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O Caso Económico: Diplomacia e (Des)Acordo

4. As Contendas em torno das Riquezas da Mina

4.1. Os Reinos Europeus

O ouro era abundante na Mina. Era, de facto, tão abundante que havia suplantado já o ouro da Guiné, e não havia dúvidas quanto ao interesse de Portugal em defender a sua conquista. Na crónica Vida e Feitos d’El Rey Dom João Segundo, Garcia de Resende relata:

Em vida d’el-rey Dom Afonso sendo ainda el-rey principe, tinha já governança dos lugares dalem em Africa, e assi as

rendas e tratos da Mina e todo Guinee que então rendiam pouco; e os trazia a esse tempo arrendados Fernan Gomez da Mina cidadão de Lixboa que nelles ganhou muito dinheiro. E tanto que el-rey reynou como muito prudente e muy astucioso, cuydando muitas vezes o grande proveito que a elle e a seus reinos e naturaes recrecia

se naquella parte da Mina podesse fazer e ter hũa torre fortaleza onde assentasse trato com muitas e boas mercadorias pera com ellas se aver muito ouro como tinha por verdadeira enformaçam que ali se vinha resgatar…

… determinou com hos do seu

conselho de fazer como fez aa cidade de Sam Jorge da Mina de que tanto proveito a estes reinos recreceo…

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Ouceano nam há navios latinos senam as caravelas de Portugal E do Algarve, el-rey por ninguem ousar d’ir aaquellas partes, fez crer a todos que da Mina nam podiam tornar navios redondos por caso das correntes…

… e assi se fez com muito

segredo e grandes juramentos, e o ouveram tantos por tam certo, que em vida d’el-rey sempre pareceo que os navios redondos nam podiam vir de lá; e com ysto teve sempre a Mina muy guardada (32, 33).

Reinava em Portugal D. Afonso V, embora, conforme Paul Hair observa, fosse o futuro rei D. João II, à data ainda Infante, o responsável pela visão estratégica que África representaria para Portugal:

… from 1471 [Afonso “the African”] left Guinea affairs to his son, the future João II – seemingly the first Portuguese royal to recognise the worldwide implications of the Portuguese outthrust (10).

As queixas dos navegadores portugueses contra Inglaterra eram antigas. Já na década de 70 do século XV, em Chronica d’El Rei D. Affonso V, o cronista e diplomata Rui de Pina relata como os navios de corsários ingleses perturbavam as actividades comerciais portuguesas:

E n’este anno [1471] e assim no passado determinou El-Rei de passar em África… e estando El-Rei já casi prestes, foi certificado que doze náos grossas de seus reinos vindo em canal de Frandres foram tomadas, e suas mercadorias roubadas por Facumbrix, cosairo, capitão e sobrinho do conde Baroique, que a este tempo governava o reino de Inglaterra… E sobre os agravos e lamentações que os mercadores e povo d’estes reinos acerca dos seus damnos e perdas fizeram a El-Rei, elle teve logo conselho com os principaes de sua côrte… Dos quaes sustancialmente foi pela mór parte aconselhado, que a armada d’Africa que era voluntaria, e convertesse por

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muitas razões esta contra os inglezes, que era obrigatoria e necessaria. E que fosse grossa e de muito boa gente, para que d’algum castigo, d’estes nascesse receio aos outros muitos, que a seus vassalos não fizessem no mar os males e damnos que cada dia e sem emenda lhe faziam... e procurou por embaixadas, que com pessoas d’autoridade a Inglaterra e a Borgonha muitas vezes depois enviou (57,58).

Como percebemos pelo relato, em épocas anteriores àquela aqui tratada, os reis portugueses reconheciam a importância incontornável da diplomacia, embora embrionária, na medida em que investiam em embaixadas especiais, ou seja, um enviado especial com uma missão específica. Assim que terminasse a missão, o enviado regressaria ao seu país, junto com a sua comitiva. Tal procedimento será abordado mais aprofundadamente no Capítulo II. No fundo, importa compreender que a diplomacia do século XVI terá funcionado de forma distinta daquela a que o cronista Rui de Pina se refere. Contudo, e para efeitos do nosso tema, sabemos que as disputas em torno dos territórios da costa ocidental africana ocupavam havia muito o palco dos acontecimentos, sendo que aos embaixadores portugueses na corte isabelina caberia o papel do último acto e do baixar do pano. Pelo menos, assim esperavam.

