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1. Do orientalismo ao orientalismo português

1.7. O surto orientalista no Portugal finissecular: modelos oficiais, científicos e

Na economia dos discursos portugueses acerca do outro, o Oriente é, nos séculos XIX e XX, um espaço mais discreto do que África, ainda que não, naturalmente, no todo da História cultural portuguesa. Há tradições profundas, porque antigas e persistentes, que ligam Portugal ao Oriente e que oferecem momentos de renovação da sua continuidade. Um desses momentos – porventura o fulcral – localiza-se, na perspectiva desta dissertação, no último quartel do século XIX, sendo responsável pela cristalização de uma linguagem e de uma tópica que constitui o que se designa por orientalismo português. Não corresponde, note-se, a nenhum facto histórico relativo ao Oriente, senão em segundo grau. De facto, nenhum evento, ocorrido nas relações

geopolíticas entre Portugal e a Ásia, nem nenhuma data da História colonial105 podem ser responsabilizados pela “invenção” do moderno orientalismo. Os eventos que se deverá ter em consideração são as comemorações do Centenário da morte de Camões em 1880 – associados ao fantasma da perda da independência, que o Ultimatum inglês de 1890 virá de novo reavivar – e, sobretudo, a comemoração da chegada do Gama à Índia em 1898. O que estas celebrações recordam à forma mentis fino-oitocentista é sobretudo um Oriente interior à História de Portugal ou, melhor dizendo, um Oriente que fornece a gramática de imagens e de noções axiológicas que estruturam o discurso orientalista. Enquanto actos públicos de memória, sinalizam uma maior necessidade – enquadrada pela crise finissecular conduzindo à autognose colectiva – de trazer o Oriente à memória como o campo que outrora foi da manifestação das capacidades imperiais de um “nós”. Como propõe Óscar Lopes, há toda uma tipificação, de signo neo-romântico, dos discursos oficiais que, neste período, se criam em torno da Índia enquanto topos da cultura imperial, funcionando como “contrapartida ideal a África”106. Eis como o crítico sintetiza em poucas linhas o que chama “novi-romantismo posterior ao Ultimato”:

Romantismo pelo apelo, sobretudo no teatro e na novelística, a um misto de tradições heróicas e amorosas da história nacional, apelo ao homem forte, providencial, iluminado, louca ou genialmente (tanto faz) apaixonado por um ideal patriótico ou expansionista e também (…) por uma mulher – coisas que com o quadricentenário de 1898 da viagem de Vasco da Gama se sintetizam em fórmulas como a de um novo descobrimento da Índia pelo

105 Em termos de História da presença colonial de Portugal na Ásia, o fenómeno mais

significativo, na viragem do século, consistiu nas revoltas autóctones. Ressalte-se a de 1895, em Pangim, e várias que tiveram lugar em Timor, entre 1894 e 1908. Porém, estes surtos de violência pouco afectaram a representação destes territórios na Metrópole.

106 Fernando Catroga resume esta apetência pelas comemorações como “confirmação inequívoca

da permanência de uma consciência decadentista e do anelo de uma regeneração nacional cada vez mais geminada com o sonho do ressurgimento colonial” (Catroga, 1998: 226). E adianta: “(…) mesmo quando enalteciam outras heroicidades – as do Oriente, por exemplo – e se revestiam de símbolos orientalistas, o seu referente último [das comemorações] continuou a ser o continente africano” (Catroga, 1999b: 269). Comprava-o o curioso Hino do Centenário da Índia (1897) de Fernandes Costa (1848-1920): “Quem não sente, que havemos agora,/ Por mandados de lei sobrehumana,/ No chão virgem da terra africana,/ Do futuro os impérios fundar?” (Costa, 1897: 9).

coração, ou pela imaginação, contrapartida ideal das contemporâneas explorações e campanhas africanas (Lopes, 1964: 10-11).

Pode, pois, o orientalismo português, no dealbar do século XX, ser entendido como um movimento cultural107 em três dimensões: oficial, de índole político-social; científica, de perfil erudito e académico e, por fim, uma acepção literária. Em síntese, o moderno orientalismo português, cujo impulso decisivo se deve localizar em torno dos anos 80 e 90 do século XIX, ganha corpo no período dos chamados Centenários histórico-patrióticos, a que de forma directa se liga um discurso orientalista de cariz oficial e de intenção comemorativa, mobilizado pelo republicanismo em ascensão.

