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Entre a imaginação e a anterioridade do real: a encruzilhada da memória

2. TESTEMUNHO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

2.1 O TESTEMUNHO NA HISTORIOGRAFIA: um recurso controverso

2.1.1 Entre a imaginação e a anterioridade do real: a encruzilhada da memória

O testemunho está sujeito a um número quase infinito de deformações, sendo incontáveis as suas fragilidades. Se excetuarmos aquelas advindas da desconfiança sobre o caráter pessoal de uma determinada testemunha – aspecto que afastamos da análise desde já –, todas as fragilidades atribuídas ao testemunho repousarão sobre a problemática da imaginação e da memória. A imaginação é uma memória enlouquecida, diz Mário Quintana, e compreende-se bem seu raciocínio. Dom Quixote, personagem inesquecível de Cervantes, era dotado de uma imaginação incomparável, ao contrário de seu fiel escudeiro, cuja memória o fazia lembrar até mesmo dos adágios sem fim que, conforme seu costume, emendava entre si até o ponto de perderem o sentido. Sancho montava num

burro, animal associado à memória.42 E na fábula satírica de Orwell em que os animais são as personagens artífices de uma nefasta revolução, é o burro chamado Benjamin o único a lembrar de como haviam sido os tempos anteriores a ela. Mas ele não pode imaginar qualquer saída para seu impasse, pois carece de imaginação.43 O próprio Aristóteles afirmara, certa feita, “[...] que os homens que têm boa memória não são idênticos aos que são rápidos em recordar, se não que, de modo geral, os que são de penetração lenta têm melhor memória, enquanto os que são de penetração rápida e aprendem facilmente são melhores em recordar”.44 Ao que parece, a rapidez na recordação está associada à inteligência, a certa capacidade de fazer associações novas com lembranças distintas e, da mesma forma, à imaginação que auxilia no aprendizado. Mas será que a imaginação e a capacidade de recordar rapidamente se opõem à memória? Sigamos Cervantes por um momento, no instante em que ele apresenta a engenhosa45 personagem que intitula sua obra-prima:

É pois de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano) se dava a ler livros de cavalaria, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração de seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitas courelas de semeadura para comprar livros de cavalaria que ler. [...] Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que as noites se lhe passavam a ler desde o sol posto até a alvorada, e os dias, desde o amanhecer até fim de tarde. E assim, do pouco dormir e do muito ler se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. [...] Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que se achava nos livros [...] e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo. [grifos meus].46

Homem de imaginação inflamada, D. Quixote é esquecidiço de tudo que se refere à realidade. Esqueceu-se não só do exercício da caça, mas inclusive da administração de seus bens. O exemplo quixotesco mostra de forma dramática até onde pode chegar a imaginação, que, no ponto extremo de suas possibilidades, assume o risco do divórcio

42 Sobre este ponto, ver o ensaio de WEINRICH, Harald. Quanto de memória necessita o espírito?

(Cervantes, Huarte/Lessing, Cordemoy, Helvécio). In: WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 77-90.

43 Ver ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas. Tradução de Heitor Aquino Ferreira.

São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

44 ARISTÓTELES. Del sentido y lo sensible; De la memoria y el Recuerdo. S. l. Edição Kindle. S. d.

Posição 761.

45 Gostaria apenas de ressaltar que o título original da obra é El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, ainda que, vertido para o português – ao menos na edição por mim consultada, traduzida por

António Feliciano de Castilho –, tenha ficado simplesmente Dom Quixote de la Mancha.

46 CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha (Volume I). Tradução de António Feliciano de

com o real. Sancho, por outro lado, não faz mais que evocar os ditados que memorizara, sem poder dar a eles qualquer significação.

