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As crianças nas Folias de Reis de João Pinheiro (MG)

3.1 Caracterizando os performers e estabelecendo o seu papel dentro e fora da folia

3.1.2 Idade dos foliões

3.1.2.2 As crianças nas Folias de Reis de João Pinheiro (MG)

Embora não seja uma presença tão expressiva quanto a dos idosos. As crianças também se fazem presentes nas Folias de Reis de João Pinheiro. É muito comum o menino acompanhar o avô para foliar. Entre os foliões entrevistados apenas 2% tinha menos de 10 anos de idade e 4% de 10 a 15 anos. Essas crianças e os adolescentes ocupam os mais diversos lugares nas Folias de Reis. Podem ser caixeiros, pandeireiros, violeiro e até alferes.

Em toda literatura consultada muito pouco foi encontrado sobre as crianças na Folia de Reis. Embora Delgado; Müller (2005: 351) afirmem que ―o campo da sociologia da infância tem ocupado um espaço significativo no cenário internacional, por propor o importante desafio teórico-metodológico de considerar as crianças atores sociais plenos‖. No Brasil, é possível perceber a ausência de pesquisa que considere as crianças como atores sociais e agentes de sua própria história, principalmente no que tange à cultura popular78. Para as referidas autoras, falar das crianças como atores sociais é algo decorrente de um debate acerca dos conceitos de socialização no campo da sociologia. E continuam as autoras:

78 ―Cultura popular‖ está longe de ser um conceito bem definido pelas ciências humanas e especialmente pela

Antropologia Social, disciplina que tem dedicado particular atenção ao estudo da ―cultura‖. São muitos os seus significados e bastante heterogêneos e variáveis os eventos que essa expressão recobre.(Arantes, 1981:07). Porém, nesta tese, ela é pensada como escreveu Peter Burke (1999:21) ―a cultura é um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as formas simbólicas nas quais eles se expressam ou incorporam.‖

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[...] a perspectiva sociológica deve considerar não só as adaptações e internalizações dos processos de socialização, mas também os processos de apropriação, reinvenção e reprodução realizados pelas crianças. Essa visão de socialização considera a importância do coletivo: como as crianças negociam, compartilham e criam culturas com os adultos e com seus pares. Isso significa negar o conceito de criança como receptáculo passivo das doutrinas dos adultos (Delgado; Müller, op.cit.: 351).

Portanto, as crianças, nesta tese, são pensadas como agentes sociais, que têm vontade, sonhos, anseios, medos, dificuldades de aprendizagem das letras da folias, mas que principalmente têm voz própria e expressam seus sentimentos sobre a arte de foliar, que aprenderam os passos do ritual da folia e a ter fé como os demais foliões, na maioria das vezes, pais e avós. Como é o caso do pequeno folião Higor Felipe Vieira Borges, hoje com sete anos de idade, membro da Folia da Taquara, neto do folião Antônio Maria dos Santos e bisneto de José Maria dos Santos79, também membros da referida folia. Igor explica:

Eu sei tocar caixa, eu aprendi com meu avô. Foi ele que me ensinou! Eu gosto muito da Festa se Santos Reis. Sabe? Eu gosto de cantar, gosto de andar com os foliões, gosto muito da comida. Quando eu era pequeno eu tinha medo do palhaço, mas agora que eu cresci, eu não tenho mais. Eu sei que é um folião. Ele usa máscara para enganar a Herodes. Eu falo para todos os meninos, não precisa ter medo. Ele só faz graça. Ele quer proteger o Menino Jesus80.

Quando perguntado pela pesquisadora onde ele aprendeu sobre a função do palhaço, ele respondeu: uai! Como o meu avô Antônio e como o meu avô Zezé; referindo-se também ao seu bisavô. Três gerações que se encontram nas Folias de João Pinheiro. O pequeno folião Igor nasceu em uma família onde o conhecimento do ritual de foliar é passado de pai para filhos e a aprendizagem começa ainda criança, como explicou o seu avô Sr. Antônio Maria dos Santos:

Olha eu comecei a Folia eu devia ter uns dez, doze anos, eu comecei a acompanhar as folias com meus tios, já tocava cavaquinho, daí pra cá nunca falho nenhuma folia. [...] São quase sessenta anos de Folia. Eu tinha um tio, casado com uma tia minha, que era capitão de folia, que foi o melhor capitão que teve, era ele quem ensinava nós. Aí eu ficava tomando conta das coisas em casa, e girava com eles a cavalo, naquele

79 O folião José Maria dos Santos faleceu quinze dias após gravar essa entrevista.

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tempo pra andar na roça, era tudo de cavalo, primeiro de a pé e depois de cavalo, aí eu ia.81

O ápice da transmissão dos saberes rituais dos grupos de folia de João Pinheiro, está na maneira de ouvir, gesticular, criar, tocar, dançar, cantar e louvar, ou seja, está presente no pulsar do ritual: ―São estas as ações que mentalizam as relações de trocas, parentesco e se inserem em um processo dinâmico de transformação e re-interpretação dos saberes performáticos‖ (Kimo, 2005:708).