Uma das decisivas aparições da linguagem orientalista em Portugal é, então, a que lhe vem imprimir uma dimensão comemorativa. Assim, o orientalismo português pode também ser interpretado como uma linguagem de Estado, na medida em que é uma linguagem da memória histórica posta em acto ritualístico consensualizador, com vista a um horizonte regenerativo da nação, como nota Fernando Catroga108, o que fica patente nas comemorações e em seu cabedal imagético e discursivo. Este culto cívico de matriz positivista é, conforme explorado por Catroga (1988), dinamizado pela elite burguesa em círculos ligando intelectuais a homens de acção, como a Sociedade de Geografia109.

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Também Avelar visa descobrir “o modo como em Portugal se foi construindo e intuindo o Orientalismo enquanto movimento cultural” (2011b: 169). Não se sustenta que se trate de um movimento organizado e consciente de si enquanto tal, muito menos no sentido programático, que implicaria unidade doutrinal ou ideológica. Há, contudo, uma convergência de esforços dentro de uma unidade conjuntural, como denunciam sobretudo Moraes, Pessanha e Osório de Castro, enquanto membros de uma geração interessada em discutir e representar o Oriente.

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Diz Catroga: “Todas as grandes comemorações e, no caso português, com um particular relevo para as dos Descobrimentos (…) foram animadas por esta intenção: o passado devia servir de paradigma para a superação da decadência contemporânea (…) E, ao mesmo tempo, elas semeavam este propósito: o de se construir uma hagiografia para a nova ‘religião cívica’, de modo a reforçar-se o consenso à volta da expectativa de uma redenção nacional. O que passava pela restauração da grandeza imperial perdida” (Catroga, 1999b: 268).

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Neste âmbito, impõe-se destacar o papel da Sociedade de Geografia como “grupo de pressão em defesa dos ‘direitos históricos’” (Coelho, 1996: 151). Com efeito, este importante organismo, no que toca à defesa do que então se considerava ser os direitos portugueses no Ultramar, é criada em 1875 para, antes de mais, promover viagens de exploração e de reconhecimento do continente africano, possuindo também uma actividade fundamental a nível do estudo das colónias asiáticas. O Boletim da Sociedade de

É fundamentalmente a figura do intelectual português, um Latino Coelho (1825-1891) ou um Teófilo Braga (1843-1924), quem sobressai como agentes deste culto centrado no indivíduo e, em simultâneo, enquadrado pelo discurso ideológico do Estado. Esta febre patriótica finissecular em torno do imaginário de Camões e do oriente concretiza- se numa frenética actividade de conferências, festejos e edições que reafirma, para o público português, a Índia como um elemento interior à memória nacional e, para o resto do mundo, a contribuição determinante de Portugal no movimento da “História Universal”. Maria Isabel João já o havia notado em relação ao Centenário de Camões (1880): “O poeta impunha-se como o melhor representante da nacionalidade portuguesa por (…) ter cantado o facto histórico através do qual o país mais contribuiu para o progresso humano – o descobrimento do caminho marítimo para o Oriente” (João, 1991: 52).

Neste sentido, revela-se de grande importância o Quadricentenário de 1898, na medida em que a sua prolífica actividade editorial comprova o surto orientalista, em termos, quer de pesquisa científica, quer de escrita literária110. Importa entender os trabalhos editoriais enquadrados nos festejos como uma materialidade evidente do orientalismo português, suportada por dinheiros públicos, pela vontade cívica e muito dinamizada por organizações de teor colonial como a Sociedade de Geografia. A

Geografia de Lisboa afigura-se um instrumento fundamental para conhecer as mutações da ideologia colonial portuguesa.

110 Algumas obras são listadas por Fernando Catroga: “(…) poemetos: (Vasco da Gama de José

Benoliel; O Baptismo das Naus de Teófilo Braga; A Viagem da Índia de Fernandes Costa (…); A Epopeia

das nevegações portuguesas de Xavier da Cunha), narrativas e peças históricas (A Descoberta da Índia ou o Reinado de D. Manuel, de Artur Lobo d’Ávila; Vasco da Gama, de Romão Duarte; Amores de Marinheiro, de Cândido de Figueiredo; A Descoberta da Índia, de Faustino da Fonseca; De Lisboa à Índia, de Oliveira Mascarenhas; O Sonho da Índia, de Marcelino Mesquita; O Auto das Esquecidas, de

