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2.1. A REFORMA PSIQUIÁTRICA ITALIANA: A EXPERIÊNCIA DE FRANCO

2.1.2. A Superação do Manicômio

Trieste recebe Franco Basaglia em outubro de 1971. Lá ele dispara um processo de desconstrução do aparato manicomial. Paralelamente a este processo foi construída uma rede de atenção à loucura que se pretendia diferenciada, e cujo pressuposto não era a exclusão como condição de tratamento.

Na cidade de Trieste, que contava com pouco menos de 300 mil habitantes (Rotelli, 1994) à época, foram construídos no lugar dos manicômios (e não para substituí-los no sentido de manter a mesma lógica) cerca de sete centros de saúde mental. Cada centro abrangia entre 20 e 40 mil habitantes. O seu funcionamento era em tempo integral, ou seja, 24h por dia, sete dias por semana. Esses serviços atuavam na perspectiva do território respondendo as demandas do bairro/comunidade onde estavam inseridos. E a característica principal desse novo serviço era as suas portas abertas, tanto para quem queria entrar, quanto (e principalmente) para aqueles que queriam sair161. Enfim, um modelo de assistência não manicomial voltado para o “doente” e não para a doença.

Um dos pressupostos fundamentais para esta ruptura com a forma de tratar a loucura foi o entendimento de que o psiquiatra e a psiquiatria, na forma tradicional, só havia encontrado, até então, soluções negativas para a “doença mental” - exclusão social, silenciamento, violência (Basaglia, 2005).

161 Hoje a cidade de Trieste conta com cerca de 280 mil habitantes. A rede de saúde mental lá existente é

composta por sete Centros de Saúde Mental, que funcionam em sete zonas da cidade. O hospital psiquiátrico foi desativado. E encontra-se em funcionamento desde 1980 no hospital geral o Serviço Psiquiátrico de Diagnóstico e Cura (SPDC), que corresponderia a uma emergência psiquiátrica. Existem ainda 3 cooperativas de trabalho, 21 moradias de grupo hospedando atualmente 130 pessoas (Dell`Acqua, 2005).

cuidado. Todo esse complexo processo que foi construído acaba por consubstanciar a proposta italiana de desinstitucionalização163, no que tange ao campo da assistência à loucura.

O trabalho iniciado na Itália buscou superar o paradigma centrado na doença, procurando entender o homem antes de tudo como um sujeito complexo – integral - detentor de múltiplas necessidades. Essa posição foi fundamental porque rompeu com a tradicional classificação do sujeito que está em sofrimento como um “doente mental” incapaz de realizar produções164 relevantes.

Basaglia tentou recuperar a complexidade da loucura que foi simplificada pelo paradigma clínico, e principalmente da relação para além da doença e do lugar destinado a ela. Objetivou, entre outras coisas, resgatar a relação daquele sujeito complexo com si próprio, com a sua família, com a sociedade, enfim com a rede de relações que se encontram implicadas na vivência de cada um.

Para este psiquiatra, a instituição manicomial se caracterizava por uma forte e rígida divisão de poder: os que o detinham e os que não o detinham. Conseqüentemente, toda relação travada no interior da instituição tinha a marca desta divisão desigual, traduzindo-se numa relação de opressão e violência entre os distintos segmentos presentes. Por isso a importância de construir uma rede de assistência que não fosse baseada na violência e na hierarquização dos papéis.

Em seu trabalho, Basaglia privilegiava a “primazia da prática” (Basaglia, 1996 apud Amarante, 1994), o que nos sugere a necessidade de existência de uma prática transformadora - que aqui chamamos de práxis - que não se restrinja a uma mera

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Residências para os usuários morarem.

163 Segundo informa Barros (1990), o termo desinstitucionalização surgiu nos EUA nos idos da década de

60 para designar a retirada dos pacientes dos hospitais e a reinserção dos mesmos na comunidade. Nos distintos movimentos de reforma psiquiátrica que se desenvolvem no pós-guerra, inicialmente na Europa, ele vai adquirindo sentidos diferentes. Contudo, neste trabalho nos referimos ao termo desinstitucionalização a partir do sentido a ele conferido pela reforma italiana. Entendemos que outros movimentos de reforma cuja proposta de retirada dos pacientes dos hospitais não veio acompanhada nem da criação de uma rede territorial, nem de um esforço de reconstrução do lugar social destinado a loucura trabalham com o pressuposto da desospitalização.

