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O IMPOSTOR COMO AUTOBIOGRAFIA

3. PERSCRUTANDO O IMPOSTOR, DE JAVIER CERCAS: um livro

3.2 O IMPOSTOR COMO AUTOBIOGRAFIA

O leitor de O impostor decerto terá notado a dimensão autobiográfica do livro num sem fim de oportunidades. Vamos sublinhar, agora, algumas das ocasiões em que isto pode ser observado. Vemos que o narrador em primeira pessoa busca evidenciar, já desde as páginas inaugurais do romance, que seu livro não fora concebido sem inúmeros contratempos, tampouco sem uma série de hesitações de ordem ética.368 Javier Cercas quer transmitir a seu leitor as dificuldades que enfrentou não só ao longo do processo de escrita, mas também ao longo do próprio processo decisório de escrever, ou não, o livro. Podemos notar, por exemplo, que a narrativa autobiográfica atravessa toda a primeira parte da obra, ainda que não se restrinja a ela. Composta por treze capítulos, e intitulada “A pele da cebola”,369 ela pretende estabelecer um contrato de leitura com o leitor.370 Nela, vamos conhecendo não só as motivações e anseios do autor, mas também a vida de E. Marco, cobrindo, assim, o período que se estende desde seu nascimento até os anos 1970, quando tem início as suas falsificações memoriais. Paralelamente ao descasco das fantasias e mesmo das patranhas de seu impostor, Cercas vai tecendo sua narrativa autobiográfica. Grosso modo, toda esta parte do livro organiza-se de forma simétrica: nos capítulos ímpares é desenrolada a narrativa autobiográfica, enquanto que, nos pares, o relato de vida de Marco.371 Assim, logo na primeira página do romance, Cercas confessa que resistiu por sete anos a escrever o livro: “[...] não queria escrevê-lo porque tinha medo. É o que eu sabia desde o início, mas não [...] me atrevia a admitir. A única coisa que eu sei agora é que o meu medo era justificado”.372 A hesitação é longa, pois, se a impostura de Marco é descoberta em 2005, somente quatro anos depois Cercas iria

368 REIS, Lorena Carvalho dos. Op. cit., p. 41.

369 CERCAS, Javier. O impostor. Tradução de Bernardo Azjenberg. 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul,

2015, pp. 11-160; CERCAS, Javier. El impostor. 1. ed. Buenos Aires: Literatura Random House, 2015, pp. 13-150.

370 Abramos, aqui, um parêntese para evidenciar que esse contrato de leitura que é estabelecido entre o autor

e o leitor, em partes da narrativa autobiográfica de O impostor, é muito comum nas biografias. Conforme salienta François Dosse, em seu O desafio biográfico, “[...] em geral, o biógrafo expõe as motivações que o levaram a acompanhar a vida do biografado e retraçar-lhe a carreira. Revela seus objetivos, suas fontes e seu método, elaborando assim uma espécie de contrato de leitura com o leitor. Essa prática de expor intenções é bastante clássica, mas assume no gênero biográfico uma importância singular que a transforma num rito quase obrigatório [...].” Ver DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma Vida. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2015, p. 95.

371 Somente nos dois ou três capítulos finais da primeira parte do livro essa simetria será embaralhada. 372 CERCAS, Javier. O impostor. Tradução de Bernardo Azjenberg. 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul,

atentar, e isso graças a algumas conversas com seu filho Raül, à razão dupla de seu medo em escrever. No quinto capítulo desta primeira parte, diz-nos o autor:

Raciocinei que a história de Marco era extraordinária, e logo senti que, se havia desistido duas vezes de mexer com ela, fora por [...] intuir que por trás daquele homem idoso se escondia alguma coisa que me questionava ou que concernia a mim profundamente, e sentia medo de verificar o que era.373

Mas, por detrás desta razão de foro pessoal, jazia “[...] um temor bem mais inconfessável: o de me acusarem de fazer o jogo de Marco, de tentar entendê-lo e, portanto, perdoá-lo, de ser cúmplice de um homem que havia zombado das vítimas do pior crime cometido pela humanidade”.374 O leitor não deixa de ser tocado pelas angústias de Javier Cercas. No sétimo capítulo da parte primeira, ele retoma a questão:

Eu já conhecia o suficiente a história de Marco para saber que, dentro dela, todo mundo se saía mal, e que contá-la seria se tornar um estraga-prazeres, pôr o dedo na ferida não somente de Marco e de sua família, mas do país inteiro. Será que eu queria fazer isso? Estava disposto a fazê-lo? Seria correto fazê-lo? [...] Minha intenção [de escrever o livro] não seria imoral, e não porque fosse fazer o jogo de Marco, avalizando ou mascarando suas mentiras [...], mas justamente pelo contrário, porque teria de acabar com suas mentiras e contar toda a verdade? Não seria melhor [...] abandonar o livro, abandonar Marco à ficção que ao longo de tantos anos o salvara, sem dar à luz a verdade que poderia matá-lo?375

Para além de um desconforto puramente pessoal, Cercas revela certa angústia no que concerne à significação que o relato biográfico de E. Marco poderia assumir junto à sociedade espanhola. Conforme nos conta, ele parece ser constrangido, desde muito cedo, a não escrever sobre Marco, uma vez que a atitude ideal para com o impostor, um “monstro de vaidade”, seria a de uma total indiferença. Para muitos interlocutores de Javier Cercas naquele período, o tratamento público da figura de E. Marco deveria resumir-se ao silêncio e ao esquecimento.376 Mas Cercas quer saber se o gesto de compreender sua personagem é equivalente ao de justificá-la e, mais, de perdoá-la.377 É uma dúvida que o faz desistir da empreitada de escrever a biografia de Marco por mais

373 Ibidem, pp. 54-55; ibidem, pp. 52-53.

374 Ibidem, p. 55; ibidem, p. 53. A edição em espanhol por mim consultada não emprega o verbo “perdoar”,

mas o verbo “desculpar”.

375 Ibidem, p. 77-78; ibidem, pp. 73-74. 376 Ibidem, p. 18; ibidem, pp. 19-20.

377 Ibidem, p. 55; ibidem, p. 53. Outra vez, a edição em espanhol consultada não menciona o termo perdão.

de uma vez. Ele se confronta longamente com essa questão, encontrando a solução para ela num livro de Tzvetan Todorov (que, apesar de sua importância, não é citado nominalmente).378 Escrever um livro a fim de perscrutar as motivações profundas da falsificação memorial de E. Marco não seria constranger as vítimas espanholas do nazismo e também do franquismo uma vez mais? Procurar entender o mal não será um desrespeito para com suas vítimas? É precisamente essa a pergunta que Todorov procura responder em Memoria del mal, tentación del bien:

Para nós, que não somos vítimas, mantém-se a pergunta: podemos nos furtar a uma tentativa de compreender o mal, ainda que seja o mais extremado? É possível também questionar a relação automática que [Primo] Levi estabelece: ‘Compreender é quase justificar’. Qualquer concepção moderna da justiça criminal descansa sobre um postulado distinto. O assassino, o torturador, o violador, deve pagar por seu crime. Não obstante, a sociedade não se limita a castigá-lo, mas procura também descobrir por que foi cometido o crime e atuar sobre suas causas para prevenir outros crimes semelhantes. [...]. Por isso, compreender o mal não significa justificá-lo, mas, sim, criar as condições para impedir o seu retorno.379

Ao cancelar a automaticidade entre a compreensão e a justificação a partir de Todorov, Cercas abre um espaço no qual a figura de Marco poderá ser complexificada, e no qual a própria falsificação de Marco poderá ser vista a partir de uma perspectiva histórica. Diferentemente daqueles que desejam esquecer Enric Marco através de um gesto desmesuradamente crítico, Cercas torna-se disponível para compreender. Essa grande dificuldade em falar de modo adequado sobre Marco, que faz de Cercas, segundo ele mesmo nos dá a entender, um escritor corajoso, explicita o traço que, desde seu relato autobiográfico, lhe possibilitará escrever seja uma biografia de Marco (para compreendê- lo), seja um ensaio sobre a conjuntura memorial espanhola (deslindando as razões pelas quais torna-se tão embaraçosa a confrontação com o passado). Isso fica bastante claro quando lemos o capítulo terceiro da primeira parte do relato de Cercas, em que ele narra a conversa que tivera com Santiago Fillol, um dos diretores de um documentário sobre a vida de Marco, intitulado Ich bin Enric Marco (“Eu sou Enric Marco”). A conversa acontece no ano de 2009 em Barcelona. O diretor argentino comenta que, até então,

378 Ibidem, p. 56; ibidem, p. 54.

379 TODOROV, Tzvetan. Memoria del mal, tentación del bien: indagación sobre el siglo XX. Tradução de

Manuel Serrat Crespo. 1. ed. Barcelona: Ediciones Península, 2002, pp. 150-151. A citação de Primo Levi é proveniente de É isto um homem?