José de Sousa Monteiro), estudos sobre Gama (Vasco da Gama e a Vidigueira, de A C. Teixeira de Aragão), ensaios sobre a aventura colonial portuguesa no Oriente (Vasco da Gama, quando partiu? de Frederico Dinis Ayala; A Descoberta da Índia contada por um marinheiro, de Manuel Pinheiro Chagas (…); Os Primeiros Gamas. Com uma carta de Manuel Severim de faria, de Luciano Cordeiro, Viagens de

Pêro da Covilhã, de Conde de Ficalho), roteiros portugueses da viagem de Lisboa à Índia nos séculos

importância deste “Centenário da Índia”, conforme a designação popular111

, foi o de vincular de uma forma mais clara as noções de Portugal, de Oriente e de Civilização, pois, na linguagem dos Centenários, é a descoberta do Caminho do Oriente que, epitomizando a Expansão, dá um sentido a Portugal como seu maior contributo para a civilização moderna, ideia que será invertida em «Opiário» de Álvaro de Campos. Assim, numa estrutura de pensamento quase silogística, o orientalismo vê-se implicado na construção de um sentido teleológico de Portugal. É este o sentido de que importa achar a continuidade no tópico pessoano da “Índia nova” (Pessoa, 1912: 67), bem como em formulações similares do discurso dos autores da Renascença Portuguesa (1912- 1932) relativos à Descoberta de uma segunda Índia, ainda que distantes já de qualquer dimensão oficial.

É em Teixeira de Pascoaes112 e Jaime Cortesão (1884-1960), entre outros autores renascentes113, que este ambiente neo-romântico evocado por Óscar Lopes ganha o seu

111 O IVº Centenário do Descobrimento Marítimo para a Índia, ou “Centenário da Índia”, é um

marco do comemorativismo fino-oitocentista, que teve como outros momentos os seguintes centenários: de Camões (1880), do Marquês de Pombal (1882), do Descobrimento da América (1892), do Infante (1894) e de Santo António (1895). O primeiro teve uma dimensão de adesão popular muito acentuada. A destacar são sobretudo a componente científica, histórica e editorial, quer em termos de imprensa popular, quer nos de edições de cariz científico. No que toca ao seu programa ideológico, trata-se de uma afirmação nacional, enquanto auto-imagem a ser projectada para o mundo. A imagem do Gama, como destaca Carmen Radulet, oscila entre ser visto como um herói nacional na medida em que pode, no esforço do seu gesto, devir como herói e peça chave no motor da chamada “História Universal”. Cf. Radulet (1998: 167).

112 Diz Pascoaes, em O Génio Português (1913): “O messianismo é o génio de aventura alando-

se para as estrelas. Depois de criar um grande Império, ao vê-lo afundar-se nas ondas que navegara, na sua trágica aflição, dirigiu as asas para o céu, o Atlântico etéreo além do qual existe uma outra Índia… E, no Infinito onde subiu, a Aventura, feita Messianismo, penetrou-se de vigor celeste; e, rasgando o nevoeiro da manhã sebastianista, reaparece na terra de Portugal, vestida espiritualmente em luz do sol –, e é a nova Saudade pela tristeza viçosa do seu perfil, em cujos lábios a tristeza ri: a tristeza, a lembrança do Passado, iluminada de esperança, prometendo a nova Era Lusitana…” (Pascoaes, 1913: 74, itálico do autor). Noutro ponto do mesmo ensaio, afirma: “(…) orgulhoso de pertencer a esta terra de Portugal, a este messiânico Povo que, tendo dado à Humanidade o mundo físico, compete-lhe dar agora um novo mundo moral” (Pascoaes, 1913: 94).

113 Os principais textos a ter em conta são os seguintes: Jaime Cortesão (1912); Teixeira de

Pascoaes (1913) e Leonardo Coimbra (1922). Já em Antero do Quental (1865), as metáforas marítimas (ainda que apenas implicitamente associadas à Expansão portuguesa) são usadas para representar os novos horizontes civilizacionais que se abrem à marcha da Humanidade. Nos textos em primeiro lugar referidos, a Expansão portuguesa serve como analogia para sugerir os contornos de uma futura civilização Universal, na qual Portugal teria de novo destacado papel. De Pessoa, há ainda textos em torno da noção de Atlantismo que devem ser tidos em conta. Cf. Pessoa (1979: 133-140), para consulta de tais

sentido mais forte de uma releitura da história da literatura de que depende, de forma muito estreita, uma releitura da História nacional. De entre as manifestações do espírito moderno, seria, para tais poetas, a moderna poesia portuguesa o elemento que melhor poderia sinalizar a conversão da Humanidade ao Espírito, inaugurando uma nova “era religiosa” no mundo, na qual Portugal teria de novo papel pioneiro e destacado, afinal a verdadeira dimensão desse ressurgimento nacional, enquanto ressurgimento universal. Como propõe o primeiro:

Que essa poesia seja religiosa não é de admirar para aqueles que souberem que hoje é a Arte o equivalente das religiões. Assim a definiram grandes filósofos e, a acreditar o que diz o grande Schuré, é a poesia portuguesa que realiza a síntese a que aspira o religiosismo moderno (Cortesão, 1911: 25).

Trata-se de um idealismo que é muito presente em ambos os autores, articulando- se com uma concepção espiritualista da arte apoiada na coeva filosofia idealista francesa. Perante um trecho tão significativo, há que notar estar em face de um espiritualismo lusocêntrico que terá destinos diferentes em Pascoaes e em Cortesão. Para o jovem Fernando Pessoa, que se estreia em 1912 com os artigos sobre Nova Poesia Portuguesa, o terreno da literatura, e em específico, da poesia, seria o único espaço possível onde ainda haveria uma “Índia nova” (Pessoa, 1912: 67) a encontrar, no sentido do cumprimento de um destino universal que apenas pela literatura se poderá de novo manifestar. Como afirma na conhecida passagem:

E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas ‘daquilo de que os sonhos são feitos’. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente (Pessoa, 1912: 67).

Há a ressaltar que Pessoa propõe todo um processo de tradução, por analogia, dos valores da História da civilização para o plano da literatura. Passando por Pascoaes e fragmentos, considerados a partir da edição de Sensacionismo e Outros Ismos. Para uma visão crítica da presença deste tópico nos pensadores da Renascença, cf. Franco (1999) e Borges (2010).

Cortesão, com os quais dialoga, Pessoa herda alguns padrões do discurso comemorativista finissecular, no qual a Índia era já um elemento puramente simbólico. A Índia, com efeito, já nos discursos do Centenário de 1899 envia para uma realidade que apenas nos planos literário e cultural se poderia revelar operativa. A tradução pessoana da “verdadeira” consumação da História num futuro que se configura pelas histórias mítica e literária inverte os termos pelos quais a noção de decadência havia sido até então pensável na moderna Cultura Portuguesa, que passa, assim, a ser entendida enquanto antecâmara de um ressurgimento, uma vez que o verdadeiro auge está ainda por vir. Como lembra Eduardo Lourenço, em Nós e a Europa (1988), tal não basta para esconder a presença do negativo que reside sob tal projecto de signo positivo:

Fernando Pessoa nunca pôde imaginar nenhum futuro concreto para o Portugal do seu tempo, embora soubesse o nosso passado morto como império histórico, só pôde conceber o nosso destino como descoberta de índias que não vêm nos mapas. Quer dizer, e apesar do que a fórmula possa conter de inovador e futurante, uma espécie de repetição do já feito e do já sido (Lourenço, 1988: 10)

A ideia nuclear é a de que os verdadeiros Descobrimentos dos portugueses não se localizam no passado, antes no futuro, representando uma outra natureza, dita espiritual, sendo que o historicamente manifestado é apenas o seu “carnal ante-arremedo” (Pessoa, 1912: 67). As “Índias Espirituaes” (Pessoa, 1979: 140), em expressão que pertence já ao corpus atlantista (1915-1917), editado por Jerónimo Pizarro em Sensacionismo e Outros Ismos, implicam então uma compensação mítica face ao sentimento de decadência nacional. Invertendo os termos pelos quais a decadência é tradicionalmente pensável na cultura portuguesa (sobretudo a partir da Geração de 70), o futuro, concebido sob o regime do mito, afirma-se como a realidade plena, de que a História seria mero eco114.

