência no Algarve abertamente, por via eclesiástica e com o apoio da Ordem de Santiago, até que em 1270, o Bispo e Cabido de Silves declararam só reconhecer o Rei Português.

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Figura 35: Castelos das Ordens Militares 1248-1367

Fonte: Luís Filipe Oliveira, apresentação no debate “Patrimonialização do Caminho de Santiago desde o Algarve” (2016)

Em 1250, D. Afonso III havia doado, entretanto, ao seu chanceler – D. Estêvão Eanes78 - os bens possuídos outrora pelo mouro Aboaale em Santa Maria de Faro, e que incluíam casas, vinhas, almuinhas, olivais, figueirais e as próprias salinas. Marques (1986) lista também nesse ano a doação do castelo de Albufeira, e tudo o que lhe pertencia no tempo dos mouros, feita por este monarca à Ordem de Avis.

Foi apenas em 1255, com o intuito de transformar D. Paio Peres Correia numa “causa nacional” que D. Afonso III confirmou à Ordem de Santiago a doação dos castelos de

78 A este mesmo chanceler já havia doado esse ano o castelo de Porches, incluindo o termo e o

Dissertação de Mestrado – Marketing Turístico 71 Cacela e Ayamonte79. A partir daí, a Ordem foi reforçando a sua posição e influência no Algarve, mas acabou por ser intimada a renunciar às doações da vila de Tavira, Cacela e Castro Marim, e a acatar outras limitações à sua influência no Algarve, região que constituía significativas diferenças entre Afonso III e Afonso X.

Como os restantes territórios portugueses não foram questionados, nos finais do séc. XIII, a Ordem era já muito rica, tendo segundo Encarnação, Cabanita e Martins (1993) 47 vilas e 150 comendas, além de 75 padroados de igrejas, que no séc. XVI atingiam o valor de 12 mil cruzados.

Conforme se ia sucedendo o controlo do território, ia sendo “encomendada” a um freire a gestão do património que a coroa doava à Ordem 80 . O freire assumia a responsabilidade da administração de determinado lugar, por um determinado período de tempo, dirigindo a vida na comenda, localizada normalmente em vilas ou em cidades, com a ajuda de serviçais e clérigos.

A ausência dos senhores das terras, a falta de mão-de-obra e o desenvolvimento do comércio, a partir do séc. XIII, são razões apontadas por Alves (2011) para o arrendamento progressivo das terras para exploração indireta81. Os senhores ficavam, assim, livres de preocupações com o recrutamento, supervisão dos trabalhos nos campos, e com a adquisição e manutenção de equipamentos, ficando mais disponíveis para a vigilância dos contratos e a extração da renda dos mesmos, ou seja, para a gestão do seu património.

A Ordem de Santiago especificava através das suas revisões à Regra e Estatutos de 1509 e 1542, a realização de contratos de locação com foreiros, com alienação do usufruto dos prédios, ou seja a exploração indireta. Segundo Alves (2011), a renda era a cláusula contratual mais importante para locatários e enfiteutas:

79 Nesse mesmo ano confirmou D.Afonso III a doação dos castelos de Sesimbra, Alcácer do Sal,

Palmela, Almada e Arruda (anteriormente doados por D. Sancho I e confirmados por D.Afonso II.

80 À Ordem de Santiago tinha sido doado quase todo o Baixo Alentejo, a península de Setúbal e

“vários quinhões importantes no Algarve” perfazendo a maior parte do sul de Portugal (Encarnação, Cabanita e Martins, 1993)

81 Este movimento já vinha substituindo a feudalidade ocidental desde o séc. XII, na Europa, e

Dissertação de Mestrado – Marketing Turístico 72 “Os primeiros, ao alienarem o usofruto das suas propriedades, queriam ver-se recompensados através de uma punção que lhes mantivesse o seu estatuto de privilegiados; os segundos, pelo trabalho e melhorias introduzidas nos prédios, necessitavam que ela se adequasse à sobrevivência das suas famílias bem como à obtenção de algum lucro necessário para investir na produção, para proceder à manutenção dos prédio e/ou introduzir neles melhorias progressivas. Destes pagamentos e cobranças nasceram muitas vezes, ao longo do período medieval, conflitos entre uns e outros que resultavam em alterações das rendas estipuladas.” (pág.136)

O locador/ concedente entregava por um tempo variável82 ao enfiteuta/ foreiro uma parcela de terra para ser cultivada, ou para nela construir um edifício, mediante o pagamento de uma renda fixa, em géneros83 ou numerário84, ou parciária, ou seja, parte alíquota dos frutos produzidos.

