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As controvérsias próprias ao testemunho

2. TESTEMUNHO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

2.1 O TESTEMUNHO NA HISTORIOGRAFIA: um recurso controverso

2.1.2 As controvérsias próprias ao testemunho

Com efeito, o testemunho é de relevância crucial à história do tempo presente, ainda que esteja sujeito a inúmeras deformações. Mas, em que pese suas potencialidades, é preciso especificar a que deformações estamos aludindo e em que elas fragilizam a instituição testemunhal.

Primo Levi é muito atento a essas questões, fato singularmente importante, visto ter sido um sobrevivente de Auschwitz. Em Os afogados e os sobreviventes, publicado

50 Ibidem, posição 829.

51 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al.]. 1. ed. 6.

reimp. Campinas: Editora da Unicamp, 2014, p. 25.

em 1986, ele pontua algumas dentre elas. Abrindo o capítulo intitulado “A memória da ofensa”, escreve a seguinte passagem:

A memória é um instrumento maravilhoso, mas falaz. [...] As recordações que jazem em nós não estão inscritas na pedra; não só tendem a apagar-se com os anos, mas muitas vezes se modificam ou mesmo aumentam, incorporando elementos estranhos. Sabem-no bem os magistrados: quase nunca sucede que duas testemunhas oculares do mesmo fato o descrevam do mesmo modo [...], ainda que o fato seja recente e nenhum[a] [delas] tenha interesse em deformá- lo.53

Algumas linhas depois, ele arremata, dizendo:

É certo que o exercício [...] mantém a recordação fresca e viva [...], mas também é verdade que uma recordação evocada com excessiva frequência, e expressa em forma narrativa, tende a fixar-se num estereótipo, numa forma aprovada pela experiência, cristalizada, aperfeiçoada, ataviada, que se instala no lugar da recordação não trabalhada e cresce à sua custa.54

Os historiadores e historiadoras acompanharam de perto, e não sem assombro, essas questões. Annette Wieviorka assinala uma postura muito comum entre os artífices da história, ao citar as críticas que a historiadora Lucy Dawidowicz elabora e dirige ao testemunho:

As transcrições dos testemunhos [de sobreviventes da Shoah] que eu examinei têm estado cheias de erros nas datas, nomes dos participantes e lugares, e é evidente a falta de compreensão dos eventos. Aos pesquisadores incautos, alguns testemunhos podem representar mais riscos do que ajuda.55

Valendo-se de exemplos literários, Javier Cercas dirá coisas muito semelhantes a essas. Assim, sob o argumento simetricamente oposto ao de que o sobrevivente conhece melhor a realidade do passado justamente pelo fato de a ter experimentado diretamente, para ele, a testemunha não só não entende sua experiência, mas está justamente na pior condição possível para fazê-lo.56 Conforme destaca,

53 LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 2. ed. São Paulo: Paz

e Terra, 2004, p. 19.

54 Ibidem, p. 20.

55 DAWIDOWICZ, Lucy. Apud. WIEVIORKA, Annette. Op. cit., p. XIII.

56 CERCAS, Javier. O impostor. Tradução de Bernardo Azjenberg. 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015,

Tolstói afirma em Guerra e paz que ‘o indivíduo que desempenha um papel no desenrolar da história nunca entende o seu significado’. [...] Trinta anos antes de Guerra e paz, Stendhal criou uma cena semelhante: no começo de A

cartuxa de Parma, Fabrice Del Dongo, fervente admirador de Napoleão,

participa de Waterloo, mas assim como Bezúkhov em Borodinó, não entende nada, ou só entende que a guerra é um caos absoluto e não ‘aquele nobre compartilhamento de almas generosas que ele havia imaginado com base nas proclamações de Napoleão’.57

Mas o que o historiador e a historiadora poderiam fazer que a testemunha não poderia? Para Cercas, eles podem, dotados de uma visão ampliada, “[...] encaixar Borodinó e Waterloo dentro da sequência da história do século XIX ou da história simplesmente, e, dessa maneira, dar um sentido ao relato daquele episódio”.58 Cercas decerto não está negando à testemunha a sua verdade. Mas trata-se de uma verdade completamente distinta daquela que regeria, segundo ele, a história. Se tratariam, pois, de dois regimes de verdade, que, se não se excluem mutuamente – e creio que essa possibilidade não está inteiramente descartada59 –, pouco se tocam ou influenciam. Segundo essa visão de coisas, o testemunho – impreciso, esquecidiço e pouco confiável – seria, quando muito, mera fonte historiográfica.

