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1. Do orientalismo ao orientalismo português

1.2. As construções do discurso acerca do Oriente

O orientalismo, há que começar por deixá-lo claro, não é apenas um termo que permita conferir unidade a uma tópica nem é, em si mesmo, um tópico. Enquanto termo crítico, identifica um discurso que mobiliza um conjunto de representações, no seio do qual o Oriente é constituído enquanto repositório de imagens e de tropos, bem como de noções axiológicas. Daqui deriva que o Oriente é, em rigor, mais um construto imagético e nocional do que um conceito. O discurso orientalista é formulado como uma série de postulados – operativos nos planos ontológico e epistemológico – veiculadores de um essencialismo cultural, quer de valor negativo, quer positivo, acerca de um outro que não é, todavia, uma entidade estável nem independente de um si. Este último percepciona – ou cria, num certo ponto de vista – o primeiro enquanto seu negativo, numa intrínseca complementaridade. Na sua representação discursiva, o outro oriental encontra-se assim dotado de atributos ontológicos fixos e imutáveis que são o

inverso de tudo o que o sujeito enunciador é ou pretende ser. Trata-se, neste último sentido, de um discurso cultural de marcado perfil etnocêntrico.

Em L’Archéologie du Savoir (1969), Michel Foucault define discurso como o “conjunto dos enunciados que relevam de um mesmo sistema de formação; e é assim que poderei falar de discurso clínico, discurso económico, discurso da história natural, discurso psiquiátrico” (Foucault, 1969: 149). Trata-se de um conjunto de práticas que constitui os objectos acerca dos quais se elaboram enunciados. A investigação do pensador francês dirige-se às condições de possibilidade por via das quais os discursos se formam e subsistem em termos históricos, visando entender a forma como sustentam determinadas práticas sociais. Na sua concepção, o processo implica uma imposição retórica de tais práticas enquanto regime auto-regulado que constitui uma verdade. Como afirmam Childs e Fowler acerca do pensamento foucaultiano: “Truth is the unrecognized fiction of a successful discourse” (Childs, 2006: 60). Quer dizer, o orientalismo, enquanto discurso, impõe-se como uma verdade produzida em termos retóricos e determinada em termos históricos. Um discurso bem sucedido, como o orientalista, é aquele que logra impor-se retoricamente, operando como um conjunto de enunciados incontestáveis. No ponto seguinte, desenvolver-se-á a forma como a concepção de Foucault, bem como a de Edward Said, se sustentam na perspectiva nietzscheana nos termos de uma cisão entre a representação e o que o filósofo alemão, em 1903, designa como a “coisa em si”.

Foucault deixa, contudo, claro que as regras que organizam o discurso não são apenas formais e linguísticas, mas também materiais e sociais. A “ordem do discurso” põe em marcha mecanismos que organizam o mundo através da produção de saberes. Segundo o autor francês discorre em a Ordem do Discurso (1970):

(...) the production of discourse is at once controlled, selected, organised and redistributed by certain numbers of procedures whose role is to ward off

its dangers, to gain mastery over its chance events, to evade its ponderous, formidable materiality (Foucault, 1970: 52).

Os discursos, na medida em que se assumem como sistemas apertados de controlo e de vigilância, gerem os próprios meios de representação e os sujeitos envolvidos no processo, bem como, em segundo plano, as representações predominantes circulando num dado momento histórico. É num sentido similar que Said percepciona o orientalismo como um sistema de representações que sobrevive em auto-gestão, isto é, um discurso gerador de representações que se entre-sustentam. Tais representações propõem-se, de uma forma regulada e sistemática, como substitutos à voz do outro. Neste sentido, o discurso supõe a longa estabilização, em termos sócio-históricos, do que Said designa como “efeito poético” (Said, 1978: 13), isto é, o efeito de criação do próprio objecto discursivo, à qual a própria realidade material e antropológica do outro é forçada a adaptar-se. Como lembra Said:

Mais importante ainda, tais textos podem criar não apenas conhecimento, mas também a própria realidade que parecem descrever. Com o tempo, esse conhecimento e essa realidade produzem uma tradição, ou aquilo a que Michel Foucault chama ‘discurso’. A presença material ou peso do discurso, e não a autoridade de um determinado autor, é que é o verdadeiro responsável pelos textos a que dá origem. (...) Tudo aquilo que mais ou menos sabiam sobre o Oriente provinha de livros escritos na tradição do orientalismo, colocados na sua biblioteca de idées reçues; para eles o Oriente, tal como o leão feroz, era algo que devia ser encontrado e enfrentado, em parte porque os textos tinham tornado esse Oriente possível (Said, 1978: 110).