O número de Bulas que permanecem conservadas na Torre do Tombo confirma que os reis de Portugal procuraram garantir, desde o início, o domínio sobre os territórios recém-descobertos e as riquezas deles oriundas. A título de exemplo, logo em 1450, a Bula de Nicolau V, concede a D. Afonso V de Portugal e a seus sucessores (“D. Alfonsus

Rex et sucessores”) todas as conquistas resultantes da Campanha do Infante D. Henrique

(Gavetas 7:13.7). Em 1481, uma nova Bula, pela mão de Sisto IV, reitera o domínio de Portugal sobre “todas as ilhas e terra firme, assim descobertas como por descobrir, desde o Cabo Bojador e Cabo Não por toda a Guiné até à Índia e a jurisdição espiritual delas à Ordem de Cristo”12 (Bulas 9:1). À época, os perigos vindos do reino inglês não eram comparáveis àqueles que eram impostos às caravelas portuguesas pelos vizinhos espanhóis. A Bula de Sisto IV pretende apaziguar a animosidade entre os Reis Católicos, Fernando II de Aragão e Isabel de Castela, e o rei de Portugal, D. Afonso V.

12 Tradução do conteúdo da bula Aeterni regis clementi constante no instrumento de “transcrito reduzido

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Portugal afastou também França das riquezas provenientes dos territórios em África. A Torre do Tombo guarda registos dispersos que comprovam tal facto. Por exemplo, a carta de um almirante francês de 1532, em resposta ao ofício do embaixador português em França, proibia qualquer navio da frota francesa de navegar até à Guiné e ao Brasil (Corpo Cronológico 1:49.32). Outro exemplo, de 1536, é da autoria do próprio rei de França, Francisco I, ordenando que se examinasse “sumariamente as tomadias e roubos feitos aos vassalos do rei de Portugal e lhas fazerem restituir, castigando os culpados como quebrantadores da paz” (Corpo Cronológico 1:57.94).13

Resultam evidentes os esforços do reino de Portugal em manter a uma distância segura outras coroas europeias que, ouvindo acerca das fortunas provenientes dos territórios sob domínio português, tudo faziam para extrair o quinhão possível. Se a campanha dos Descobrimentos havia sido longa e árdua, a manutenção das suas possessões trazia a Portugal preocupações extremas e despesas avultadas. Além da questão eminentemente política que forçava ao envio de embaixadas especiais a vários reinos e à Santa Sé, havia a questão – talvez mais directa e imediata – dos perigos advindos dos saques constantes às naus portuguesas. A Torre do Tombo guarda uma curiosa carta de 1532, na qual Francisco Pessoa, feitor em Málaga, apresenta ao rei a impossibilidade de fazer sair as suas naus, uma vez que a “armada do Barba Roxa” permanecia vigilante, à espera da oportunidade para saquear (“grande caque”)14 o “muito proveito de Vossa Alteza” (Corpo Cronológico 1:49.80). A prática de corso sofreria, de resto, variações e refinamentos, como confirmado pelo engrandecimento da figura do corsário no reinado de Isabel I, destacando-se Francis Drake.15

4.1 A Inglaterra anterior a Isabel I

No que respeita a Inglaterra, os monarcas que antecederam Isabel I haviam demonstrado, em múltiplas situações, a sua aquiescência quanto ao domínio de Portugal sobre os territórios na costa ocidental africana. Desde logo sabemos, a partir do

13 Tradução segundo a classificação da Torre do Tombo. 14 Ou seja, grande saque.

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levantamento realizado pelo historiógrafo real Thomas Rymer na sua vastíssima obra

Fœdera, que o primeiro monarca da Dinastia Tudor, Henrique VII, fez passar, em 9 de

Dezembro de 1502, uma Carta Patente a dois Ingleses naturais de Bristol, Hugo Elyot e Thomas Ashurst (“Hugoni Elyot & Thomae Aʃhehurʃte”) e dois Portugueses naturais dos Açores, João Gonçalves e Francisco Fernandes (“Johanni Gunʃalus & Franciʃco

Farnandus”), concedendo-lhes poderes de navegação, descobertas, estabelecimento,

posse e administração de territórios, sob uma condição, ou um impedimento:

Proviſo ſemper quod de Terris, Patriis, Regionibus, ſive Porvinciis Gentilium aut Infidelium, per Subditos Cariſſimi Fratris & Conſanguinei noſtri Portugaliæ Regis, ſeu aliorum quorum-cumque Principum, Amicorum, & Confœderatorum noſtrorum prius repertis, & in quarum Poſſeſſione ipſi Principes jam exiſtunt, ſe nullo modo impediant aut intromittant (1739: 186).

