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3 DO PEQUENO BOTÃO À FLOR DESABROCHADA: DINÂMICA(S)

3.4 As comunidades imaginadas: o jardim ideal

Até a modernidade, as identidades culturais de uma sociedade eram tidas como parte constituinte na construção da identidade do indivíduo, promovendo nele sensações de segurança, de irmanação com os outros, de acolhimento e de “sentir-se parte” de algo.

Bauman (2012, p. 47), ao constatar que a identidade social “[...] permite que se fale de um 'nós' em que o 'eu' precário e inseguro, possa se abrigar, descansar em segurança e até se livrar de suas ansiedades [...]”, cita Michel Morineau assinalando a necessidade humana de se sentir incluída, afirmando existir:

[...] um desejo básico – o de pertencer, fazer parte de um grupo, ser recebido por outro, por outros, ser aceito, ser preservado, saber que tem apoio, aliados. … Ainda mais importante do que todas essas satisfações específicas, obtidas uma a uma, em separado, é aquele sentimento subjacente e profundo, sobretudo o de ter a identidade pessoal endossada, confirmada, aceita por muitos – o sentimento de que se obteve uma segunda identidade, agora uma identidade social. (MORINEAU, 1987 apud BAUMAN, 2012, p. 46).

No entanto, há que se salientar que apesar de todas essas sensações de pertencimento e identificação parecerem naturais, se fizermos uma leitura mais minuciosa da questão, constataremos que essas identidades culturais também foram criadas tanto quanto as identidades individuais.

Sendo assim, podemos nos indagar sobre o que motiva a construção dessas identidades culturais. Hall (2000, p. 50) pondera que “[...] uma cultura nacional é um discurso – um novo modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações, quanto a concepção que temos de nós mesmos.” A intenção é dar forma a uma nação imaginada, imbuída de tradições, que servirá de alicerce para o indivíduo sentir-se parte de algo que já existia antes dele e que continuará a existir ao longo dos anos.

Posto isto, nos espaços sociais sequiosos por tornarem-se estados-nação, são criadas histórias épicas, cenários, características étnicas, hábitos do cotidiano que são passados de geração à geração, através da literatura, arte, cinema, dentre outros meios, utilizados como mecanismos de propagação do que fora idealizado. Podemos trazer para mais perto de nós essa questão das comunidades imaginadas utilizando como exemplo nosso próprio país.

O Brasil, sendo um país com um passado colonial, visto que este ficou submetido à nação portuguesa por longos anos, precisou, após a libertação do julgo português, criar argumentos sólidos que o elevassem aos olhos do mundo eurocêntrico a categoria de nação independente, dotada de atributos que justificariam sua existência como algo completamente distinto e autônomo de Portugal. A partir de então, iniciou-se um longo processo de construção da identidade nacional brasileira. A começar, a elite que compunha a sociedade na época detinha um grande problema nas mãos: O que fazer, se o povo que constituía o Brasil era negro, índio e português? Como resolver tal impasse? Já que com os portugueses não poderiam se identificar, pois o propósito era justamente diferenciar-se deles e, com os negros o caso se configurava ainda mais tenebroso, visto que esta etnia fora caracterizada até então como animalesca, primitiva e perfeita apenas para o trabalho manual em detrimento do intelectual, restaram duas opções inglórias: uma delas seria aproveitar nossas origens autóctones, romantizando a figura do índio, enaltecendo-a; e a outra seria através do processo

de miscigenação. Sobre tal fato, Sodré (1999, p. 78) argumenta que “a excessiva preocupação ou a reivindicação de uma identidade é o sintoma mesmo de sua ausência ou, pelo menos, de sua formulação problemática” e salienta ainda que:

Existia, certo, a exigência histórica, para as novas elites nacionais, de justificar a sua 'autoctonia', a diferença para com a civilização europeia. Mas existia igualmente uma ambiguidade por parte dos estamentos dirigentes, que os levava a sobrevalorizar como 'superior' a civilização do colonizador europeu, ao mesmo tempo em que tentavam incorporar elementos valorizáveis do território nacional. (SODRÉ, 1999, p. 78).

