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O Caso Económico: Diplomacia e (Des)Acordo

4. O Incidente Diplomático de

Duas cartas de Edwin Sandys, incluídas na colecção Lansdowne Manuscripts da British Library, registaram o evento. Dado que, aparentemente, as cartas do bispo de Londres surgem como o único registo do incidente diplomático de 1573, a análise desses manuscritos permitir-nos-á uma significativa revisitação do passado, além de uma melhor

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interpretação sobre as relações anglo-portuguesas da época, no que diz respeito à coexistência e ao confronto de forças antagónicas de poder.

Em Março de 1573, Edwin Sandys escreveu duas cartas relacionadas com o indevido encorajamento dado à celebração da Missa católica (“the undue encouragement of the Mass”) por parte do embaixador português.

A primeira carta, de 2 de Março de 1573, foi endereçada a William Cecil, Lord

Chancellor. A segunda missiva, redigida dois dias mais tarde, foi enviada para Robert

Dudley, Earl of Leicester, favorito de Isabel I. Extractos de ambas as cartas foram publicados, com comentários, em 1838, por Wright, em Queen Elizabeth and Her Times:

a Series of Original Letters, mais tarde, em 1907, por Birth, em The Elizabethan Religious Settlement: A Study of Contemporary Documents, e, mais recentemente, em 2010, por

Wagner, em Voices of Shakespeare´s England. Contudo, a presente análise das cartas de Sandys pretende partir de um diferente ponto de vista em relação àquele apresentado por Wright, Birth e Wagner, na medida em que se centra em Francisco Giraldes; além disso, pretende ainda analisar e reflectir sobre a colisão dos diferentes interesses políticos e religiosos anglo-portugueses trazidos a lume pelo incidente diplomático de 1573.

Focalizemo-nos então no incidente diplomático que envolveu a prática da fé católica do embaixador português e na correspondência do bispo de Londres sobre o evento ocorrido, que ele descreve como “the intolerable business”. Concomitantemente, conheceremos uma parte da vida de Francisco Giraldes durante a missão em Londres, tendo em conta a importância do seu cargo na corte isabelina enquanto plenipotenciário ao serviço de D. Sebastião.

Na carta dirigida a William Cecil, o bispo de Londres apresenta o sucedido e fundamenta os seus argumentos:

… I learnt that the Mayor of London has fully advertised your Lordship touching our dealings with this Portingale, [the medieval English spelling for Portugal] who of too much boldness and without any Color of authority, has suffered massmongers of long time in his house, to the great degradation of God’s glory, the great offense of the godly and religious, and contrary to the laws of this realm. I, understanding of it… required the Sheriff of London, Mr. Pipe, to apprehend such as he found there committing idolatry (25).

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Giraldes encontrava-se, portanto, numa situação bastante delicada. Ele havia sido surpreendido pelos oficiais do Sheriff de Londres, no momento em que assistia à celebração da Missa católica, acompanhado por um conjunto de súbditos ingleses que acolhia na sua residência. Dada a proibição, a Missa era celebrada muito cedo pela manhã, ou tarde na noite, em sigilo absoluto. No entanto, a vasta rede de serviços secretos a cargo dos ministros de Isabel I, especialmente sob a orientação de Walsingham, constituía uma ameaça a estas celebrações. Afinal, havia informadores espalhados por todos os locais, actividades e cargos. Quando os oficiais irromperam pelas portas de sua casa, Francisco Giraldes deverá ter experienciado algo semelhante ao descrito por Mortimer:

… [that] frightening moment when a stranger knocks insistently on the door and you look at the terrified faces of those around you, wondering whether you have been discovered (85).

Efectivamente, Giraldes havia sido descoberto, e a carta do bispo menciona que à entrada forçada na residência diplomática se seguiu uma busca. Foram encontrados vestígios de idolatria, nomeadamente a da adoração do bezerro (“worship of the calf”), análoga à do povo israelita após a travessia do Mar Vermelho, enquanto esperava que o Profeta Moisés descesse do Monte Sinai com as Tábuas dos Dez Mandamentos. Sandys informa Cecil: “the altar prepared, the chalice, and their bread god” (25). Quatro estudantes de Direito foram detidos em consequência da busca realizada, embora o bispo soubesse que muitos outros Ingleses se encontravam escondidos na casa do embaixador: “a great number of Englishmen… minded to hear mass… hid in the house” (25). Uma vez mais, podemos tentar imaginar os convidados de Giraldes atropelando-se, na busca de um lugar onde pudessem esconder-se dos oficiais, e, tendo encontrado um refúgio que os acolhesse, permanecendo imóveis e em absoluto silêncio, enquanto decorria a busca. Não obstante o tumulto e a situação perturbadora, o embaixador português não se escondeu. Aliás, tal como o bispo informa Cecil, Giraldes assumiu uma atitude bem diferente:

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Francis Gerald, the Portingale, offered to shoot dogs, to smite with his dagger and to kill in his rage (25).