Henrique VII deixava, portanto, clara a restrição que se impunha à campanha marítima inglesa, a qual consistia em não lesar os territórios já descobertos pelo seu aliado e amigo rei de Portugal.16

Mais tarde, a 14 de Setembro de 1516, Henrique VIII escreveria a D. Manuel I acerca da grande campanha dos Descobrimentos portugueses, reconhecendo que, com enormes custos para a Coroa portuguesa e pela virtude dos reis de Portugal, a palavra de Deus estava a ser disseminada num mundo desconhecido, da costa do Grande Oceano até ao Mar Vermelho, e que novos reinos estavam a ser subjugados pelos monarcas portugueses. A carta deste icónico monarca de Inglaterra, escrita em latim, encontra-se incluída no vastíssimo espólio do Corpo Cronológico da Torre do Tombo. Nela, Henrique VIII recomenda ao seu aliado e amigo, D. Manuel I, os serviços do nobre cavaleiro inglês John Wallop, grande admirador dos feitos portugueses. O excerto que importa à presente análise refere o seguinte:

16 Na época, D. Manuel I, com quem Henrique VII havia ratificado o Tratado de Windsor, a 12 de Maio de

1499. O mesmo havia feito com D. João II, a 8 de Dezembro de 1489, seguindo o costume dos reis que o antecederam (Cotton MS Nero B.1. f. 64).

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Magnis dispendis, magnaque suorum virtute, ignotum antea orbem adaperuit, et vitricia Domini Dei nostri signa per eadem Vestram Serenitatem, immenso Oceani littore regnis ac populis subactis, ad Rubrum usque mare perlata fuisse cognoverit (Corpo Cronológico

1:20.99).17

Henrique VIII, ainda longe de prever o cisma religioso que o iria separar irreversivelmente de Roma, admitia os feitos da campanha dos Descobrimentos portugueses no que respeitava à disseminação da fé cristã, confirmando ser um homem de fé e defensor da crença católica. O monarca inglês refere, de forma clara, os reinos e os povos subjugados por “Vossa Serenidade”, assumindo o domínio de Portugal sobre os territórios descobertos pela coroa portuguesa. Deste modo, as palavras de Henrique VIII confirmam aquelas que haviam sido escritas pelo próprio D. Manuel I ao Papa Leão XIII, a 8 de Junho de 1513, notificando-o acerca da conquista e do estabelecimento de Afonso de Albuquerque na Península de Malaca e da disseminação da religião cristã naqueles territórios (Cotton MS Nero B.1. f. 69). Importava, sem dúvida, obter a bênção e a aprovação de Roma quanto à clarificação dos direitos de domínio sobre os territórios descobertos, e, neste caso, a referência à evangelização dos povos gentios reforçaria os propósitos religiosos que preocupavam também os monarcas católicos.

Mais tarde, em 1542, o embaixador português em Londres, António Marques, informou o seu soberano sobre um novo pedido de Henrique VIII, no sentido de obter permissão para que alguns dos súbditos ingleses acompanhassem os Portugueses na sua missão a Calicut (hoje Kozhikode), Índia (Cotton MS Nero B.1. f. 74; Santarém 1865b:LIV). O fascínio pelo Oriente havia tomado de assalto os monarcas da Europa, deslumbrados pelo exotismo da fauna e da flora, das construções arquitectónicas, dos povos e das culturas, tal como é possível depreender através do já mencionado Atlas

Miller, de 1519, o qual representa o Oceano Índico, a Arábia, a Índia e o Norte da

Sumatra. Esse mapa, contemporâneo de Henrique VIII, oferece a peculiaridade acima referida que iria servir a causa portuguesa no futuro: a bandeira de Portugal encontrava-se colocada sobre os seus domínios. Contudo, a questão da legitimidade portuguesa em

17 Tradução para português em colaboração com o investigador da Universidade do Minho, João da Costa

Peixe: “Com grandes despesas, pela sua virtude, [ele] abriu um mundo antes desconhecido, e [ele] tenha sido informado que os sinais da Criação de Deus Nosso Senhor terão sido levados/anunciados a reinos e povos subjugados por Vossa Serenidade no litoral do imenso Oceano até ao Mar Vermelho.”

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reclamar a supremacia sobre os territórios por si descobertos só mais tarde seria questionada por Inglaterra, uma vez que Henrique VIII cumpriu os procedimentos convencionados na época, solicitando junto da coroa portuguesa a necessária autorização para que os Ingleses pudessem desenvolver actividades comerciais naqueles territórios.

Também Maria Tudor reconheceria os direitos de Portugal sobre os territórios alcançados pelos Descobrimentos. Em 1556, o embaixador de Portugal em Inglaterra, Diogo Lopes de Souza, apresenta várias queixas à monarca quanto à ilegalidade do comércio inglês no Cabo da Guiné e na Costa da Mina. Por sua vez, Maria Tudor proibiu os seus súbditos de negociar, directa ou indirectamente, nos territórios portugueses, quer em África, quer na América do Sul. Em caso de desobediência, os navios ingleses seriam apreendidos e a sua carga confiscada, com pesadas consequências para a tripulação, sobre a qual pendia a pena de prisão, em nome do interesse da longa relação de amizade entre os soberanos de Portugal e Inglaterra (Cotton MS Nero B.1. f. 75).