Em termos metodológicos, que derivam do que se acaba de expor, não será a geografia o elemento que pode dar a unidade ao que esta dissertação toma por objecto. Essa unidade reside a priori no discurso acerca do Oriente. Assim, tal como atrás se introduziu, nenhuma geografia concreta, como a Índia ou o chamado Extremo Oriente, será objecto da presente dissertação, antes a análise dos mecanismos de representação operativos na poesia de três autores. É sem dúvida fulcral o gesto de trazer o problema

para o plano discursivo, uma vez que é este, segundo creio, o contributo fundador, com base em Foucault, para a discussão trazido pela obra de 1978 do referido crítico.

Com efeito, o vocábulo Oriente não pode, em si mesmo, referendar uma geografia; é um topos que se nutre de várias geografias, com estas se relacionando por meio de uma referencialidade elusiva. Ou seja, mostra-se como um conjunto de imagens em movimento através de vários espaços, com os quais nunca se apresenta totalmente coincidente, ainda que procure dar conta dos seus contornos. O termo não ilude, com efeito, a sua ambiguidade referencial, bem como a mobilidade que a configura e reconfigura de um modo constante, conforme se viu no ponto anterior. É então de uma “geografia imaginária” (Said, 1978: 57-83)27

que se trata, dimensão que se encontra patente em outros vocábulos, como “Índia/Índias”28.

Este último termo tem implicado um modo fecundo e contínuo, nos termos de um imaginário, de exprimir a indeterminação geográfica face a territórios a leste da Europa. Com efeito, a sua indeterminação pode mesmo assumir dimensões imprevistas (o caso das “Índias Ocidentais”, por exemplo), averbadas pela polissemia de termos mais denotativos, como os de “Índia”, “índio”, “indiano”. Convém, contudo, atentar na designação na sua declinação plural “Índias”. A palavra, de origem persa29

, é um vocábulo familiar no universo textual do orientalismo português, no qual é recorrente.

27 Said não chega a definir esta expressão, mas ela reporta-se, sem dúvida, às virtualidades

referenciais do termo Oriente, assumindo-o como incoincidente com os territórios geográfico-políticos, os quais é dado representar. Neste sentido, a “geografia imaginária” não é mais do que uma colocação do discurso orientalista enquanto sistema auto-referente e auto-suficiente de imagens que se substituem à “realidade”. Nas palavras de Marta Pacheco Pinto: “O discurso orientalista combina assim uma geografia real e uma elaboração relativizada dessa geografia, por via do papel estratégico da imaginação (europeia), a que pode acrescer ou não uma experiência directa com o espaço oriental” (Pinto, 2013: 77).

28 A forma singular do vocábulo refere-se ao Estado da República Indiana. Com efeito, os países

que se apresentam ao mundo com estas traduções dos seus nomes – a União Indiana (entre 1947 e 1950), depois dessa data rebaptizada como República Indiana, e a República Popular da China – gerem, com esse gesto, uma concessão ao imaginário europeu que produziu tais vocábulos.

29

Diz Luís Filipe Thomaz, referindo-se ao uso da palavra no plural: “Tal emprego, esporádico na

Antiguidade, generaliza-se desde a alta Idade Média. Introduz-se, assim, a distinção entre a ‘Índia Maior’, ou a Índia Cisgangética’ (isto é, a Índia propriamente dita), uma ‘Índia Menor ou Transgangética’ (ou seja, a Ásia do Sudeste, para além do delta do Ganges), e uma Índia Etiópica (...), correspondente à Arábia e África oriental (...). Daí o uso do termo ‘Índias’ no plural” (Thomaz, 1994: 520).

Como nota Thomaz, o plural ocorre sobretudo em expressões fixas como o “plano das Índias” (Thomaz, 1994: 521) ou em “textos eruditos influenciados pela tradição medieval” (Thomaz, 1994: 521). Seria, assim, no século XVI, menos abundante do que o singular, ainda que este designe, sob tal nome, diversos territórios do Sul e do Sudeste asiático. Em textos de Fernando Pessoa, datados por Jerónimo Pizarro entre 1915-1917, pertencentes ao projecto que o poeta designou como Atlantismo, encontra-se a expressão “Índias Espirituaes”30

