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O Caso Económico: Diplomacia e (Des)Acordo

1. Notas Introdutórias

O capítulo que agora se inicia incide sobre a análise da correspondência diplomática, relativa aos esforços de resolução da discórdia político-económica que opôs as cortes de Isabel I e D. Sebastião. Os dois reinos disputavam os direitos de comércio nos territórios da costa ocidental africana a sul do Cabo Bojador, sobretudo na Costa da Mina (hoje Elmina, no Gana). Com efeito, a discórdia no campo da supremacia política resultou no interregno comercial entre os dois países, desde 1569 a 1576 e, consequentemente, na disrupção da Aliança de Amizade, que contava já com cerca de dois séculos de existência.

Tal facto, dada a conjuntura geopolítica da época em apreço, era de enorme relevância. A quebra de tão longa, estável e importante aliança significou, portanto, um momento histórico de significado incontornável, de consequências político-económicas gravosas para ambos os reinos. O caso merece, pois, uma análise ponderada e cuidada que remete, essencialmente, para o conteúdo da correspondência dos embaixadores portugueses na corte isabelina, mas que não se limita à mesma.

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Em primeiro lugar, e num plano mais amplo, deve considerar-se o modelo existente de diplomacia no período em análise. A este propósito, Levin e Watkins observam qual seria a perspectiva da monarca de Inglaterra:

Elizabeth saw Europe in terms of dynastic loyalties that had been honored, strengthened, disregarded, forgotten, and, in recent history, tragically broken… What mattered was her public assent to an older diplomatic model, in which all Europeans were imagined to be capable of working toward peace (65).

Veremos adiante que a corte portuguesa partilhava o mesmo modelo diplomático, almejando o mesmo objectivo: a paz. Nathalie Revière de Carles refere o termo consensus

christianus e confirma a ideia de que monarcas, embaixadores, figuras diplomáticas de

todos os credos e nacionalidades se esforçavam por fomentar, ou manter, a paz (2). Ao longo dos anos que permearam o diferendo entre Portugal e Inglaterra deparamo-nos com a repetição desse propósito na correspondência diplomática – concretamente a manutenção da Aliança de Amizade – usado amiúde como argumento na retórica das negociações. Contudo, apesar de pretenderem um objectivo comum, Inglaterra e Portugal não conseguiam alcançar o consenso desejado, pelo que o recurso à figura do embaixador resultou indispensável.

Por outro lado, e num plano mais particular, se o objectivo da missão diplomática consiste, acima de tudo, na manutenção de relações pacíficas entre países, então o discurso do embaixador surge com uma importância acrescida. Desde logo, e no caso do discurso escrito, a correspondência diplomática deve conformar-se a uma linguagem de discrição, cautela e cortesia. A cartografia das mentalidades realizada pelos enviados diplomáticos a respeito do ‘Outro’ depende dessa atenção cuidadosa, tanto quanto à forma, como ao conteúdo. Assim, o papel do embaixador, ou enviado, como agente político é deveras crucial. A análise da correspondência diplomática ajuda-nos a melhor compreender as decisões e os acontecimentos históricos, através da justaposição das diferentes percepções dos enviados e dos seus discursos ideológicos, evidenciados nas missivas.

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Este tipo de correspondência é de valor inquestionável. Hoje, em pleno século XXI, bem como no período em apreço, são muitas as consequências que resultam de uma imprudência diplomática. Note-se o escândalo desencadeado em Novembro de 2010 pela

Wikileaks. A esfera político-económica tremeu, ao tomar conhecimento do conteúdo de

certa correspondência diplomática que continha várias indiscrições e considerações imprudentes. De facto, os efeitos deste episódio para as Relações Internacionais poderiam ter conduzido a uma alteração do mapa de alianças até então existente no panorama mundial. Ou seja, a correspondência diplomática deve seguir um determinado código de discrição e até de ambiguidade,1 uma forma de escrita nas entrelinhas, prestando aos seus destinatários informação valiosa, preservando, em simultâneo, a reputação do seu remetente e do país que representa, no caso de a missiva ser interceptada.

