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3 DO PEQUENO BOTÃO À FLOR DESABROCHADA: DINÂMICA(S)

3.5 Identidades étnicas

E a identidade étnica, onde ela se coloca quando contemplamos essa sociedade contemporânea culturalmente múltipla, fluida? Frederick Barth (1969), citado por Bauman (2012), acena que:

Categorias étnicas fornecem uma veia organizacional a que se podem atribuir variados conteúdos e formas em diferentes sistemas socioculturais. Podem ser de grande relevância para o comportamento, mas não necessariamente; podem permear toda a vida social, ou ser relevantes apenas em setores de atividades limitados. (BARTH, 1969 apud BAUMAN, 2012, p. 45).

Tentando encontrar uma resposta para a indagação proposta por mim acerca da identidade étnica, especialmente a identidade afrodescendente com a qual venho trabalhando, penso em uma série de elementos que são mobilizados na construção e assunção de identidades que, a meu ver, não deveriam apenas ser adotados tomando como critério basilar os ditames universais ou, ainda, aqueles determinados por órgãos específicos que delineiam seus preceitos ancorados em suas singularidades e especificidades. Sendo assim, a classe social, os aspectos territoriais, a faixa etária, a influência familiar, a relação estabelecida entre a tradição e a modernidade, dentre outros segmentos, são imprescindíveis de serem analisados com vistas à realização de constatações mais acuradas acerca dessa questão. Sobre essa questão, Sansone (2007, p. 12) infere:

As fronteiras e os marcadores étnicos não são imutáveis no tempo e no espaço e, em algumas circunstâncias, a despeito de muitas provas de discriminação racial, as pessoas preferem mobilizar outras identidades sociais que lhes parecem mais compensadoras. Se a identidade étnica não é entendida como essencial, é preciso concebê-la como um processo, afetado pela história e pelas circunstâncias contemporâneas e tanto pela dinâmica local quanto pela global. A identidade étnica pode ser considerada como um recurso cujo poder depende do contexto nacional ou regional.

Partindo desse pressuposto, não podemos simplesmente deixar à margem uma quantidade incomensurável de afrodescendentes que, apesar de se identificarem enquanto tais, não veem a etnicidade como único componente constituinte da sua identidade social. A adoção da terminologia “papéis sociais” se adéqua com perfeição à dimensão ora evidenciada, na medida em que nos são apresentadas cotidianamente uma profusão de funções a serem executadas, uma diversidade de estímulos a serem absorvidos e elaborados e uma infinidade de confrontos a serem “elucidados” e, não raro, optamos por dar relevo a nossa etnicidade somente em circunstâncias específicas. Silva, citando Hall, ao abordar essa questão evidencia:

Embora possamos nos ver, seguindo o senso comum, como sendo a “mesma pessoa” em todos os nossos diferentes encontros e interações, não é difícil perceber que somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos e em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis sociais que estamos exercendo. Diferentes contextos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais. (HALL, 2000 apud SILVA, 2000, p. 30).

No meu caso específico, neste momento, quase concluindo minha dissertação, concebo com clareza, tranquilidade, alegria e respeito a minha identidade como mestiça e, por isso mesmo, afrodescendente. Mas nem por isso deixo de exercer o meu papel político diante desta questão. Certamente estarei sempre atenta a situações que envolvam as relações étnico- raciais e não me eximirei de me posicionar diante de eventos desta natureza, com vistas ao combate ao racismo que é algo lamentavelmente real; à implementação de cotas raciais não só como medida compensatória, mas por desejar ver daqui a dez anos mais profissionais negros e afrodescendentes atuando no mercado de trabalho; à implementação da Lei 10.639/2003; ao conhecimento e orgulho da cultura africana como sendo tão relevante quanto às tradições europeias, indígenas e nipônicas; além de muitas outras reivindicações que já estão postas.

Penso que a tentativa da constituição da categoria “negra”, criada por alguns setores do movimento negro, está inexoravelmente marcada por alguns vetores que têm a origem das suas existências e a manutenção das mesmas no território africano, sendo apreendidas aqui no Brasil muitas vezes como verdades inabaláveis e imutáveis.

Dentre este repertório por nós importado e incorporado se presentificam a valorização a um passado e a uma tradição que involucram as experiências, os rituais, os valores, os sentimentos, as emoções, as simbologias e tantas outras representações do ser negro em um receptáculo hermeticamente fechado e protegido de interferências externas; ou melhor, enganosamente protegidos.

Falar em cultura negra com um sentido muito fechado e estático, por vezes, me parece meio pretensioso e arriscado. A fixidez muitas vezes atribuída a essa questão é inexistente, se partirmos do princípio de que as interações estabelecidas entre o continente africano e as regiões ocidentais promovem, inegavelmente, ainda que não seja na mesma medida, interferência mútua, representada por fluxos e re-fluxos de ideias, comportamentos, crenças, valores e costumes uns dos outros.

