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4 RACISMO ANTINEGRO

4.2 O que é racismo para mim?

4.2.3 Quando fui extraditada do direito de ser negra

Finalmente, após um longo processo de reflexões e reavaliação de vida, culminando na minha assunção à negritude, deparei-me com a dificuldade de ter minha opção racial, aceita pelos outros. Em outras palavras, fui extraditada do direito de ser negra.

Assumir-me como negra para a família, os amigos e demais meios nos quais me encontrava inserida, diga-se de passagem, meios brancos, não foi uma tarefa fácil. A todo instante tinha alguém disposto a refutar minha tão decidida, dolorosa e reivindicada negritude.

Minha mãe foi um exemplo clássico do que considero a negação explícita de algo que por ela foi camuflado e mal resolvido durante longos anos. Sendo eu, um protótipo do ideário Freyriano: filha de mãe branca sem nenhum histórico de ancestrais negros na família, com pai mestiço e avô negro, fui educada acreditando ser morena escura, no máximo, mulata. Os familiares diziam que eu teria sido agraciada pela mistura das raças, o que me reservava o direito de me considerar um exemplo fiel da tão proclamada miscigenação. Tentando acreditar nesta “verdade” dubitável, tentava me munir de tudo o que pudesse me preservar e manter essa minha doce e necessária ilusão.

Que munições eu utilizava? Adorava ouvir músicas que exaltassem a morenice brejeira ou tropicana. Alceu Valença embalou muitos dos meus sonhos acordados, quando escutava músicas como: “Um girassol nos teus cabelos... batom vermelho girassol... Morena, flor do desejo, ai teu cheiro...”, ou ainda: “Morena tropicana, eu quero teu sabor... Ai! Ai! Ioiô! Ioiô!”. E também, quando ouvia Clara Nunes cantando: “Morena da Angola que traz o chocalho amarrado na canela... Será que ela mexe o chocalho ou é o chocalho é que mexe com ela...”.

É óbvio que eu não entendia a natureza sensual de tais músicas, mas sabia que as morenas ali eram enaltecidas e isso me enlevava. Quanto à literatura, os pontos de identificação diminuíam enormemente. Conseguia extrair algumas similitudes entre mim e a Luluzinha (personagem em quadrinhos), porque era a única personagem que tinha cabelos escuros e anelados e não me parecia tão branca quanto todas as outras com as quais eu me deparava.

No que tange às telenovelas, as de época eram meu tendão de Aquiles, porque nelas o negro era sempre escalado para o papel de escravizado, e eu, com toda a minha “mulatice brejeira”, percebia que estava mais para as negrinhas da senzala do que para a bela escrava Isaura. É bem verdade que a escrava Isaura tinha cabelos escuros e levemente parecidos com os meus, mas a tonalidade da sua pele não tinha a menor semelhança com a minha, nem tampouco seu rosto angelical de traços delicados. Se bem que, ainda assim, eu tentava acreditar que me parecia com ela. Quantos esforços, tentando ser algo que nunca poderia ser, mas que era cobrado a todo o instante para que fosse ou que, pelo menos, fizesse de conta que era para não destoar do todo e para não destruir a farsa monocromática da inexistência de negros em nossa sociedade.

E assim, cresci tentando me acomodar às diferenças e ouvindo da minha mãe e demais pessoas que eu era uma bela morena brejeira... Tropicana... Mulata. Contudo, minha mãe, volta e meia, entrava em contradição desapercebidamente, através dos seguintes comentários: “Você não pode pegar muito sol porque já é escurinha e, ficando preta demais, será confundida com a filha da empregada; você não pode usar vermelho porque senão ficará parecendo com o Saci Pererê; não coloque seus cabelos para trás, pois desse jeito você fica parecendo com uma africana”.

Na maioria das vezes, ela falava isso em tom jocoso, sem alcançar a dimensão da dor que provocava em mim. Do jeito torto dela de me amar e me proteger, penso que ela queria apenas me poupar. Talvez, para ela, fosse melhor que eu ouvisse tal comentário dela do que dos outros na rua.

Quando cresci, esses aspectos da minha vida foram totalmente silenciados entre ambas, até o momento em que bradei aos quatro cantos: “Sou negra... Sou afrodescendente... Vejam minha cor!”.

Aí iniciaram os escárnios e zombarias, até que em um belo dia, minha mãe disse com todas as letras que eu estava exagerando, “sendo racista ao contrário” e, o que mais me revoltou: afirmou que eu não era negra, nem afrodescendente. Disse estar cansada de ouvir tantos absurdos absolutamente irrelevantes.

No momento, não tive como argumentar friamente aqueles disparates por ela proferidos, mas me perguntava: como ela pode agora dizer tranquilamente que não sou negra, me colocando, inclusive, numa posição de irracionalidade diante da minha posição deliberadamente refletida e consciente, quando na minha infância, ainda que inconscientemente, deu todos os indícios de que eu era negra?

Conversei com meu pai sobre essa discussão e ele, com sua lucidez invejável, me aconselhou a não tentar convencê-la de que eu estava certa e ela enganada através de teorias e mais teorias. Para ele, a melhor prática a ser adotada por mim seria indagá-la sobre circunstâncias que denotassem racismo, vivenciadas por ambas, e deixasse que ela as respondesse ou não. Certamente, essa postura não a colocaria na defensiva e a levaria no mínimo a uma reflexão sobre o assunto. E assim eu fiz.

Quando os ânimos haviam esfriado, perguntei: “Mainha, de verdade, a senhora acredita que não sou negra?”. Ao que ela respondeu, categoricamente: “Você não é negra, Raíssa. Você é, no máximo… (pensando), mulata. Negras são fulana, sicrana e beltrana (referindo-se a pessoas com traços fenotipicamente negroides bem mais acentuados que os meus)”.

Nessa hora, não ousei utilizar todas as explicações fornecidas pelos estudiosos do que havia por trás dessa aclamada mulatice. Apenas perguntei: “Pois, se não sou negra, por que pedia para eu não pegar sol porque já era escurinha? Por que não podia usar vermelho para não ficar parecendo com o Saci Pererê nem, tampouco, pôr o cabelo para trás para não evidenciar meus traços negroides?”.

Ao concluir minhas indagações, olhei para minha mãe e cheguei a sentir dó, porque percebi que só naquele momento ela tinha se dado conta de fato, sem subterfúgios, do quanto tinha sido racista durante anos e que nem mesmo encontrava palavras para negar ou atenuar tal questão. Não tinha como agir de outra forma. Ela apenas silenciou e passou a evitar entrar em atrito comigo em relação a essa questão. Percebia que quando eu conversava com alguém e externava minha assumida identidade “afrodescendente” ou “negra” (os dois termos que eu costumava utilizar para me autodenominar), ela dava uma piscadela discreta para a pessoa que estava a me escutar.

Eu poderia aqui citar inúmeros exemplos de como me fora negada, em diversas circunstâncias, o direito de ser negra. No entanto, considero este episódio emblemático por tratar-se de uma situação envolvendo alguém muito próximo, que me gerou, me criou tentando acertar e, não tenho dúvidas, que me ama muito e incontestavelmente.