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1.4. AS EXPERIÊNCIAS REFORMADORAS DO PÓS-GUERRA

1.4.2. As Comunidades Terapêuticas

A experiência da comunidade terapêutica surgiu no período do pós-Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no final da década de 50, tendo em Maxwell Jones o seu mais importante representante. A comunidade terapêutica foi uma invenção inglesa que dá os primeiros sinais de vida em 1946, com T.H. Main, em

material publicado no Boletim of the Menninger clinic, onde se fazia referência ao

trabalho realizado por psiquiatras ingleses no Northfield Hospital, com soldados acometidos por transtorno mental (Basaglia, 1994, p. 12).

Surgem, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, duas propostas no sentido de otimizar o tratamento dos soldados que apresentavam distúrbios mentais que os impossibilitavam de permanecer à frente das batalhas: uma baseada nos trabalhos de Simon e outra nos de Bion. O objetivo era tornar a recuperação mais breve, para que esta força de guerra pudesse ser reposta rapidamente. Estas duas experiências têm significativa relevância nas posteriores propostas de transformação do asilo.

Segundo informam Birman e Costa (1994, p. 48), a experiência inglesa incluía as iniciativas dos médicos Bion e Rickman que, reatualizando a experiência de Simon (1903), utilizavam como recurso os grupos enquanto dispositivo terapêutico no tratamento dos soldados. Faziam uso de reuniões diárias e assembléias com os pacientes que contavam com a presença de pelo menos um médico. O trabalho com os grupos resolvia, ao menos em parte, um dos problemas, que era a escassez deste profissional (o médico) em relação ao número de pacientes.

Esta estratégia mostrou-se eficaz, na medida em que conseguiu alcançar o seu objetivo: brevidade no tratamento e retorno dos soldados às suas tropas.

Já a experiência americana esteve sob responsabilidade do médico Menninger que partiu dos mesmos princípios do trabalho de Bion.

A comunidade terapêutica foi influenciada por trabalhos desenvolvidos que tinham como foco os dispositivos grupais. O modelo de comunidade terapêutica desenvolvido por Jones é, portanto, influenciado pelo trabalho desenvolvido por alguns de seus contemporâneos, apontados por Carstairs (1972, p. 5), como os “pioneiros da terapia grupal”: Bion, Foulkes e Main, entre outros.

A situação de final de guerra influenciou a atuação do Estado que passou a se responsabilizar por todos os recursos sanitários, integrando-os a um Plano de Emergência (Desviat, 1999, p.34). Paralelamente, percebia-se que o manicômio não vinha cumprindo com sua função terapêutica. Inversamente, ele começava a ser identificado como o responsável pela cronificação e conseqüente impossibilidade

para a vida laborativa dos alienados. Não obstante, “A reforma dos espaços asilares atualiza-se, então, enquanto imperativo social e econômico ante o enorme desperdício de força de trabalho” (Amarante, 1995, p. 29).

Embora a proposta embrionária da comunidade terapêutica não surja diretamente vinculada à necessidade de reposição de força de trabalho, mercadoria que naquele momento, em virtude das conseqüências da guerra, encontrava-se escassa, a idéia que acaba perpassando a implementação de tal experiência em larga escala era a possibilidade de recuperação de corpos aptos para a produção. É nesta conjuntura que ecoa o discurso de reabilitação dos internos.

Um dos principais objetivos desta experiência era a transformação do hospital em um espaço de cura. Isto seria possível, entre outras coisas, a partir da promoção do envolvimento de todo o corpo presente do hospital, de médicos à equipe de limpeza e apoio, incluindo a família.

A experiência da comunidade terapêutica abre a possibilidade da inserção e valorização da família no tratamento do paciente. Esta aproximação com a realidade dos internos foi possível porque, à medida que o trabalho da comunidade terapêutica sinalizava para a condição de vida (ou sobre-vida) dos pacientes institucionalizados, a sociedade passava a condenar as medidas até então dispensadas para com estes.

A característica essencial desta experiência é a exploração, com finalidade terapêutica, de todos os recursos disponíveis da instituição. Maxwell Jones (1972, p. 88)informa que esta é a distinção mais relevante entre a comunidade terapêutica e outros centros de tratamentos com perspectivas similares. Para Jones a comunidade é constituída de equipe, pacientes e familiares. Neste aspecto a estrutura social da comunidade terapêutica difere, a priori, das estruturas que caracterizam os hospitais tradicionais.