Para além dos argumentos anteriores, não é raro que o sobrevivente de um evento histórico traumático seja hoje em dia uma espécie de celebridade. Ora, não foi precisamente na condição de sobrevivente dos campos de concentração nazistas e como ex-combatente republicano na guerra civil espanhola que E. Marco tornou-se conhecido?60 De todo modo, isso nem sempre foi assim. A primeira publicação do livro mais importante de Primo Levi, intitulado É isto um homem?, acontece logo depois da Segunda Guerra Mundial, em 1947. No entanto, a importante editora Einaudi só o publicaria onze anos depois, momento a partir do qual a obra vai se tornando mundialmente conhecida. O que se passou nesse intervalo temporal? No prefácio deste livro, seu autor revela o impulso que o animou a escrevê-lo:

Senão de fato, pelo menos com intenção e concepção, o livro já nasceu nos dias do Campo. A necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’

participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de

impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades

57 Ibidem, p.298-299; ibidem, p. 278. 58 Ibidem, p. 299; idem.

59 Abordarei este tópico no segundo capítulo deste estudo.

60 Registre-se, aqui, que Marco participou da guerra civil espanhola ao lado dos republicanos; quanto a ser

elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. [grifo meu].61

Uma necessidade interior o impelia. Mas excetuando os sobreviventes, talvez não houvesse, à época, qualquer interesse nas lembranças dos horrores de Auschwitz.62 No fim dos anos 1980, quatro décadas transcorridas, a situação era outra. As antigas urgências não haviam saído de cena, mas outras foram adscritas a elas, tornando-se cada vez mais relevantes. Agora, as testemunhas falam, e

Falamos, aliás (posso usar a primeira pessoa do plural [...]) falamos também porque somos convidados a fazê-lo [...]. Os outros, os ouvintes, amigos, filhos, leitores ou mesmo estranhos [...] compreendem a unicidade de nossa experiência ou pelo menos se esforçam por compreendê-la. Por isto, estimulam-nos a narrar e nos formulam perguntas, às vezes colocando-nos em embaraço: nem sempre é fácil responder certos porquês, não somos

historiadores nem filósofos, mas testemunhas, e de resto não está assentado

que a história das coisas humanas obedeça a esquemas lógicos rigorosos. Não está assentado que cada mudança decorra de um só porquê [...]. [grifos meus].63

Há dois elementos desse excerto que merecem ser sublinhados, a saber: uma disposição renovada em ouvir e tentar compreender a experiência dos sobreviventes, de um lado; e a autoridade com que eles são investidos, de outro. Levi reconhece que não pode falar senão na condição de testemunha. Mas o interesse social sobre os eventos que ele vivenciou recai sobre o relato das vítimas, e não sobre o que é tecido por historiadores e historiadoras. Dois perigos resultam disso. Se a testemunha firma com quem a escuta um pacto de compaixão, inspirado pelo sofrimento (incomensurável e intransmissível por definição)64, não fica comprometido o dever, quiçá inalienável, da história de promover

61 LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 8.

62 Conforme o autor nota no prefácio de Os afogados e os sobreviventes, “As primeiras notícias sobre os

campos de extermínio nazistas começaram a difundir-se no ano crucial de 1942. [Elas] delineavam um massacre de proporções tão amplas, de uma crueldade tão extrema, de motivações tão intricadas que o público tendia a rejeitá-las em razão de seu próprio absurdo”. O medo da rejeição era grande, pois “[...] esse mesmo pensamento (‘mesmo que contarmos, não nos acreditarão’) brotava, sob a forma de sonho noturno, do desespero dos prisioneiros. Quase todos os sobreviventes [...] recordam um sonho muitas vezes recorrente nas noites de confinamento, variado nos particulares mas único na substância: o de terem voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados.” (LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 9-10).

63 Ibidem, p. 128.

64 No que se refere a esse tema, ver o artigo de HEYMANN, Luciana Quillet. O"devoir de mémoire" na França contemporânea: entre a memória, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006. 27f,

reflexões metodologicamente rigorosas na esfera pública?65 Como então questionar criticamente a testemunha numa época em que ela é heroicizada e, sobretudo, em que as histórias individuais e as opiniões pessoais tomam amiúde o lugar da análise?66

Mas se o testemunho é assim tão frágil no nível epistemológico e tão problemático no plano moral, como estabilizar seu uso e a instrução que ele fornece à historiografia? Isto requererá uma análise de suas potencialidades. Destarte, ao fim de uma seção que por mais de uma vez portou-se com suspicácia ante o testemunho, gostaria de encerrá-la com as palavras de um historiador que, se chegaram a nós, não foi senão por sua excelente memória. Constituem, pois, um apelo ao equilíbrio: “o ceticismo de princípio”, ele diz, “não é uma atitude intelectual mais estimável ou mais fecunda que a credulidade, com a qual, aliás, combina-se facilmente em muitos espíritos um pouco simplistas”.67 Era o que escrevia Marc Bloch, em 1944, no afamado Apologia da história.68