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Mas o que é Memória? As ciências sociais muito têm se esforçado para oferecer uma resposta plausível a essa pergunta. Ecléa Bosi (1998: 39) escreveu: “a memória é um cabedal infinito, do qual só registramos um fragmento‖. De acordo com Le Goff, (1990) ―[...] A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia‖.

A Memória tem mistérios que não se deixam desvendar com facilidade, e sob sua aparente simplicidade oculta uma gama de importantes questões. Viver pressupõe recordar? Como recordar? Quais os mecanismos que nos possibilitam participar, quase que

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por magia, do nosso passado? E, se a recordação é uma coisa tão comum, por que o esquecimento é fenômeno tão frequente? Pensar essas questões nos parece ser tarefa pertinente no fazer do cientista social21.

Seria possível tentar responder a esse questionamento sem o auxílio de uma reflexão filosófica? Acredita-se ser uma tarefa complicada sem se pensar na questão da Metafísica. Afinal qual a base da memória? O corpo? O espírito? Onde guardamos nossas lembranças? Não raras vezes, esse questionamento já provocou embate entre espiritualistas e naturalistas, cientistas e metafísicos:

Os antigos gregos consideravam a memória uma identidade sobrenatural ou divina: era a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem as Artes e a História. A deusa Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembrá-lo para a coletividade. Tinha poder de conferir imortalidade aos mortais, pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia, os gestos, os atos, os feitos e as palavras de um humano, este nunca será esquecido e, por isso, tornando-se memorável, não morrerá jamais. Os historiadores antigos colocavam suas obras sob a proteção das Musas, escreviam para que não fossem perdidos os feitos memoráveis dos humanos e para que servissem de exemplo às gerações futuras. Dizia Cícero: ―A História é mestra da vida‖. A memória é, pois, inseparável do sentimento do tempo ou da percepção/experiência do tempo como algo que escoa ou passa (Chauí, 2001:127).

Deusa? Sim! Sem ela seríamos nós um ―eu‖ pensante, teríamos uma personalidade intelectual e moral? Nossas recordações são inseparáveis de nossa vida pessoal, elas a condicionam e exprimem, tudo a um só tempo. Todo ato de memória é também certa afirmação da pessoa. Não é justo definir a memória como uma função única, nem como uma função simples:

Para o filósofo francês Bergson existem dois tipos de memória: a memória-hábito; e a memória pura ou memória propriamente dita. Segundo ele: A memória-hábito é um automatismo psíquico que adquirimos pela repetição contínua de alguma coisa, como, por exemplo, quando aprendemos alguma coisa de cor. A memória é uma simples fixação mental conseguida à força de repetir a mesma coisa. Aqui, basta iniciar um gesto ou pronunciar uma palavra, para que tudo seja lembrado automaticamente: recito uma lição, repito movimentos de dança, freio o carro ao sinal vermelho, piso na embreagem para mudar a marcha do

21 A distinção entre lembrança e recordação aqui é pensada de acordo com Chauí (2000: 130), que

afirma que quando lembramos espontaneamente isso é lembrança e quando fazemos um esforço para evocar a lembrança isso é recordação.

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carro, risco uma palavra errada que escrevi, giro a chave para a direita ou para a esquerda para abrir uma porta, etc. Todos esses gestos e essas palavras são realizados por nós quase sem pensarmos neles ou até mesmo sem pensarmos neles. O automatismo psíquico se torna um automatismo corporal. A memória pura ou a memória propriamente dita é aquela que não precisa da repetição para conservar uma lembrança. Pelo contrário, é aquela que guarda alguma coisa, fato ou palavra únicos, irrepetíveis e mantidos por nós por seu significado especial afetivo, valorativo ou de conhecimento (Chauí, Op.Cit: 129).

Memória é tudo aquilo do que uma pessoa se lembra como também sua capacidade de lembrar. Como se percebe, anteriormente, na mitologia grega, a memória era uma deusa, Mnemosyne, que, unida a Zeus, gerou as nove musas, divindades responsáveis pela inspiração poética.

Fisicamente, é o processo de aprender, armazenar e recordar uma informação. Memória não é História. A memória trabalha com o vivido, o que está presente no grupo, enquanto a história trabalha e constrói uma representação. Memória não representa um depósito de tudo o que nos aconteceu. A memória é, por excelência, seletiva. A questão da memória e de como essa memória muda a partir das novas experiências de vida dos sujeitos sociais foi intensamente analisada por Ecléa Bosi em Lembranças de Velhos que prevalece em sua análise é que ―lembrar não é reviver, mas refazer, repensar, com imagens e ideias de hoje as experiências do passado‖ (Bosi, 1998:17).

Assim, os cientistas sociais procuram trabalhar cautelosamente quando encontram definições que afirmam ser a memória a persistência do passado. Pois a memória consiste apenas numa maneira muito particular de o passado persistir.