114 É de notar, sob esta ideia, a transfiguração de tópicos da herança da própria historiografia

portuguesa de matriz romântica, o que é sugerido por Catroga nesta leitura do Centenário de Camões de 1880: “(…) mas quem já tinha sido grande nos séculos XV e XVI poderia voltar a sê-lo no futuro, logo que a acção dos homens se pautasse pelas leis da evolução histórica, leitura de onde emerge uma clara

As Descobertas teriam sido um primeiro passo, uma preparação para algo maior, e não um fim histórico em si: estaria ainda por descobrir uma “outra Índia” (Pascoaes, 1913: 74). Um território de natureza incerta, mas passível de ser manifesto tanto pela poesia portuguesa, como pelo corpo da língua portuguesa, proposta já de textos pessoanos mais tardios, reunidos sob a noção de Atlantismo, como adiante será desenvolvido.

Importa destacar que o facto de o destino das Novas Descobertas ser agora uma “Índia nova” (Pessoa, 1912: 67) permite identificar sob tal fórmula um modo diferente de falar do Oriente na cultura portuguesa. O fundamental dessa viragem torna-se evidente ao atentar em tal expressão cunhada por Pessoa num conjunto de ensaios publicados na revista A Águia, intitulados A Nova Poesia Portuguesa (1912). O Oriente já não é o território constituído pela experiência do contacto, baseada na observação directa. Estas “Índias” são agora uma entidade mítico-simbólica sem correspondência com qualquer realidade histórico-geográfica definida. Trata-se de um símbolo vazio de conteúdo oriental, equiparado aos restantes símbolos das Descobertas – o mar, a nau, a viagem, o nevoeiro –, e como que o termo da viagem estática na qual o processo histórico da Expansão, em que todos aqueles (e ainda outros) símbolos se encontram presentes, foi congelado. Embora distanciando-se do mundo empírico, este outro Oriente é o fruto da “digestão” mítica de uma longa relação histórica com o império português na Ásia, no sentido em que é a própria realidade material e histórica de um império índico que é eleita como símbolo.

Por outro lado, em termos paralelos ao processo até aqui descrito, a Academia portuguesa manifestará um surto de orientalismo científico. Neste contexto, é pensado não só o Oriente português, como também o Oriente em si mesmo. Em Portugal, o interpretação dos ciclos da história de Portugal, tributária da historiografia das ultimas décadas do século XIX. Simultaneamente, por ela também se insinuava um messianismo redentor que, em consonância com o tom épico de Os Lusíadas, prometia um ressurgimento, refundando a própria nação” (Catroga, 1998: 229).

orientalismo científico-académico encontra-se, de alguma forma, ligado ao movimento reflexivo sobre a identidade nacional inaugurado pela Geração de 70, articulando o nacionalismo finissecular com a crítica das Descobertas, que esta geração levou a efeito enquanto momento decisivo da consciência crítica da nação, conforme é patente em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (1871), de Antero de Quental. Daqui deriva que o nacionalismo imperial, acompanhado de uma crescente consciência crítica dos “fumos da Índia”115

, se encontre também presente no discurso científico. Vem comprová-lo este desabafo de Vasconcelos de Abreu, composto em “meio adverso a estudos desta natureza” (Abreu, 1892: V), e contemporâneo da década mais inflamada da comemoração patriótica:

O meu desejo tem sido sempre implantar os estudos de sanscritologia em Portugal, país a que sempre os julguei necessários, e prestar testemunho de honra à minha Pátria escrevendo um capítulo da sua história ultramarina. São com efeito dois os pontos em que eu tenho trazido sempre em mira no meu empenho de estudioso das cousas orientais, um – o conhecimento e a compreensão da Índia, outro – escrever à luz desse conhecimento e guiado por esta compreensão a História Portuguesa da Ásia (Abreu, 1892: III-IV).

Afirmando o orientalismo como vocação pessoal e desinteressada das agrestes condições materiais – “É desta maneira que entendo a minha missão de orientalista, em Portugal” (Abreu, 1892: V) –, o estudioso do sânscrito firma, com estas palavras, um compromisso entre orientalismo em Portugal, enquanto conjunto dos discursos científicos acerca do Oriente produzidos nesse país, e o orientalismo português, no sentido em que esta noção tem vindo a ser desenvolvida.

Destarte, em termos académico-científicos, o orientalismo português passa, antes de mais, pela produção erudita agenciada por figuras da Geração de 70 que se ligam, já numa idade provecta, à formação da nascente Universidade em Portugal: Teófilo Braga, o já referido Guilherme de Vasconcelos Abreu e Zófimo Consiglieri Pedroso (1851-

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