Segundo Arroyo (2000: 16), as várias culturas musicais orais valorizam o fazer musical como sendo ―auditivo, visual e tátil‖. Desta forma, ―não há quem especificamente ensine‖. Pensando dessa maneira, é possível observar que não há especificamente definido, nos grupos de Folias de Reis locais, um representante com a função de ensinar a prática musical. O procedimento de ensino e aprendizagem é realizado de forma coletiva, as festas e os ensaios são momentos em que se aprende e se ensina no grupo, por meio desse intercâmbio um folião que veio de outra cidade ou distrito pode ensinar ao grupo novas músicas e letras, assim como ele aprende muito da performance da folia na qual está se inserindo.

O fato de existirem mestres ou foliões mais experientes, que são responsáveis pela transmissão do conhecimento do ritual da folia para os membros novos do grupo, com o qual o aprendizado se multiplica em uma prática mais abrangente, sinaliza para a complexidade de seus papéis dentro do grupo.

Sobre essa função de ensinar as crianças e os adolescentes nas Folias de Reis, Brandão observou que:

Sem deixar de lado inteiramente os seus compromissos seculares de trabalho e de participação em outros setores da vida social, um camponês, um pedreiro ou a mulher de um lavrador volante absorvem, quase sempre ‗desde menino‘, os conhecimentos para o exercício de um tipo específico de trabalho religioso. Às vezes, durante anos, o noviço popular foi ajudante de dança, de instrumento, de canto ou de reza de algum ‗mestre‘ com quem aprendeu, na ativa, o começo da meada dos gestos e das falas, assim como os fundamentos da crença que pela vida afora ele deverá repetir e sobre o que ele poderá inovar sem quebrar a tradição, até consolidar um estilo, a sua marca pessoal de especialista acreditado (Brandão, 1986: 157).

81 Antônio Maria dos Santos, 67 anos de idade, membro da Folia da Taquara. Entrevista concedida à

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Embora nas folias pesquisadas não exista nos grupos um membro que seja oficialmente responsável pela função de educador especificamente musical, é possível verificar que alguns foliões ocupam lugar relevante nesse processo, como é o caso do papel ocupado pelo capitão da folia e pelos praticantes mais velhos, no processo de transmissão do saber performático. É atribuída a esses detentores do saber popular, a missão de preparar e estimular a sensibilidade dos futuros praticantes do sagrado aos fundamentos significativos do sistema religioso: ―Esses mestres devem estar atentos às transformações operadas na sensibilidade estético-musical dos futuros noviços. Caso contrário, o ciclo de reposições pode se romper, ocasionando o fim da tradição‖ (Kimo, 2005:09).

Figura 10: Igor e o avô Antonio Maria, ao lado o bisavô José Maria.

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Figura 11: João Gabriel membro da Folia João Timóteo e Ruam Folião do Bairro Papagaio.

Fonte: Gonçalves, 2008

A existência de crianças na Folias de Reis de João Pinheiro é um indicativo do aprendizado por meio da observação. Os filhos dos foliões locais, desde pequenininhos, encantam-se e participam das práticas das folias. Na perspectiva de Amorim (2007), esse fazer se confunde com a própria realidade do seu dia a dia, no qual brincam, imitam personagens, dançam, recitam versos, divertem-se ―como se fossem os próprios foliões‖, principalmente o personagem do palhaço. As crianças sempre estabelecem contato, durante a brincadeira, com os signos produzidos pela cultura à qual pertencem.

Dessa forma, acontece a transmissão cultural, pois a atividade de brincar da criança é estruturada conforme os sistemas de significado cultural do grupo a que ela pertence. Porém, ao mesmo tempo,

essa atividade é reorganizada de acordo com o sentido particular por ela atribuído às suas ações em interação com os membros mais próximos do seu convívio. Nesse processo, tanto os significados coletivos quanto os sentidos pessoais convivem continuamente (Amorim, 2007: 54).

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Exemplo disso é o pequeno Tiago, filho do capitão de Folia do Bairro Clube do Cavalo, José Geraldo Couto, que com apenas dois anos de idade brinca de alferes, segurando a bandeira.

Figura 12: Tiago, filho do capitão de Folia do Bairro Clube do Cavalo. Fonte: Gonçalves, 2007