Faz-se necessário perceber, portanto, que a relação entre memória e história e suas diferenças tem se colocado como uma questão central no debate da história oral.

Segundo Chauí (2001), do ponto de vista da teoria do conhecimento, a memória possui as seguintes funções:

● retenção de um dado da percepção, da experiência ou de um conhecimento adquirido;

● reconhecimento e produção do dado percebido, experimentado ou conhecido numa imagem, que, ao ser lembrada, permite estabelecer uma relação ou um nexo entre o já conhecido e novos conhecimentos;

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● recordação ou reminiscência de alguma coisa como pertencente ao tempo passado e, enquanto tal, diferente ou semelhante a alguma coisa presente;

● capacidade para evocar o passado a partir do tempo presente ou de lembrar o que já não é, por meio do que é atualmente.

Por essas funções, a memória é considerada essencial para a elaboração da experiência e do conhecimento científico, filosófico e técnico. Por esse motivo, Aristóteles escreveu, na Metafísica: ―É da memória que os homens derivam a experiência, pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência‖ (Chauí, Op.Cit: 129).

A memória é retenção. É graças à lembrança e à prospecção que o conhecimento filosófico, técnico e científico pode elaborar a experiência e alcançar novos saberes e práticas. Graças à memória, somos capazes de lembrar e recordar. As lembranças podem ser trazidas ao presente tanto espontaneamente, quanto por um trabalho deliberado da consciência pessoal. Lembra-se espontaneamente quando, por exemplo, diante de uma situação presente, vem à lembrança alguma situação passada. Recorda-se quando se faz esforço para lembrar.

Acredita-se aí estar o papel do pesquisador das ciências humanas e sociais. Seria esse o papel de provocador das lembranças dos atores sociais, não raras vezes esquecidos nas produções científicas oficiais, quer seja da História ou da Sociologia, ou até mesmo das ciências da saúde, nas quais a memória tem importância primordial para a realização da anamnese do paciente. A memória é, pois, inseparável do sentimento do tempo ou da percepção/experiência do tempo como algo que escoa ou passa.

A importância da memória não se limitava à poesia e à História, mas também aparecia com muita força e clareza na Medicina dos antigos. Um aforismo, atribuído a Hipócrates, o pai da Medicina, dizia: ―A vida é breve, a arte é longa, a ocasião escapa, o empirismo é perigoso e o raciocínio é difícil. É preciso não só fazer o que convém, mas também ser ajudado pelo paciente‖ (Chauí, Op.Cit: 129).

Qual a ajuda trazida pelo paciente para a arte médica? Sua memória. O médico antigo praticava com o paciente a anamnese, isto é, a reminiscência. Por meio de perguntas, o médico fazia o paciente lembrar-se de todas as circunstâncias que

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antecederam o momento em que ficara doente e as circunstâncias em que adoecera, pois essas lembranças auxiliavam o médico a fazer o diagnóstico e a receitar remédios, cirurgias e dietas que correspondiam à necessidade específica da cura do paciente.

Além de imortalizar os mortais e de auxiliar a arte médica, para os antigos a memória ainda possuía outra função. A memória desses sujeitos apresenta histórias de vida marcadas pela construção social. Diante do quadro de modernização da sociedade, enfrentamos a questão da urbanização que, por sua vez, trouxe consigo elementos transformadores na configuração do processo cultural dos povos de comunidades rurais.

Trata-se de narrativas que remetem à ―dor da perda‖, mas apontam aspectos de uma experiência vivida que a história oficial deixou de contar. São muitas as narrativas que condensam aspectos da memória individual, da memória coletiva e também da memória oficial. A memória popular apresenta a sociedade de uma perspectiva diferenciada. Mas segundo Michel Pollack (1989), ao se privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância das memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à memória oficial, no caso, à memória nacional.

Como bem observou Maria Célia Paoli:

O reconhecimento do direito ao passado está, portanto, ligado intrinsecamente ao significado presente da generalização da cidadania por uma sociedade que evitou até agora fazer emergir o conflito e a criatividade, como critérios para a consciência de um passado comum. Reconhecimento que aceita os riscos da diversidade, da ambiguidade das lembranças e esquecimentos, e mesmo das deformações variadas das demandas unilaterais. Arrisca-se a encontrar as solicitações por uma memória social que venham baseadas em seu valor simbólico, mesmo que sejam locais, pequenas, quase familiares. Não teme restaurar e preservar o patrimônio edificado sem pretender conservar o "antigo" ou fixar o "moderno". Orienta-se pela produção de uma cultura que não repudie sua própria historicidade, mas que possa dar-se conta dela pela participação nos valores simbólicos da cidade, como o sentimento de "fazer parte" de sua feitura múltipla (Paoli, 1992:02).