Destarte, uma das características da comunidade terapêutica era a intercomunicação entre comunidade e manicômio, numa perspectiva de troca de experiências. De acordo com esta experiência, o hospital é visto como uma

comunidade. Desviat (1999) informa que existiram vários modelos de comunidade

terapêutica e que, de uma forma geral, seus princípios eram:

 Atividades coletivas (passeios, festas, e outras atividades);  Liberdade de comunicação em todas as direções;

 Participação da comunidade (equipe, internos e familiares) nos processos decisórios de caráter administrativos;

 Reuniões diárias com presença da comunidade para discussão das questões que surgiam;

 Tendência ao rompimento com a tradicional autoridade característica das instituições, incentivando a subsunção da autoridade à tolerância;

A partir dessas especificidades buscava-se uma maior integração entre comunidade e hospital, uma implicação daquela neste e vice-versa, mas também uma implicação da própria equipe profissional nos problemas dos doentes e da vida institucional.

A partir da realização de reuniões comunitárias freqüentes e do desenvolvimento de uma cultura terapêutica69 era possível para a comunidade encarar as distintas problemáticas dos internos.

Um outro conceito que perpassava a experiência em questão era o de “aprendizagem ao vivo”. Segundo Jones, as “crises particulares na comunidade oferecem oportunidades para aprendizagem intensiva ou, como a denominamos, experiências de aprendizagem ao vivo”. A idéia era que todas as questões deveriam

69 A cultura terapêutica deveria ser invocada na tentativa de superar os padrões estabelecidos

anteriormente pela cultura total. “Os tipos de atitudes que contribuem para uma cultura terapêutica seriam basicamente uma ênfase na realidade ativa, contra „custódia‟ e segregação; „democratização‟ em contraste com as velhas hierarquias e formalidades na diferenciação de status; „permissividade‟ de preferência às costumeiras idéias limitadas do que se deve dizer ou fazer; e „comunalismo‟ em oposição à ênfase no papel terapêutico especializado e original do médico” (Jones, 1972, p. 91). Para um maior aprofundamento desta discussão sugiro ver Jones, M. A Comunidade Terapêutica, 1972.

ser discutidas e problematizadas com o coletivo, pois desta forma poderiam “ocasionalmente provocar uma maior consciência de fatores anteriormente inconscientes” (1972, p. 111). Sobre o conceito de aprendizagem ao vivo Amarante (2003, p. 30) assinala: “significa utilizar as situações vivenciadas no cotidiano do hospital como uma forma de exercitar as experiências da vida fora do hospital”. Se o interno consegue minimamente conviver bem coletivamente com as diferenças e peculiaridades de um grupo, possivelmente o faria em outros grupos, fora do ambiente hospitalar.

Havendo discussão coletiva, a equipe se envolve genuinamente com a experiência dos pacientes na seção e fica, no mínimo, em melhor posição para modificar a rotina da mesma ou o procedimento administrativo, assim como estabelecer o melhor cenário para o tratamento (Jones, 1972, p. 109).

Esta experiência buscava, ao menos aparentemente, a descentralização do poder e autoridade que não estavam distribuídos democraticamente dentro da instituição.

Para Franco Rotelli,

A experiência inglesa da comunidade terapêutica foi uma experiência importante de modificação dentro do hospital, mas ela não conseguiu colocar na raiz o problema da exclusão, problema este que fundamenta o

próprio hospital psiquiátrico e, portanto, não poderia ir além do hospital

psiquiátrico (1994, p. 150).

Embora inicialmente definida, pelo conteúdo de suas propostas, como progressista, as experiências de comunidades terapêuticas acabam não instaurando práticas assim definidas e, conseqüentemente, não sustentando seus propósitos iniciais de transformação das relações estabelecidas no interior da instituição. A experiência da comunidade terapêutica não almejava uma horizontalização das relações, proporcionava no limite uma maior participação e estímulo aos distintos segmentos para desempenharem melhor seus „papéis‟. De fato a proposta inicial desta experiência é atravessada pela intenção da construção de uma organização hospitalar diferente, mais democratizada, porém a idéia de uma relação horizontal ainda não estava presente no discurso e tampouco na prática. Isto porque na prática, caso fosse necessário, em virtude de qualquer situação, a autoridade, aparentemente latente, deveria se manifestar.

[...] Aquela que surgiu como uma exigência de renovação fundamental das instituições psiquiátricas caiu no perigo de constituir-se, nas diversas atuações práticas e nas conseqüentes especulações teóricas, em um novo tipo de instituição, mais moderna, mais eficiente, portanto aceita pelo sistema devido ao fato de que, neste, as relações de poder continuam as mesmas (Basaglia, 1994, p. 15).

Não obstante, são inegáveis as contribuições trazidas por esta experiência: situo como uma das mais relevantes a possibilidade de democratização das opiniões, na medida em que a escuta dos internos era incentivada –algo antes impensável. Esta prática – ainda com as limitações sinalizadas – pôde imprimir, inicialmente, nas relações que eram travadas dentro do ambiente hospitalar uma idéia hoje central quando se pensa em assistência à saúde mental: o cuidado com o outro70.