• Nenhum resultado encontrado

2.1. A REFORMA PSIQUIÁTRICA ITALIANA: A EXPERIÊNCIA DE FRANCO

2.1.1. A Tentativa de Humanização do Manicômio

A crítica à psiquiatria clássica, baseada exclusivamente no modelo clínico que privilegiava aspectos como a cura e a remissão dos sintomas, já se insinuava em alguns lugares, porém, aconteceu de forma mais contundente na Itália, com o trabalho desenvolvido pelo psiquiatra Franco Basaglia. Este trabalho teve início numa instituição psiquiátrica em Gorízia, onde foi implantada a experiência da comunidade terapêutica, sendo também desenvolvida posteriormente na cidade de Trieste.

entre outras coisas, do mandato social delegado ao psiquiatra. Basaglia sinaliza que é a partir deste mandato social recebido que o psiquiatra desenvolve práticas de segregação e passa a custodiar os pacientes internados nos hospitais psiquiátricos, “de modo que percam a possibilidade de fazer escolhas autônomas e responsáveis” (1994 p. 23).

A modalidade de comunidade terapêutica que se instalou em Gorízia recebeu influência direta do referencial de Maxwell Jones.

Tal implantação proporcionou a construção de uma outra realidade menos violenta e segregadora. Esta mudança não foi imediata, mas as idéias que a embasariam estavam em parte já semeadas.

O objetivo inicial de Basaglia era o de reorganizar estruturalmente o manicômio, a partir da implantação de práticas voltadas para sua transformação num hospital terapêutico.

No decorrer desse processo os “doentes” foram aos poucos recuperando a sua condição humana, os seus direitos mais simples como o de expor as suas opiniões (ainda que contrárias as da equipe), seus desejos, a possibilidade de fazer escolhas, enfim, um conjunto de coisas que se relacionam diretamente com a condição cidadã.

Obviamente a atitude de dar voz àqueles que estavam a muito tempo silenciados dentro de uma instituição impregnada da história recente de violência e submissão tem muitos desdobramentos. Basaglia percebendo a amplitude do processo que acabava de iniciar, identificou que outras mudanças para além das ações desenvolvidas no manicômio seriam necessárias.

Era preciso que se transformasse o próprio modelo de assistência psiquiátrica, mas especialmente, as relações travadas entre a sociedade e a loucura. Concluiu-se finalmente que a concepção secular da loucura como sinônimo de desrazão e ausência de verdade, de periculosidade e impossibilidade precisava ser tocada e transformada.

156 A função da psiquiatria para Basaglia é a de “sanar tecnicamente a exclusão já atuada pela sociedade,

mais que se concedesse voz aos doentes mentais – silenciados por décadas – havia um limite que precisava ser transposto, para que o movimento iniciado em Gorízia não se tornasse mais uma experiência fadada ao controle do desvio e voltada para a perspectiva da adaptação social: o rompimento com a instituição fechada, com a instituição total e conseqüentemente, com as práticas totalitárias que se desenvolveram em relação à loucura157. Basaglia chega a conclusão da necessidade premente de acabar com os manicômios – expressão concreta da exclusão da loucura158

- e este foi um grande desafio posto ao trabalho desenvolvido por ele em Gorízia, e posteriormente em Trieste.

Mesmo com o passar de aproximadamente vinte e cinco anos, identificamos a necessidade de tocar e transformar a relação social que se tem com a loucura como um desafio atual no processo de reforma brasileiro.

Em relação à experiência italiana, inerente à superação do manicômio estavam a superação dos valores e das funções sociais a ele imputados. Sabemos que as modificações na estrutura não implicam necessária e imediatamente uma equivalente mudança nas relações sociais. As modificações nas relações podem se estabelecer gradativamente159, mas como não há garantias de que estas transformações aconteçam, o desafio que se apresentou para Franco Basaglia, não apenas de abrir os manicômios, mas fundamentalmente de operar uma mudança em nível cultural, ainda se coloca para os trabalhadores de saúde mental na atualidade.

157

A experiência italiana, embora inicialmente apoiada na experiência das comunidades terapêuticas, faz uma crítica aos modelos de reformas que se constituíam como meras propostas de mudanças técnico- estruturais.

158

Entretanto não é exclusivamente o seu fim que soluciona a exclusão dos loucos.

159 Entendemos que as políticas públicas têm um papel fundamental neste processo de reeducação

como, por exemplo, o que é doença mental? E, o que é a psiquiatria? (Amarante, 1996, p. 29).

E argumenta que:

No momento em que a psiquiatria moderna percebe não saber mais nada sobre o que é a doença mental (e, portanto, não saber mais qual seja a sua cura), a crítica institucional descobre que a função do hospital não é mais aquela de reintegrar simplesmente o doente em uma sociedade injusta (Basaglia, 1994, p. 31).

O objetivo de Basaglia não era o de pôr fim à psiquiatria, embora ele entendesse que esta não é capaz de dar conta do complexo fenômeno que é a loucura, e que aquele sujeito é possuidor de outras necessidades que a clínica sozinha não é capaz de abarcar. Ele não negou nem a psiquiatria nem a existência da doença mental e não se autodefinia um “anti” qualquer coisa (á que encontramos em alguns trabalhos a afirmação de que ele foi um antipsiquiatra). O que ele realmente colocava em questão era o conceito doença mental enquanto uma construção teórica devidamente sustentada por um conjunto de outros dispositivos expressos em torno do saber instituído da psiquiatria. A sua proposta foi colocar a doença entre parênteses para que fosse possível se ocupar efetivamente do doente. Nessa perspectiva o cuidado com a “doença

fato de ser percebido como um cidadão.

Não obstante, uma das preocupações de Basaglia era a possibilidade de se transitar de uma instituição baseada no signo da violência (o manicômio) para outra baseada na idéia da tolerância (o que os serviços territoriais poderiam e podem se tornar). O perigo desta transição reside no fato de que a base da relação, que está no poder, não é totalmente alterada, podendo manter-se sob o véu da complacência. Sob tal perspectiva a loucura se transformaria em algo que se suporta, em algo que a sociedade tolera.

Um caminho alternativo à tolerância é a construção das relações baseadas na solidariedade, de práticas efetivamente inclusivas, onde, acreditamos, as políticas públicas assumem um papel fundamental. Quanto à prática da tolerância, Basaglia adverte:

O doente mental confrontou-se até agora ou com a sanção ou com a tolerância: na verdade, seu sofrimento, sua diversidade sempre foram ou invalidados ou ignorados [...] Mas a alternativa à sanção não pode ser, também neste caso, a simples tolerância da “loucura”, e sim o aprender a suportar um confronto com o outro que só parece real e significativo quando o sofrimento não é isolado em lugares e ideologias que se encarreguem dele (2005, p. 255).

Numa sociedade capitalista, em que os valores próprios do mercado acabam sendo transferidos e introjetados pelos sujeitos nas suas relações sociais e levados para esfera da vida privada (Luz, 2003), a diferença não encontra acolhida. Tampouco as políticas públicas, de uma forma geral, se orientam para isto. Entretanto, estas devem estar atentas para a inclusão dos segmentos tradicionalmente excluídos e sem lugar na atual lógica social no sentido de superar a prática da tolerância e de apontar para a construção de outra lógica social menos excludente e homogeneizadora.

160