A 19 de Maio de 1556, Maria Tudor escreve duas cartas aos reis portugueses, as quais se encontram no acervo da Torre do Tombo: a primeira é destinada a D. João III, a quem a monarca se dirige por “Sereníssimo Muy Alto y muy Poderoso Principe my muy Caro y muy amado Tio” (Gavetas 2:6.1); a segunda é dirigida à rainha de Portugal, Catarina de Áustria, ou de Habsburgo,18 e sobrinha de Catarina de Aragão, mãe de Maria Tudor. Nesta sua missiva, Maria Tudor mantém uma cordialidade afectuosa: “Sereníssima my Alta e muy poderosa Princesa… muy cara y muy amada Tia” (Gavetas 2:6.4). Ambas as cartas recomendam o embaixador português em Inglaterra, Diogo Lopes de Souza, a quem Maria Tudor incumbe de relatar “las cosas que han passado” (Gavetas 2:6.1.1):

Y por que el Dito Diego Lopez aviendo estado presente y visto do que aquí se ha tratado assi tocante a lo de los Mercadores deste Reyno que armavam para la Mina como en lo demás, le podra dar particular noticia de lo que quixere entender, me remito a su relación (Gavetas 2:6.4.1).

18 Filha do casamento de Filipe, rei de Castela e arquiduque da Áustria, conhecido como ‘O Belo’, e de

Joana, de cognome ‘A Louca’ (Bernardo da Cruz 5). Por sua vez, Joana de Castela e Catarina de Aragão eram irmãs, ambas filhas dos Reis Católicos.

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Maria Tudor confiava na seriedade do embaixador português, dando-lhe autonomia para informar os seus soberanos do que entendesse necessário, abonando tal voto de confiança a favor do carácter de Diogo Lopes de Souza. Por outro lado, não avançar qualquer dado mais específico em nenhuma das cartas quanto à situação sensível da Mina significava, igualmente, que a rainha de Inglaterra tudo havia feito para satisfazer os pedidos que lhe haviam chegado de Portugal, no sentido de pôr fim ao comércio ilegal dos Ingleses em territórios portugueses. De facto, Maria Tudor declara a D. João III:

… y si por aca podere yo en algo complazer a V. Al: le ruego me lo haga saber, que puede ser cierto lo hare de tan entera voluntad quanto a ello me muebe el deudo y buena amistad que entre nos otros ay (Gavetas 2:6.4.1).

Verifica-se que, até ao reinado de Isabel I, os monarcas que a antecederam demonstraram o reconhecimento e a aceitação do domínio português sobre os territórios em África. De acordo com as premissas veiculadas por Santarém, este reconhecimento servia como uma espécie de autorização histórica em relação à matéria do direito de prioridade de um dado reino sobre um determinado território (1855:4). Como veremos, Isabel I pensava de forma distinta de seus avô, pai e irmã. Foi, como sabemos, diferente de todos eles em variadíssimos planos, incluindo nas relações internacionais,19 defendendo de forma absoluta os interesses do reino e dos súbditos. Tal atitude granjear-lhe-ia um lugar único na história de Inglaterra, mas fá-la-ia entrar em confrontos com o rei de Portugal, D. Sebastião, conforme comenta Santarém:

As causas destes desastrosos e longos conflictos forão as viagens clandestinas dos Inglezes ás conquistas de Portugal na África contra os direitos da Corôa Portuguesa.

19 Apesar de se tratar de um termo cunhado no século XVIII, a opção do uso do mesmo justifica-se por

razões que remetem para o amplo reconhecimento da crescente evolução do conceito mais restrito ‘Lei das gentes’. De acordo com Online Etymology Dictionary, o termo ‘internacional’ foi cunhado por Jeremy Bentham em 1780, a partir da evolução do conceito de lei das gentes. De facto, em Introduction to the

Principles of Morals and Legislation, o autor observa: “The word international, it must be acknowledged,

is a new one; though, it is hoped sufficiently analogous and intelligible. It is calculated to express, in a more significant way, the branch of law which goes commonly under the name law of nations: an appellation so uncharacteristic, that, were it not for the force of custom, it would seem rather to refer to internal jurisprudence… what is commonly called droit des gens, ought rather to be termed droit entre les gens” (296).

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Todas as nações marítimas haviam respeitado a nossa jurisprudência colonial até á segunda metade do seculo XVI, que prohibia aos estrangeiros navegarem para as conquistas que os Portuguezes tinhão feito nas diversas partes do Globo, mas nesta época as grandes riquezas que os Portuguezes tiravam do commercio que fazião na África occidental principalmente na Costa da Mina excitárão sobre tudo a inveja e a cobiça dos Inglezes (Santarém 1865b:LXXXIX).