(Pessoa, 1979: 140), o que faz apelo à continuidade, no século XX, da indeterminação que tem vindo a ser notada. Todavia, o vocábulo não deixa de estar presente em todas as tradições imperiais a partir da Idade Moderna. Como lembra o poeta maurício Khal Torabully:

Les Indes ont toujours été un lieu rêvé par l’Occident, depuis l’Antiquité gréco-romaine à nos jours, pour ses richesses, son sens du merveilleux ou de spiritualité. [#] Les Indes se déterminent davantage (…) quand en 1492, Colomb, cinglant vers l’Asie, se trompant de lieu, nomme ce qu’il découvre ‘les Indes’ (…), inscrivant par cette nomination un lieu rêvé, à jamais recherché, fluant, plongé dans le mouvement, jamais atteint, toujours ailleurs. (…) Fondamentalement, on n’arrive jamais aux Indes, on s’oriente toujours vers elles… (Torabully, 2012: 64).

O termo joga nesta ambiguidade que lhe confere o não ser, tal como o Oriente, tanto um lugar mas mais uma direcção (“on (…) s’oriente (…) vers elles”). No caso português, as “Índias” traduzem um património imaterial identitário, tal como é ressaltado pelo historiador António Borges Coelho, consternado com o perigo de “as índias [se esfumarem] até se apagarem do imaginário dos novos portugueses” (Coelho, 1993: 5)31. E acrescenta:

A Ásia, vulgo as índias, vivem na história, na cultura, no património, no imaginário dos portugueses. Somos Ocidente com zonas profundas de

30 Este texto, um dos esboços de manifesto do Atlantismo pessoano, foi publicado pela primeira

vez na recolha Sobre Portugal (1979), por Paula Morão e Isabel Rocheta. Segue-se a edição de Pizarro, em Sensacionismo e Outros Ismos (2009).

31 De modo a infirmar a afirmação do historiador, bastaria ler este pequeno poema com o título

«Restaurante Casa da Índia», de Miguel-Manso, poeta nascido em 1979: “uma pessoa tem por vezes de regressar/ da Índia taciturno// iluminado só pelo último cigarro” (Manso, 2011: 20).

Oriente. As índias estão nos cheiros, nos sabores, na língua, nas casas, no ver. A nossa matriz é mediterrânica e atlântica, mas foi banhada (….) pelos oceanos (….) Índico e o Pacífico (Coelho, 1993: 5).

Antes de avançar na leitura do termo Oriente, será conveniente trazer à luz alguns exemplos do uso destas expressões nos poetas trabalhados nesta dissertação. Em alguns textos de Camilo Pessanha que se passa a citar, e de forma mais abundante em Alberto Osório de Castro, é possível deparar com o tropo da cortesã oriental, mais precisamente da “bailadeira”. Encontra-se, de facto, muito presente em vários poemas deste último, como no soneto de Exiladas (1895) «Na açoteia, ao vir da noite (impressão dum fim d’acto do Mricchahatiká)»: “No mármore do chão dançam as bailadeiras./ Cheira a betle, ao flavor dos tigres, a grinaldas” (Castro, 1895: 123). Se o poema devolve um clima saturado de imagens orientalistas – as essências, as flores, e os animais raros – já a prosa de Camilo Pessanha não deixa de integrar alguns deles, ainda que num sentido mais complexo:

Nunca me esquecerão as minhas decepções das primeiras viagens, ao ver, por exemplo, em Bombaim, certas supostas bailadeiras traçando mantos de chita estampada na Europa e bebendo como esponjas uma realíssima cerveja Pilsener (Pessanha, 1912: 151).

Assim, assumindo que se trata de um tópico orientalista32, o texto consente que face a ele se dê um movimento desconstrutivo. A ficção do feminino oriental não sobrevive a uma cerveja “realíssima”, o que aliás evoca o tópico, abundante na textualidade orientalista, da decepção, ao qual se voltará no capítulo seguinte, dedicado a este poeta. No discurso orientalista, com o qual o texto de Pessanha se relaciona em modo irónico, há um aspecto de bailadeira em toda a mulher oriental, ideia em que se torna óbvia a estruturação de um pensamento essencialista. Como realça Gustave

32 No «Prefácio» a uma obra do médico Morais Palha: Esboço Crítico da Civilização Chinesa

(1912), Pessanha refere-se à morte nestes termos: “Palpita na luz dos astros, estua na seiva das florestas virgens, ondula no colubrino estorcer-se das bailadeiras indianas” (Pessanha, 1912: 108).