Tendo em vista que as possibilidades concretas de se constituir o “povo” desta nação só seriam viáveis através do que já existiam – negros, portugueses e índios –, a mestiçagem emergiu como solução viável no sentido de que, através dela, poder-se-ia criar uma ideologia de país democrático, formado por um povo misturado, enaltecendo-se as particularidades consideradas positivas de cada um dos grupos.

Como falava anteriormente, ao tratar das comunidades imaginadas eram utilizados mecanismos variados de propagação das características identitárias, outrora construídas artificialmente para dar rosto a um povo. Aqui se recorreu à adoção do estilo barroco como representação da cultura artística brasileira e, mais adiante, à música erudita de Villa Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e Guerra Peixe.

Surgiram também obras literárias, a exemplo de Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, Evolução Política do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, além dos romances de Jorge Amado, dentre outros, que influenciaram significativamente o imaginário social brasileiro, dando margens à construção da tão desejada e indispensável cultura brasileira através da apologia à mestiçagem.

A partir de todas essas práticas, além das não mencionadas, foi-se forjando uma cultura nacional plena de significados e representações nas quais os brasileiros puderam se ancorar através do processo de identificação. Hall (2000, p. 58), inspirado nas palavras de Ernest Renan (1990) afirma: “Devemos ter em mente esses três conceitos, ressonantes daquilo que constitui uma cultura nacional como uma 'comunidade imaginada': as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança.”

Todavia, apesar de todo esse sistema elaborado para a construção de comunidades imaginadas, a exemplo do Brasil, somos confrontados com uma nova situação: visualizemos agora esse sujeito descentrado inserido em uma sociedade que com ele passou também por

processos de fragmentação de sua identidade cultural. Como essa relação se dá de fato? De que forma esse espaço fragmentado hospeda esse indivíduo também dividido?

Farei menção novamente a Bauman (2012), por compartilhar com ele uma proposta que me parece bastante lúcida. Contrapondo-se ao princípio de que na modernidade líquida, por alguns intitulada de ‘pós-modernidade’, nos deparamos com a existência de inúmeras culturas distintas em uma mesma sociedade, o autor inicia a discussão apresentando uma nova faceta na qual a sociedade é culturalmente múltipla. Isso me faz pensar que a ideia inicial era de que a sociedade constituía um espaço amplo que abarcava culturas distintas, devidamente circunscritas aos seus espaços. Sendo assim, o indivíduo teria a opção de manter-se inserido em uma única cultura na qual se sentia fazendo parte; ou transitaria por uma e por outra cultura, dialogando com cada uma delas de acordo com suas necessidades.

Pois bem, a noção de uma sociedade culturalmente variada permitirá ao indivíduo estar presente na sociedade de uma maneira diferenciada, visto que essa sociedade não está mais configurada a partir de inúmeras culturas compartilhando o mesmo espaço, contendo barragens limitadoras de seus transbordamentos para as outras culturas. Neste sentido, trabalha-se com a perspectiva de que todas as barragens erigidas ruíram-se, desgastaram-se, desdobrando-se na confluência de todas as culturas, interseccionando-se e ocupando, todas ao mesmo tempo, todos os espaços. Desta feita, todas as culturas são elas mesmas, mas também passam a conter parte das outras que a transpassam, nunca mais sendo as mesmas. Logo, Bauman (2012, p. 66), diz que “[...] aceitar ou rejeitar uma forma cultural não é mais algo negociável (se é que já foi); não exige a aceitação ou rejeição de todo o estoque e nem significa uma ‘conversão cultural’.” E, em seguida, afirma:

[O conceito] de identidade não assinala esse cerne estável do self, desenrolando-se do princípio ao fim, sem mudança, através das vicissitudes da história… Nem é esse self coletivo ou verdadeiro se escondendo dentro de muitos outros, mais superficiais ou artificialmente impostos, que um povo com uma história e uma ancestralidade comuns compartilha. As identidades nunca são unificadas, e, na era da modernidade tardia, são cada vez mais fragmentadas e fraturadas; nunca singulares, mas múltiplas, construídas sobre discursos, práticas e posições diferentes, muitas vezes cruzadas e antagônicas. (BAUMAN, 2012, p. 66-67).