Mas a distância entre memória e imaginação começa a ser reduzida quando esclarecemos o sentido das frases de Aristóteles. Entre a fidelidade da memória e a loucura da imaginação, o que significa o ato de recordar? Como veremos, a recordação quer ser fiel ao passado, mas não pode deixar de ser imaginativa. Se a memória de Sancho é uma simples evocação, ela se coloca, pois, no polo passivo da memória, pertencendo ao registro da “afecção”.47 Mas Sancho não recorda os ditos populares, eles vêm a ele em profusão, que os repete ingenuamente. Já a recordação, por sua vez, relaciona-se à ideia de busca, de trabalho, estando ligada ao polo ativo da memória. Evocar é dizer algo que já está aí, que de certa forma não deixou de estar presente, ou que simplesmente irrompe de algum lugar, enquanto recordar é buscar não exatamente o que se perdeu, mas aquilo que não se sabe onde está. Vastos são os palácios da memória, dirá Agostinho, e, contudo, não são os objetos nem o passado em si que neles adentram, “[...] mas as suas imagens: imagens das coisas sensíveis prestes a oferecer-se ao pensamento que as recorda”.48 Essa característica espacial da memória, cuja teorização permaneceria intocada por muitos séculos – segundo a qual recordar é buscar algo que deslocou-se para longe, que está momentaneamente esquecido, mas que a memória sabe que esqueceu – desdobra-se em elemento temporal. É num tempo outro, o presente de quem recorda, que o jogo retrospectivo da lembrança acontece. Como Aristóteles aclara, a memória pertence a um registro duplo, a um só tempo imaginativo e temporal. Ela é, então, como ele recapitula no fim de seu opúsculo, “[...] um estado produzido por uma imagem mental, referida, como uma semelhança, a aquilo de que é uma imagem; e explicamos também a que parte de nós [ela] pertence: a saber, que pertence à faculdade sensitiva primária, isto é, a aquela que percebemos com o tempo”.49 Assim, somente no momento em que “[...] a afecção se produz no interior, há memória; de maneira que a memória não se produz ao mesmo

47 Ricoeur associa a evocação ao “aparecimento” atual de uma lembrança. O termo está ligado, portanto,

ao lado passivo da memória, à mneme. Contrária à evocação, e pertencente ao polo ativo da memória, temos o termo recordação, que Ricoeur associa com a ideia de busca, de trabalho, remetendo à anamnesis. Assim, a evocação estaria igualmente ligada a uma memória involuntária, que pode aparecer subitamente, ao passo que a recordação, ligada à ideia de trabalho, faz pensar em uma memória voluntária, como o resultado de um processo mais longo e intencional. Ver RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. 1. ed. 6. reimp. Tradução de Alain François [et al.]. Campinas: Editora da Unicamp, 2014, pp. 45-49.

48 AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de

Pina. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, pp. 245-246.

tempo que a afecção originária. Pois a memória não se fixa até que algum tempo se

transcorra, já que o indivíduo recorda no presente o que viu no passado” [grifo meu].50

É que recordamos sem as coisas, mas com o tempo.

Consequentemente, por mais suspeitos que a recordação, a memória e, diríamos, o testemunho possam parecer, eles “são do passado”. E ainda que também sejam produtos do presente, e nesse aspecto é isso que assegura para a memória sua capacidade plástica de se reformular e se ressignificar incessantemente, é preciso que o tempo passe para que ela exista. É sua condição. Sem deixar de reconhecer a imbricação entre a imaginação e a memória, Ricoeur dirá que é preciso evitar a confusão entre elas, visto possuírem intencionalidades distintas, pois, ao contrário da memória, a imaginação não precisa de companhia. Divorciada da mãe de todas as musas, ela se volta para o fantástico, para o irreal, para a ficção, ao passo que a memória visa à anterioridade do real, isto é, ao passado. Diferenciá-la da imaginação é, então, uma forma de valorizá-la, reconhecendo suas potencialidades.51 E ainda que jamais possamos estar de todo seguros quanto à fidelidade ao passado de uma dada atestação – supondo inclusive que a testemunha esteja convicta do que diz e que não suspeitemos de suas boas intenções –, gostaria de lembrar, outra vez com Ricoeur, que, “[...] apesar da carência principal de confiabilidade do testemunho, não temos nada melhor do que o testemunho [...] para assegurar-nos de que algo aconteceu”.52