Flaubert (1821-1880) no Dictionnaire des Idées Reçues: “Toutes les femmes de l’Orient sont des bayadères. Ce mot entraîne l’imagination fort loin” (Flaubert, 1911: 54). A axiologia negativa da sensualidade descontrolada da oriental prolonga as figurações habituais da cor sanguínea, das imagens florais e sobretudo da sexualizada e densa vegetação: Pessanha fala na “seiva das florestas virgens” (Pessanha, 1910: 108); Osório de Castro, no mesmo soneto, em “a fronde das palmeiras” (Pessanha, 1912: 108).

Note-se que o termo Oriente é empregue por Camilo Pessanha sobretudo na fase inicial do seu percurso de aproximação à China, se atentarmos na correspondência íntima. “[P]álido Oriente – pálido e rútilo” (Pessanha, 1896: 120) é uma expressão que consta numa carta enviada a Alberto Osório de Castro, em 8 de Setembro de 1896. Pelo contrário, o uso da palavra é constante na prolífica obra deste último. Por exemplo, no poema «Beautiful Bombay» de A Cinza dos Mirtos (1906): “E o seu amor é triste, Bombaim!/ Na noite morna é um delírio do Oriente” (Castro, 1895: 180). Está presente ainda em outro tipo de gestos com valor autoral, como no título da revista científica que dirigiu em Goa, O Oriente Português, cujos primeiros números (1904) dão o seu nome como director. Já no heterónimo pessoano Álvaro de Campos, em concreto no poema de 1914 «Dois Excerptos de Odes», avulta a presença de um Oriente simbólico, sendo o discurso poético construído em torno de alguns valores axiológicos positivados: “Ao Oriente, d’onde vem tudo, o dia e a fé,/ Ao Oriente pomposo e fanatico e quente,/ Ao Oriente excessivo que eu nunca verei” (Pessoa, 1938: 75-76). Como se vê, é a própria palavra que sustenta um poderoso mecanismo anafórico. As noções que naqueles versos são evocadas prendem-se a valores filosóficos, éticos e religiosos – o Oriente enquanto origem das religiões com sua primeva excessividade – conformados por imagens que se têm revelado operativas na literatura, como a que entende o Oriente como o ponto ou a direcção de onde vem a luz, Ex Oriente Lux, plasmada no primeiro verso.

A via de exploração crítica da axiologia em torno do Oriente caracteriza o trabalho do ensaísta francês Raymond Schwab em sua clássica reflexão em torno da descoberta do sânscrito pela Europa dos séculos XVIII-XX, La Renaissance Orientale (1950). O autor entende que o Oriente se trata de um conceito: “le concept d’Orient” (Schwab, 1950: 9). Em face desta afirmação, importa compreender os argumentos que suportam tal leitura. A sua abordagem caracteriza-se como um humanismo idealista (no sentido filosófico) de matriz romântica, considerando o Oriente como uma figura da revelação da consciência universal a si mesma, ao modo hegeliano. Deste modo, o processo de tradução e de recepção em torno do sânscrito e de outras línguas clássicas permite, no entender do autor, ao Ocidente descobrir a sua metade há muito perdida e, como tal, restaurar a imagem completa de si mesmo33.

Já Edward Said, propõe em Orientalismo (1978) uma desconstrução crítica, de base materialista (no sentido filosófico), entendendo o Oriente como uma atribuição que é conferida por um determinado “modo do discurso”, e daí a famosa expressão “Oriente orientalizado”34

. Said classifica o Oriente como “entidade” e “ideia”, salvaguardando contudo a distância que o termo mantém da realidade histórico-geográfica concreta35. O que interessa a este autor é, na verdade, sublinhar a coerência interna da constituição discursiva orientalista na qual essa figura, o Oriente, é gerada36.

Deste modo, a diferença essencial entre Schwab e Said não reside no facto de o primeiro se relacionar com o mesmo fenómeno de forma positiva e o segundo de forma

33

Para Schwab, a suposta e desejada fusão das sabedorias orientais com a europeia teria permitido começar “une phase du développement de l’esprit humain” (Schwab, 1950: 22).

34 Na expressão do autor: “(…) o Oriente (…), como costumo dizer, foi ‘orientalizado’” (Said,

1978: 6).

35

Como recorda Said: “Seria errado concluir que o Oriente foi essencialmente uma ideia, ou uma criação sem uma realidade correspondente (…). Havia – e há – culturas e nações localizadas no Oriente, e as suas vidas, histórias e costumes possuem uma realidade nua e crua obviamente maior do que tudo o que pudesse ser dito sobre elas no ocidente” (Said, 1978: 5).