Alves (2011) considera que ainda assim as instituições eclesiásticas, nomeadamente da Ordem de Santiago, mantivessem no séc. XVI, de forma geral, reservas senhoriais - pequenas hortas, pomares, vinhas e terras de cereal - situadas muitas vezes dentro das cercas dos mosteiros, ou junto das casas, e que seriam a fonte dos produtos para o sustento dos membros das comunidades.

A despeito dos procedimentos cautelosos e até minuciosos das visitações, considera-se difícil identificar a localização das propriedades o que não facilita o presente trabalho. No entanto, apesar de pouco específicas, as referências existentes contribuem para confirmar a presença, tantas vezes esquecida, da Ordem de Santiago em Faro e Loulé, e consequentemente para justificar a concentração das atenções neste “corredor central”, por ser o itinerário terrestre mais próximo das memórias do culto que se prestou a São Tiago no Algarve.

82 No séc. XVI existiam contratos por cláusulas de diferentes tipos: arrendamentos por anos,

emprazamentos por vidas e aforamentos perpétuos

83 As rendas fixas em géneros correspondiam a alqueires de trigo, azeite e aves de capoeira. Quando

associados a pagamentos em numerário, as rendas em géneros constituíam as “direituras” a entregar à Ordem. Ou seja, as direituras são parte da renda devida pela casa, e que podia ser paga em géneros ou dinheiro, ou ambos.

84 Maioritariamente escolhia-se que a renda fosse paga em dinheiro, por um lado porque assim

havia sido articulado pelas Ordenações Manuelinas, por outro porque os enfiteutas teriam na cidade atividades ligadas ao comércio e o pagamento em numerário era mais fácil de realizar e mais seguro contra a incerteza da produção agrícola.

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Figura 36: As Comendas da Ordem de Santiago (séc. XIV)

Legenda: 1. Alcácer (convento) 4. Aljezur 5. Aljustrel 6. Almada 7. Almodôvar 12. Cacela 14. Castro Verde 17. Elvas

21. Mértola (comenda mor) 26. Palmela

30. Mosteiro de Santos 31. Sesimbra

Fonte: Luís Filipe Oliveira, apresentação no debate “Patrimonialização do Caminho de Santiago desde o Algarve” (2016)

Ainda que Faro não tivesse integrado a lista das comendas da Ordem de Santiago, a sua presença aqui foi bastante cuidada, não só pela importância política e religiosa que exerciam através do seu padroado, como visto no ponto anterior, mas também pelo grande atrativo económico associado à fertilidade das terras e do mar, de onde inclusive se extraía o que Alves (2011) refere no seu estudo como a moeda de troca, e de pagamento que dá origem da palavra “salário”. O sal era a base da conservação e condimentação dos alimentos e um dos mais importantes produtos de exportação para o resto da Europa, e os portos algarvios, o de Faro neste caso particular, já mantinham com esses povos relações comerciais por via marítima. O seu carácter de incorruptibilidade, purificador e protetor, atribuía-lhe uma simbologia divina, sendo para os Gregos, Hebreus e Árabes, símbolo da amizade e da hospitalidade, e “da palavra revelada” pelo seu sabor indestrutível.

“Estou convencido de que, no Algarve medieval, Loulé gozava de um estatuto político destacado, senão mesmo de uma certa centralidade.

Dissertação de Mestrado – Marketing Turístico 74 Silves era a sede do bispado e uma cidade prestigiada e importante; Tavira e Faro eram portos marítimos muitos ativos, e Lagos sê-lo-ia cada vez mais.” Luís Miguel Duarte, in Prefácio de A Construção de uma Identidade Urbana no Algarve Medieval – o caso de Loulé de Botão, M.F. (2009)

Após a conquista militar do castelo de Loulé aos muçulmanos, Loulé manteve a mais importante mouraria medieval e uma sólida comunidade judaica, com estatutos sociais, poderio económico, setores de atividade e práticas sociais e familiares específicas. Luís Miguel Duarte alega que, ainda que Loulé se situasse a alguns quilómetros do mar, tinha a ele fácil acesso, mas com a segurança dessa distância que a protegia da constante pirataria muçulmana. Com Faro teria “formado regularmente uma rede de abastecimento, de interesses, de segurança”, completando a oferta da orla costeira com produtos da terra valiosos na exportação: frutos secos, laranjas, vinho e objetos feitos de esparto.

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