Apesar das ordens do bispo, o Sheriff de Londres não prendeu o embaixador, nem tão pouco o padre que celebrava a Missa. O bispo informa Cecil: “this Portingale is at court to complain” (25). Ou seja, a situação tinha sofrido um volte-face algo inesperado para o bispo, agora obrigado a apelar a Cecil para usar de influência na resolução do que chama “the dealings with this Portingale”:

… to see that idolatrer and godless man sincerely punished, if you will let him over to me, and give me authority, I will hand him secundum virtutes. Your order I look for, and that I will see executed, so far as my power will reach (25).

Dois dias mais tarde, ainda nenhuma acção legal havia sido tomada contra o embaixador português. Como se a carta dirigida ao Lord Treasurer não tivesse conseguido fazer chegar o seu apelo suficientemente perto dos ouvidos da rainha, Sandys decide escrever a Robert Dudley, numa clara manobra de bastidores. Na missiva dirigida a Dudley, informa: “the Portingall has complained at court as if he should have been evil used” (26). A carta do bispo revela ainda o seu espanto perante a ausência de consequências para o embaixador português; refere-se a Giraldes como “this idolatrous proud Portingale” que encorajava a celebração diária da Missa católica, na qual participavam pelo menos vinte súbditos de Sua Majestade (26). O bispo informa ainda:

… the Sheriff apprehended few of a simple sort, but he suffered the author of this evil to escape (25).

Em suma, para o bispo de Londres este episódio tinha-se transformado numa medida de forças com o embaixador português. Era impossível a Sandys admitir a justaposição dos assuntos políticos e religiosos, ou a forma como os primeiros assumiam

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prioridade em relação aos últimos e à necessidade imperiosa de purgar (“purge”) a Igreja da idolatria e da superstição associadas à fé católica (25).

Em ambas as cartas, o bispo de Londres relembra os seus destinatários do omnipresente castigo divino pendente sobre os partícipes no pecado da idolatria, mesmo que o façam de forma sub-reptícia. Na carta escrita a Dudley, a citação em latim do livro do Profeta Jeremias, contida no Antigo Testamento, “Maledictus qui facit opus Domini

fraudulenter” (26) – “amaldiçoado seja aquele que realiza o trabalho do Senhor de forma

enganosa” (Jeremias 48:10) – evoca a ideia da retribuição divina sobre todos aqueles que tentam enganar Deus. Contudo, ao citar Jeremias, o bispo opta pelo uso do substantivo “negligenter”, ao invés do original “fraudulenter”, enfatizando ainda mais a ideia de que o envolvimento no pecado da idolatria poderia assumir múltiplas formas, incluindo a de negligenciar o castigo, justificado e expectável, a aplicar aos considerados responsáveis por essa ofensa divina.

Assumindo uma abordagem ainda mais directa, o bispo relembra Cecil que um simples “piscar de olhos” ao pecado da idolatria é conivente com esse mesmo pecado e acrescenta:

… such an example is not to be suffered, God will be mightly angry with it, it is too offensive; if her Majesty should grant or tolerate it, she can never answer God for it (25).

O bispo recorre então à derradeira arma que possui, lançando uma ameaça velada à alma da rainha e ao risco da sua salvação eterna. De facto, considerava que o assunto não poderia assumir maior gravidade.

Ambas as missivas expressam, de modo notório, a desconsideração de Sandys quanto à conduta do embaixador português, assim como o seu desprezo pelo próprio Giraldes. Tal pode concluir-se das várias vezes que recorre às expressões “este Português” (“this Portingale”), ou “este idólatra e orgulhoso Português” (“this idolatrous and proud Portingall”)5. O uso do determinante demonstrativo ‘este’ (“this”) para referir o nome ‘Português’ (“Portingale”) dota a forma como o bispo alude ao embaixador com uma

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conotação negativa. Ademais, apesar de as duas cartas serem algo elaboradas e extensas, Sandys escreve o nome do embaixador apenas uma vez: na carta endereçada a Cecil encontra-se a forma anglizada do nome e sobrenome do embaixador – “Francis Gerald” (25) –, mas na carta escrita a Dudley apenas o apelido “Gerald” parece ser suficiente (26). Portanto, na sua correspondência, o bispo de Londres nega ao embaixador português a sua primordial e mais significativa designação de identidade, ou seja, o seu nome. Na carta a Cecil, Sandys nunca se refere ao sujeito da sua missiva pelo cargo que ocupa – o embaixador português – apesar de mencionar o Mayor de Londres e o Sheriff de Londres (25). E no caso da referência ao Sheriff, o bispo menciona-o pelo seu sobrenome, precedido do título honorífico ‘senhor’: “Mr. Pipe” (26).