36 Diz Said: “(…) mas o fenómeno do orientalismo, tal como eu aqui o estudo, trata sobretudo,

não da correspondência entre o orientalismo e o Oriente, mas sim da coerência interna do orientalismo e das suas ideias sobre o Oriente” (Said, 1978: 6).

negativa, como propõe a leitura mais evidente37; é antes a que opõe as suas posições filosóficas e respectivas metodologias e o que nessa diferença se joga de fundamental quanto à interpretação da natureza do objecto de estudo de ambos, representando algo de mais vasto e de mais complexo do que na linguagem reificada de uso quotidiano. É mediante a oposição teorética que ambos os autores vão ao encontro das figuras pelas quais o Oriente se inscreve no próprio discurso das suas obras como imagem crítica ora de um reencontro civilizacional (Schwab), ora de uma segregação enquanto marcação de uma distinção ontológica (Said)38. Este segundo aspecto encontra-se presente na fórmula, não isenta de ambiguidade, que introduz na abertura do trabalho de 1978: “estilo de pensamento [style of thought]” (Said, 1978: 2). Nas palavras do crítico:

(…) o Oriente não é um facto inerte da natureza. Não está ali, do mesmo modo que o Ocidente também não esta exactamente ali. (…) esses lugares, regiões e sectores geográficos que constituem o Oriente e o Ocidente, enquanto entidades geográficas e culturais – para já não dizer históricas – são criações do homem. Por conseguinte, tanto como o Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem história e uma tradição de pensamento, de imagens, e um vocabulário que lhe deram uma realidade e uma presença no e para o Ocidente (Said, 1978: 5).

Esta reflexão, bem como a relação crítica entre Oriente e Ocidente no pensamento de Schwab, revelam um outro aspecto que não pode passar em claro. Não é possível pensar o Oriente sem, ao mesmo tempo, o fazer tendo em conta a sua noção complementar, a de Ocidente. Tal relação não só é operativa ao nível do discurso do imaginário cultural, mas também no crítico, no qual se estabelece como um dos “pares

37

Por exemplo, a de Manuela Leão Ramos: “Schwab e Said estão nos antípodas um do outro (…). O primeiro pretende ilustrar o aspecto positivo do orientalismo, conta a história maravilhosa das ideias, de como a descoberta das culturas dos orientes (…) exerceu uma influência benéfica na abertura e renovação da cultura ocidental (…). O outro incide no lado negativo, no modo organizado como grande parte deste saber ocidental sobre o Oriente (…) serviu propósitos imperialistas e preparou a colonização” (Ramos, 2001: 18).

38

Para Said, as “entidades” que nascem da cisão ontológica entre Oriente e Ocidente passam a coexistir “num estado de tensão produzido pelo que se crê ser uma diferença radical. [#] Porque é essa no fundo a principal questão intelectual levantada pelo orientalismo. Podemos dividir a realidade humana (...) em culturas, histórias, tradições (...) e até em raças claramente diferentes entre si e continuar a viver assumindo as consequências dessa divisão?” (Said, 1978: 52).

nocionais [dos] mais vulgarizados no âmbito dos estudos interculturais” (Pinto, 2013: 43). Revela-se, deste modo, imperioso questionar onde se posiciona o ponto de referência da voz que emite um enunciado como este: “Ao Oriente, d’onde vem tudo, o dia e a fé” (Pessoa, 1938: 75-76). Do mesmo modo, tal questionamento não deve deixar de ser estendido ao próprio discurso argumentativo. Qual o ponto de referência a partir do qual a voz enunciativa emite o trecho de Orientalismo que acabou de ser citado? Segundo o filósofo francês, Roger-Pol Droit, que denunciou o “esquecimento da Índia”39

no pensamento europeu:

O Ocidente não existe, pois, sozinho, mas apenas como um dos dois elementos de um par de opostos. De um lado, o Sol nasce. A esse lado chamar-se-á ‘Oriente’ (a partir de um verbo latino que significa ‘subir’), ou ainda «Levante», ou até ‘Este’. De outro, o Sol põe-se, no oeste, do lado do ocidente. (…) Mas alerta-nos para uma questão que tem sido ignorada: onde fica o centro de referência? Quando utilizamos coordenadas espaciais, há sempre um centro, independente de o designarmos ou não (Droit, 2009: 12- 13).

Interessa saber onde se localiza o centro de referência e em que momento histórico se fixou: “(…) é então necessário interrogar-nos: na história que criou o termo