Essa prática deve ser reinventada cotidianamente, deve ser questionada e transformada no dia-a-dia por tantas vezes quantas sejam necessárias para que em alguma medida possa responder às necessidades desse sujeito complexo, devendo também ser alvo de reflexão para que não caia no processo de „naturalização do fazer‟.

Entretanto, o fato da supressão do manicômio não resolveu, não resolve e não resolverá por si só a problemática da loucura165, e aqui estamos nos referindo não só a todas as expressões da violência para com os loucos, como também a sua exclusão social (já que fora dos muros que os cercavam, eles continuavam sob o véu dessa mesma exclusão, talvez agora um pouco mais sofisticada). Para além da substituição ou extinção dessa instituição descontaminada166 (Rotelli, 2001) é necessário todo um trabalho em nível de re-educação cultural.

Na Itália, a normatização da Reforma Psiquiátrica ocorre a partir da aprovação, em 1978, de uma lei que proibia novas internações em manicômios, e que preconizava a sua progressiva extinção e a criação de novos serviços instalados no território para atender a demanda em saúde mental.

A aprovação da Lei 180 ou Lei Basaglia como também é conhecida, tem conseqüências importantes, sendo uma das principais a dissociação da causalidade entre a doença mental e a periculosidade, que certamente era um impeditivo para se pensar qualquer nível de cidadania para os “doentes mentais”.

Ao longo da história a expressão doença mental foi dotada de um significado negativo, portanto ao taxar um sujeito desta forma incorremos no risco de que ele seja estigmatizado e passe por um processo de desvalorização.

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Tampouco o processo de desinstitucionalização se realiza/se esgota no ato de abrir as portas do manicômio. Este é o seu ponto de partida.

166 Rotelli usa a expressão “instituição descontaminada” em oposição ao que ele chama de “instituição

inventada” que seria o lugar onde se promovem a emancipação, as trocas sociais, o surgimento de atores sociais, enfim, que promove a vida. A “instituição inventada” não é outra coisa que não a conseqüência do processo continuado de desconstrução dos saberes, da prática, das ideologias, do cotidiano nos serviços.

enquanto sujeito que constrói a própria história e que detém a sua forma de estar nesse mundo. É relevante, porém, ter claro que falar da cidadania do louco considerando-a apenas como um conjunto de atributos formais167 é algo complexo tendo em vista que em muitos países (inclusive no Brasil), outros segmentos da sociedade menos estigmatizados ainda enfrentam vários obstáculos para garantir a sua cidadania.

Por outro lado, como sinaliza Bezerra (1992), como pensar a cidadania – enquanto pleno exercício de direitos e deveres – para um segmento que ao longo do período em que o próprio conceito de cidadania se desenvolveu foi mantido sob a tutela de um ator institucional e efetivamente excluído do tecido social?

Do ponto de vista da cidadania formal, Marsilgia justifica a necessidade de uma luta específica para a concretização da cidadania para os loucos:

A cidadania para o doente mental é um processo mais obstacularizado do que a cidadania do conjunto da população brasileira: o avanço da cidadania dos doentes mentais não ocorrerá se não houver um avanço como um todo, da cidadania de todos os segmentos da população. Entretanto, também não lhe será suficiente este avanço, porque os doentes mentais estão numa situação específica na sociedade, o que demandará uma luta específica para que seus direitos venham a ser admitidos.(Marsilgia, 1987, p. 13-4)

Entretanto, entendendo o limite da cidadania formal para o segmento da loucura, houve a necessidade, informada pelo próprio nosso de estudo, de trabalhar com uma concepção ampliada da noção de cidadania, que não esteja limitada ao pressuposto da igualdade168.

Young (1990) afirma que quando a concepção de cidadania é a mesma para todos, na prática isso se traduz no requisito de que todos os cidadãos sejam iguais, o

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O que não é o caso deste trabalho.

segmentos com trajetória distinta, como é o caso do acesso e da condição de trabalho entre mulheres brancas e negras, ou o acesso dos negros à universidade.

Partimos do princípio que outros aspectos são essenciais para compor o que venha a ser a cidadania, especialmente quando nos referimos a determinadas maiorias percebidas como minorias e com trajetórias tão específicas, como é o caso dos “doentes mentais”. Este debate será retomado no próximo capítulo.