nenhum livro sobre a impostura de Marco havia sido escrito. Tal tarefa requereria certo grau de galhardia, pois, segundo Fillol,

Na história de Marco todo mundo acaba vendido, a começar pelo próprio Enric Marco, passando pelos jornalistas e os historiadores, além dos políticos: enfim, o país inteiro. Contar a história de Enric implica incomodar muita gente, e ninguém gosta de fazer isso. Ninguém gosta de ser estraga-prazeres, não é verdade? Muito menos os escritores espanhóis.380

Cercas nos leva a entender que escrever um romance sem ficção sobre a trajetória e a impostura de Marco era, portanto, um modo de confrontar o passado espinhoso da guerra e da ditadura na esfera pública de seu país. Como veremos na parte em que vamos analisar as hipóteses históricas de Javier Cercas, a tentativa de compreender as motivações de Marco desdobrar-se-á na tentativa de averiguar o que tornou possível a impostura do impostor, escandindo, assim, o grau de ignorância e acriticismo da população espanhola no que toca ao seu passado recente.

Retomando os rasgos autobiográficos de O impostor, e mais especificamente aqueles que acabam por ativar os conteúdos biográficos do romance, é digno de nota que Cercas revele a seu leitor que tenha chegado a ficar obcecado pela figura de Enric Marco. E sentir-se obcecado ou mesmo “possuído” pelo biografado é um fenômeno recorrente para os biógrafos. Como nota François Dosse, esse processo pode levar o escritor ao ponto de não conseguir distinguir o exterior do interior, isto é, de uma incapacidade de diferenciar o seu biografado de si mesmo.381 Ainda em 2005, quando o caso Marco ecoara “até os últimos recantos do planeta,” ocupando parte significativa do noticiário espanhol, Cercas já havia se interessado enormemente pelo escândalo. Aliás, o verbo “[...] ‘interessar’ é insuficiente: mais do que me interessar pelo caso Marco, o que aconteceu foi que tive de imediato a ideia de escrever sobre ele. [...]. [Marco] me inquietava e também produzia [em mim] uma espécie de vertigem, uma apreensão abstrata”. Assim, “[...] devorei tudo o que se escreveu sobre Marco”.382 Transcorridos alguns anos, depois de ter tomado a decisão de escrever seu romance sem ficção, Cercas sai em desenfreada busca por materiais os mais diversos. Mergulhara em seu projeto. E, conforme admite,

380 CERCAS, Javier. O impostor. Tradução de Bernardo Azjenberg. 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul,

2015, p. 31; CERCAS, Javier. El impostor. 1. ed. Buenos Aires: Literatura Random House, 2015, p. 32.

381 DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma Vida. Tradução de Gilson César Cardoso de

Souza. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2015, pp. 13-14.

382 CERCAS, Javier. O impostor. Tradução de Bernardo Azjenberg. 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul,

[...] [jamais] ficara tão obcecado por um personagem como fiquei no caso de Marco. A partir de [certo momento], tudo o que acontecia comigo tinha alguma relação com Marco, me remetia a ele ou me comparava com ele. Naquela época, sonhava frequentemente com Marco, e nesses sonhos, ou mais precisamente, nesses pesadelos, eu travava um corpo a corpo com o nosso homem, o qual, para se defender, me acusava às vezes de ser mentiroso e farsante, de ser como ele, de ser muito pior do que ele; até mesmo, às vezes, de ser ele.383

Esse estado de obsessão faz com que Cercas chegue, de certa forma, a sonhar acordado com Enric Marco. Conforme nos conta o autor, ele passara o dia de 28 de abril de 2014 fantasiando diálogos com seu impostor.384 Não vou analisar essa conversa imaginária, mas ela explora, em grande medida, os elementos referentes aos seus pesadelos com Marco já apontados anteriormente.

Para além disso, vemos também que a narrativa autobiográfica de O impostor deseja inteirar o leitor dos processos que a tornaram possível. Para além daquilo que já apontamos, valeria dizer que o texto cercasiano relata igualmente as impressões de seu autor sobre Marco, como era sua relação com ele, bem como o desenvolvimento de sua pesquisa documental a respeito da trajetória do biografado. Aspectos, enfim, de um livro que se apresenta como um work in progress.385 Assim, por exemplo, Cercas compartilha

com o leitor o que sentiu quando encontrou Marco pela primeira vez:

Aquela impressão de um forte desconforto físico que senti diante de Marco se prolongou sob a forma de uma impressão muito forte de desconforto moral: parado em pé na sala de jantar de sua casa, vendo-o andar para lá e para cá seguido de Santi [Fillol, o diretor de Ich bin Enric Marco], perguntei-me que diabos estava eu fazendo ali e me odiei até o fundo da alma por ter ido conhecer aquele perfeito farsante e mentiroso consumado e sem-vergonha absoluto [...]. Durante o almoço, enquanto eu engolia uma massa apimentada e esvaziava taças enormes de vinho tinto, Marco descarregou em cima de Santi e de mim uma chuva despudorada de autoelogios e de justificativas insustentáveis (ao longo do qual, conforme percebi com espanto, Marco passava da primeira para a terceira pessoa como se não estivesse falando de si próprio): ele era um grande homem, uma pessoa generosa, solidária e muito humana, um incansável batalhador das boas causas, e era por isso que tantas pessoas falavam maravilhas dele.386

383 Ibidem, pp. 74-75; ibidem, pp. 70-71. 384 Ibidem, pp. 381-397; ibidem, pp. 353-368.

385 REIS, Lorena Carvalho dos. Op. cit., p. 36. Tocaremos muito brevemente no tema da pesquisa

documental de Cercas na próxima seção, ao abordarmos a dimensão biográfica do livro.

386 CERCAS, Javier. O impostor. Tradução de Bernardo Azjenberg. 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul,

2015, pp. 35-36; CERCAS, Javier. El impostor. 1. ed. Buenos Aires: Literatura Random House, 2015, pp. 35-36.

Questionado por Santi sobre o que achara do “velhinho”, Cercas responde sem meias medidas: Marco é “um horror! Um verdadeiro horror!”387 E, mesmo após a decisão de trabalhar com ele e escrever o livro, a relação entre ambos não deixou de ser tensa. Segundo Cercas, o impostor tentava manipulá-lo sempre que podia:

Marco ocultava informações, me enganava, mentia e, quando eu o flagrava em plena mentira, encontrava imediatamente alguma explicação que procurava fazer a mentira passar por um equívoco ou um mal-entendido. [...]. Era esperto como uma raposa e escorregadio como uma enguia, e não demorei a formar em minha cabeça a ideia de que ele não colaborava comigo para me ajudar, mas sim para fingir que me ajudava e, desse modo, manter a vigilância sobre mim, controlando meus passos [...] e conseguir, assim, fazer com que eu escrevesse o livro com que ele sonhava.388

Nos últimos capítulos do livro, Javier Cercas explicita o ponto de inflexão em sua relação com Marco. Trata-se de um momento epifânico, em que ele percebe retrospectivamente, ao observar a gravação dessa conversa, que seria possível “salvar” E. Marco através da narrativa e exposição das verdades de sua vida. Mais tarde, reitera que pretende entender o verdadeiro E. Marco obscurecido pela persona do impostor. E pergunta-se: “Pode a literatura salvar alguém? Depois de ter sido salvo quase toda a sua vida pela ficção, Marco poderia agora ser salvo pela realidade?” Ao fim e ao cabo, “[...] só existe uma maneira de saber se Marco se salvará, [...] e essa maneira é terminar de contar a verdade sobre ele, desmascarando-o totalmente [...]”.389 Esse gesto de tirar a máscara do impostor consistiria, em última instância, em iluminar Enric Marco através da metáfora do último enigma que, na próxima seção, examinarei. Mas gostaria de chamar a atenção para o dado de que o último enigma de E. Marco é uma das tentativas do escritor espanhol para complexificar sua personagem, compreendendo-a a partir de uma ambiguidade que não para de hesitar entre a mediocridade e a excepcionalidade absolutas que Cercas enxerga em Marco. Finalmente, se essa “salvação” está associada ao encontro com a realidade, é porque o narrador deseja operar um trabalho junto de seu biografado que seja coroado pela reconciliação deste com o mundo real. De modo que é preciso, de um lado, ver mais de perto como Javier Cercas opera essa delicada hesitação, sempre indecidível, entre um Enric Marco medíocre e um Enric Marco excepcional; e, verificar,

387 Ibidem, p. 40; ibidem, p. 41. 388 Ibidem, p. 354-355; ibidem, p. 328. 389 Ibidem, p. 433-434; ibidem, p. 401.

de outro, como o autor elabora a transição entre uma ficção que salva aliada a uma realidade que mata e uma ficção que mata vinculada a uma realidade que salva. Falaremos disso agora, quando passamos a discutir especificamente os aspectos biográficos de O

impostor e as maneiras com que eles ativam os elementos ensaísticos do romance.