Em síntese, o estudo dessas memórias dos foliões, devotos e festeiros das Folias de Reis de João Pinheiro torna-se relevante na medida em que se reconhece que as diferentes versões da construção das identidades não se resumem à exclusividade da memória oficial; muito pelo contrário, os habitantes dos bairros das cidades ou da região que foram

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atingidos pelas construções de estradas, usinas, mineradoras, ou até mesmo da invasão da expansão das fronteiras agrícolas no processo de modernização brasileira e, na condição de sujeitos históricos, ao longo desses anos vêm (re)elaborando suas memórias, mostrando-se capazes de reinterpretar, enfrentar e negar a noção de história construída pela perspectiva oficial.

Ao (re)visitar a memória dos foliões, torna-se perceptível o quanto as paisagens, os espaços, os ―causos‖, enfim, as experiências de vida se mantêm presentes entre essa população. A cada fala, a cada gesto dessas pessoas perpetuam-se traços desse passado recente. A explicação oficial não conseguiu calar as vozes desses sujeitos, o que torna a memória resistente e por isso ativa. Desse modo, tais indícios sinalizam que o trabalho com as fontes orais pode possibilitar a retomada de memórias que foram ocultadas, possibilitando ao cientista social uma nova produção voltada para a cultura e a arte popular.

A memória é também fundamental para a (re)construção das identidades e do patrimônio cultural. Para Bosi (2003:15), ―Ela é o intermediário informal da cultura, visto que existem mediadores formalizados constituídos pelas instituições e que existe a transmissão de valores de conteúdos, de atitudes, enfim, os constituintes da cultura‖. Destaca as contribuições da memória na construção/reconstrução da cultura e no repasse das tradições.

Memória, identidade, cultura, bens culturais, patrimônios culturais... Dessa forma, os diversos grupos possuem liberdade para organizar a sua vida segundo a sua cultura e visão de mundo. Por isso, precisam ser respeitadas e valorizadas. A Constituição Brasileira, em seu artigo 215 e 216 reza que:

Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

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Parágrafo 1º - O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Parágrafo 2º - Cabe à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dele necessitem.

Parágrafo 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

Parágrafo 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei.

Parágrafo 5º - Ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

A Carta Magna atualiza o conceito de Patrimônio Cultural ao englobar obras arquitetônicas, urbanísticas e artísticas de grande valor material, e também as manifestações de natureza ―imaterial‖, tais como as festas, tradições, saberes, fazeres, crenças, religiosidade e as diversas formas do fazer humano, sendo essas, importantes na construção/reconstrução das identidades sociais.

Londres (2004: 21) define patrimônio como tudo aquilo que criamos, valorizamos e queremos preservar: constitui-se dos monumentos e obras de arte, mas incluem também festas, músicas, danças, comidas, saberes, fazeres, crenças, folguedos, falares, percebendo as diversas formas de produção humana, seja ela através das mãos, das ações, ideias, crenças, fantasias, sonhos. Nessa perspectiva, tudo aquilo que se produz na cultura, seja de ordem material ou imaterial, constitui o nosso universo patrimonial. A definição do conceito de Patrimônio, tal como o de cultura é polissêmico:

O patrimônio cultural de um povo de um povo compreende as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão sentido a vida. Ou seja, as obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças os lugares e os momentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas (Brasil, IPHAN, 2000: 275).

A valorização do Patrimônio Cultural é um fator de grande relevância na reconstrução das identidades culturais. Ele é composto de bens culturais, sendo esses de

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natureza material, imaterial e natural. Para o IEPHA22, a importância do patrimônio cultural para as pessoas consiste em:

A cultura e a memória de um povo são os principais elementos de sua de identidade, os responsáveis pelos elos que unem as pessoas em torno de uma noção comum, base para o senso de cidadania. O patrimônio cultural materializa e torna visível esse sentimento evocado pela cultura e pela memória e, assim, permite a construção das identidades coletivas, fortalecendo os elementos das origens comuns, passo decisivo para a continuidade e a sobrevivência de uma comunidade. Além desse aspecto de construção de identidade, a noção de patrimônio cultural diz respeito à herança coletiva que deve ser transmitida às futuras gerações, de forma a relacionar o passado e presente, permitindo a visão do futuro, dentro do conceito de desenvolvimento sustentável.

Refletir sobre o patrimônio cultural e os bens culturais é importante para se perceber quais os elementos, lugares, objetos, tradições, festejos, folguedos, saberes e fazeres contribuem para a construção/reconstrução da identidade cultural de um grupo, de uma cidade, um país. Portanto estudar as Folias de Reis em João Pinheiro é colaborar para a construção/reconstrução da identidade local.

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CAPÍTULO2

ETNOGRAFANDOASFOLIASDEREISNOMUNICIPIODEJOÃO

PINHEIRO(MG)