De resto, a ambiguidade no discurso diplomático – oral e escrito – revela-se quase uma condição sine qua non no exercício deste tipo de funções ou, como Noé Cornago afirma, um imperativo pragmático que impregna não só a linguagem diplomática, mas muitas outras expressões extra-linguísticas da comunicação na Corte, nomeadamente o protocolo (87, 88). Por seu turno, Norman Scott observa que uma forma discursiva diplomática (“diplomatic form of expression”) será aquela que encerra um equilíbrio entre a precisão e a ambiguidade, que evita criar ofensa e recolhe a aceitação das partes envolvidas (153).

Detenhamo-nos um pouco no recurso à ambiguidade no contexto diplomático. Paul Sharp sugere que a própria origem do termo ‘diplomacia’ remete para a centralidade da noção de ambiguidade no exercício diplomático: díplōma (δίπλωµα), termo grego que significa documento dobrado em dois e que, assim, tanto revela, como esconde (37). Além disso, no seu ensaio de crítica literária sobre ambiguidade, William Empson propõe a definição de sete tipos de ambiguidade que enriquecem a poesia, partindo de uma acepção simples e inclusiva: “any verbal nuance, however slight, which gives room for alternative reactions to the same piece of language” (3). Empson discorre, então, sobre os sete tipos de ambiguidade, desde o recurso à metáfora, à relevância do contexto, aos estados de espírito/entendimento (state of mind) do autor e do leitor, entre outros. Resulta evidente a relevância da análise empsoniana no contexto da diplomacia: múltiplos significados/sentidos, múltiplas interpretações, múltiplos contextos. Dražen Pehar

1 Na acepção do termo enquanto duplicidade de sentidos ou ambivalência e não decorrente do que mais

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acrescenta outro elemento significativo à questão da ambiguidade no contexto diplomático – a dicotomia desconhecimento versus conhecimento:

… ambiguity is a product of our ignorance of a particular kind. We are ignorant about which (of two, or more) meanings should be taken as attached to the ambiguous sentence (word, text), but this ignorance is founded on our knowledge of possibilities, because we know that the sentence could carry a number of meanings, and we know which meanings it could carry (155).

Face ao exposto, compreende-se o desafio imposto ao embaixador, especialmente aquele que tem como missão negociar um acordo, como veremos no decorrer do presente capítulo: deve gerir o discurso, oral e escrito, a fim de manter, em harmonia, a assertividade, a cordialidade, a precisão e a ambiguidade.

Por sua vez, a ambiguidade no discurso escrito – neste caso, a correspondência diplomática – remete, de igual modo, para as idiossincrasias do autor, bem como para o seu perfil e as suas virtudes individuais. Os detalhes acrescentados pelo autor ao relato dos acontecimentos que descreve permitem aos investigadores uma interpretação mais lata dos mesmos, interpretação essa que extravasa o contexto epocal de factos historicamente aceites. A escrita nas entrelinhas permite-nos, pois, ler nas entrelinhas e perscrutar o que terão sido as múltiplas representações do ‘Outro’; permite-nos ainda compreender o estado das relações anglo-lusas num dado momento histórico, não obstante a leitura oficial dos eventos.

O presente capítulo pretende sugerir que os enviados portugueses à corte isabelina desempenharam um papel decisivo, cartografando mentalidades, tecendo uma teia de cumplicidades e de argumentos em torno do reclamado direito português sobre o comércio nos territórios da costa ocidental africana, assegurando a conquista de um entendimento entre Portugal e Inglaterra. De acordo com Revière de Carles: “the exercise of diplomatic reading is a means of uncovering the strategic aspects underpinning early modern diplomatic appeasement” (8). De uma forma mais abrangente, a análise das missões diplomáticas que visavam a pacificação dos conflitos entre Portugal e Inglaterra

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decorrentes do diferendo comercial servirá, portanto, como um meio de ler a diplomacia do período em apreço.