Outro detalhe substancial concerne à natureza diversificada da cultura africana, não sendo coerente singularizá-la, situando-a em um estatuto padronizante. Apesar de não conhecer fisicamente o território africano, tive a oportunidade de vivenciar momentos enriquecedores em uma disciplina de Cosmovisão Africana no curso de Pedagogia da UFC, na qual fui monitora da professora Sandra Petit. A cosmovisão à qual nos referíamos era a iorubana e, neste sentido, trabalhamos com os mitos iorubanos, com os orixás, religiosidade, expressões artísticas, indumentária e alimentação, dentre outros itens constituintes da cultura iorubá. Curiosamente, esta disciplina possuía algumas alunas africanas e, com duas delas, tive oportunidade de entabular conversas bastantes vezes. Senti um interesse demasiado em saber

como se sentiam estando em um país que não era o delas, contudo, estudando o que era considerado por pesquisadores brasileiros parte da cultura do continente do qual elas faziam parte. As mesmas estavam bem entusiasmadas com a disciplina e as atividades propostas porque, tanto quanto os brasileiros, estavam adentrando em um universo completamente novo para elas. Ambas eram de Cabo Verde e vivenciavam cotidianamente outro tipo de cultura. O que mais me surpreendeu de todos os relatos foi quando afirmaram nunca terem ouvido falar em orixás.

A partir desse dado, apesar de constituir o relato de apenas duas alunas, de uma determinada região, e de uma determinada classe social, dentre muitas outras variáveis que não poderiam deixar de ser analisadas, é imprescindível que acolhamos a ideia de que pelo menos dois itens interferem na composição do quadro cultural africano. Quais sejam: as interferências externas através das relações extracontinentais e as variáveis internas.

É óbvio que dentro desse arcabouço cultural encontramos elementos comuns a todas as comunidades africanas. Sem dúvida, esse conjunto de preceitos constitui um manancial riquíssimo de atitudes que devem ser preservadas e que agregam valor à qualquer outra cultura. Também estamos cientes de que a definição de cultura negra com um viés mais formatado e padronizado se faz necessária com vistas à realização de pesquisas ou elaboração de propostas dentro de um determinado contexto. Contudo, não podemos olvidar que essa elaboração está posta para atender a determinadas especificidades e que pode não ser interessante e até restritivo generalizá-lo. Segundo Sansone (2007, p. 23):

Por definição, nem todas as pessoas que podem ser definidas como negras num contexto específico participam da cultura negra o tempo todo. Por essa razão, qualquer definição que dermos da cultura negra e que tente apontar para uma essência supostamente universal das coisas negras será um cobertor curto, que não conseguirá cobrir todos os grupos dentro da população negra.

Atualmente, já temos acesso a inúmeros documentários veiculados pelo canal SENAC, pela NBR, pela Cultura, TV Brasil e tantas outras que nos apresentam as “Áfricas” em suas variadas facetas. Entre inúmeros programas que venho assistindo, um deles me chamou muito a atenção por mostrar uma remota comunidade africana ainda realizando os rituais de passagem do homem-criança para o homem-adulto, acompanhados de vários elementos tradicionais, todavia, no momento da troca de roupa que simboliza a passagem literal para a vida adulta, os jovens se paramentam com roupas ocidentais com dizeres em inglês. Os pais, orgulhosos, relatam que as roupas foram os itens mais dispendiosos na

consecução do evento, muitos deles alegando que passarão todo o ano pagando pela roupa do filho.

Eu teria condições de dizer que esta situação é lamentável? Sim, vendo a partir do ângulo da mercantilização, acho essa questão deplorável. É óbvio que meu desejo é que estes meninos não só pudessem usar roupas ocidentais quando desejassem, como também que pudessem ter acesso aos cargos existentes nas inúmeras indústrias e fábricas ocidentais que lá se instalam se apropriando indevidamente de recursos naturais e humanos a baixíssimo custo. Ou melhor, gostaria que fosse possível aos africanos se autossustentarem, através de empresas impreterivelmente locais. Também não posso deixar de salientar aqui que, quando menciono que gostaria que esses meninos pudessem usar roupa ocidental quando assim desejassem, não estou fazendo uma apologia ao ocidentalismo, nem tampouco, deixando de dar a devida importância a tão belíssimas tradições africanas. Contudo, cada vez mais acredito que vivemos em uma era em que somos TODOS apresentados a uma pluralidade de escolhas, em maior ou menor proporção, e diante dessa nova lógica faz-se premente uma ressignificação de valores e adoção de novas condutas, percebendo que a nova lógica do pensamento pós- moderno no faz pensar, a exemplo de Bauman (2012, p. 79), que “A afirmação de um conjunto de valores não mais se faz acompanhar da detração de todos os outros; o resultado é uma situação de comutação constante – experiência enervadora, que torna atraente a promessa a uma ‘grande simplificação’.”

E, concluindo esse capítulo, trago Hall (2003, p. 345), que infere:

Portanto, é para a diversidade e não para a homogeneidade que devemos dirigir a experiência negra. Não apenas para apreciar as experiências históricas, entre as comunidades, regiões, campos e cidades nas culturas nacionais e na diáspora, mas também reconhecer outros tipos de diferença que localizam o negro. Visto que nossas diferenças raciais não nos constituem inteiramente, somos sempre diferentes e estamos sempre negociando diferentes tipos de diferença.