Se examinarmos mais de perto ambas as cartas, constatamos que possuem caligrafias distintas, facto que pode ser explicado pelo recurso a um secretário, ou pelo esclarecimento que encontramos no final das duas missivas, indicando que o bispo as havia ‘rabiscado à pressa’: “scribbled… in haste” (25, 26). Independentemente da diferente caligrafia, a designação “Portingale” surge escrita de formas distintas: “Portingale” e “Portingall”. Tal diferença ortográfica não se coaduna com a erudição do bispo, confirmada pelas várias passagens em latim incluídas nas missivas. Embora devamos ter em consideração a evolução ortográfica do nome ‘Portugal’, podemos igualmente ‘ler nas entrelinhas’ e incluir esta incoerência ortográfica como mais um meio pelo qual Sandys expressa a sua desconsideração por Giraldes. Segundo Annabel Patterson, e na esteira da hermenêutica straussiana, no caso da época pré-moderna, o método interpretativo de ler nas entrelinhas (“reading between the lines”) envolvia mais do que apenas escrever nas entrelinhas: tratava-se de uma estratégia política consubstanciada na escrita de mensagens subentendidas (7; 224). Em última análise, apesar de as cartas ora em análise expressarem as idiossincrasias do autor, o estudo de tal correspondência permite-nos compreender como a persona do embaixador português era tida em conta num círculo de pessoas eminentes.

Não obstante os apelos do bispo de Londres, os registos demonstram que neste embate entre as forças religiosas e seculares foi a diplomacia que saiu vencedora. Como embaixador experiente, Francisco Giraldes havia já estabelecido a sua reputação junto da corte isabelina como hábil e engenhoso negociador, qualidades que seriam, mais tarde, consideradas por De Callières requisitos fundamentais de qualquer diplomata (19-48).

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Precisamente devido à reconhecida autoridade de Giraldes enquanto embaixador, D. Sebastião ordenou que o diplomata deixasse o cargo que desempenhava na Flandres para se dirigir a Londres, a fim de resolver o conflito comercial entre Portugal e Inglaterra, analisado no Capítulo I. Por mais de uma década, outros embaixadores e enviados diplomáticos portugueses haviam tentado sanar, sem sucesso, as divergências que opunham as duas coroas. Em 1569, as actividades comerciais entre Portugal e Inglaterra cessaram, e a Aliança de amizade de 200 anos foi quebrada. Assim, a resolução das consequências políticas e comerciais advindas das divergências entre os dois reinos dependia agora das habilidades diplomáticas de Francisco Giraldes. Servindo como plenipotenciário do rei de Portugal,6 Giraldes trabalhou de perto com o círculo mais restrito da administração inglesa, tendo várias audiências com Isabel I, monarca cujo favor o embaixador português conseguiu conquistar, apesar do conturbado contexto político-económico. A conduta de Giraldes aparenta ter sido a personificação do verdadeiro diplomata renascentista, conforme Garrett Mattingly observou:

… [someone who] understood that his job was to win and hold the confidence and respect of the people among whom he worked (109).

Muito provavelmente, o bispo de Londres não terá sido capaz de compreender a relevância do papel desempenhado por Giraldes. Isabel I revelou não estar disposta a iniciar uma outra contenda com Portugal, confirmando o que Mattingly assinala: no final, a maioria dos conflitos entre diplomatas e autoridades locais acabava por ser resolvida pelo monarca, o qual tinha menos consideração pelos princípios da lei do que pela importância do poder da figura do Embaixador ou do país que este representava (265).

6 Apesar de a carreira diplomática não se encontrar, à época, enquadrada profissionalmente, a representação

do soberano enquanto plenipotenciário consubstanciava um serviço de enorme responsabilidade, pois consistia na atribuição de plenos poderes a um ministro ao serviço de um soberano em solo estrangeiro. Se considerarmos que os diplomatas não realizavam qualquer exame de admissão para a função que iriam desempenhar, mas se tratavam de uma escolha pessoal do soberano, seguindo critérios de confiança política e de ascendência social, então o papel de Giraldes surje, uma vez mais, reforçado enquanto ministro plenipotenciário.

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