• Nenhum resultado encontrado

AS DENÚNCIAS DE TORTURAS

No documento ramsesalbertonibarbosa (páginas 67-78)

2 OS RASTROS DISCURSIVOS

2.8 AS DENÚNCIAS DE TORTURAS

Como exposto anteriormente, a Penitenciária de Linhares era um local de reclusão e, não, de interrogatório, portanto, não existem registros conhecidos de que ali tenham sido cometidas torturas contra os presos políticos ali detidos.

De acordo com a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes adotada pela Resolução 39/46, da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1984, a tortura

[...] designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. (BRASIL, 1984, p. 1)

No Brasil, o crime de tortura é regulado pela Lei Nº 9.455, de 7 de abril de 1997, que diz:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa. (BRASIL, 1997, p. 1)

É preciso ressaltar que a tortura já era condenada no século XVIII. Segundo o jurista Cesare Beccaria,

Esse meio infame de descobrir a verdade é um monumento da bárbara legislação dos nossos antepassados, que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de fogo, as da água fervendo e a sorte incerta dos combates. [...] A única diferença existente entre a tortura e as provas de fogo é que a tortura só prova o crime quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas queimantes deixavam uma marca exterior, considerada como prova do crime. Todavia, essa diferença é mais aparente do que real. (BECCARIA, 1999, p. 64)

Deve-se ressaltar que desde o início da ditadura civil-militar de 1964 as denúncias de torturas eram propaladas. No dia 21 de agosto de 1964, portanto, poucos meses após o golpe, o jornal Correio da Manhã publicara uma reportagem relatando as torturas sofridas pelo engenheiro Arnaldo de Assis Mourthê, preso no Centro de Informações da Marinha (Cenimar). A reportagem chega, inclusive, a dar os nomes dos criminosos, conforme imagem a seguir:

Imagem 13 - Tortura

Fonte: Correio da Manhã, Edição 21896, 21/08/1964, p. 3

Ao longo de várias semanas, o jornal Correio da Manhã noticiou os casos de tortura ocorridos no Cenimar3. Um mês após a primeira denúncia, em 18 de setembro, o mesmo jornal publicou, em página inteira, os fac-símiles dos manuscritos de nove prisioneiros recolhidos no Cenimar, datados de 3 de setembro de 1964, denunciando as torturas sofridas no mês de julho, conforme imagem a seguir:

3 Correio da Manhã: Edição 21905, 1/09/1964, página 16. Edição 21915, 12/09/1964, página 12. Edição 21917,

Imagem 14 - Denúncia de torturas

Fonte: Correio da Manhã, Edição 21920, 18/09/1964, p. 14

Dentre os presos políticos encontravam-se: Raul Alves do Nascimento Filho (ex- diretor da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil), Severino Vieira de Souza, Antônio Geraldo Costa (marinheiro, cabo, ex-vice-presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil), Avelino Capitani (ex-diretor da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil), Arnaldo de Assis Mourthé (engenheiro), Léo Gomes de Oliveira (cenógrafo), Guido Afonso Duque de Norie (bancário e universitário), Cosme Alves Ferreira Neto (industrial) e José Lima de Azevedo (estudante angolano).

O jornal Correio da Manhã afirma que disponibilizou as cópias desses documentos ao general Ernesto Geisel, na época chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, que estava investigando as denúncias sobre torturas ocorridas em estabelecimentos militares no

país. Os editores do jornal aproveitam para fazer um mea-culpa a respeito do seu apoio ao golpe civil-militar e diz que está travando uma luta pelo restabelecimento dos direitos “ f f f á (não é o caso destas que publicamos) dos prisioneiros a aceitar reiterações vagas de que não x ” f “ chegam do fundo das prisões e que, muitas vezes, são feitos por pessoas das quais o CORREIO DA MANHÃ discorda politicamente – mas que são sêres humanos que merecem, ” forme podemos verificar na imagem a seguir:

Imagem 15 - Editorial

Em 1968, o jornal Correio da Manhã publicou outra denúncia sobre as torturas praticadas nos porões da ditadura, nesse caso, em Minas Gerais. De acordo com o jornal, os irmãos Rogério e Ronaldo Duarte confirmaram as acusações feitas, anteriormente, das torturas que lhes foram infligidas por militares do Exército, com destaque para o coronel José Goulart Câmara. O jornal publicou um rascunho de Rogério Duarte reproduzindo o local onde ele e seu irmão foram espancados, conforme imagem a seguir:

Imagem 16 - Espião do SNI

Contudo, a reportagem não esclareceu o local onde o fato acontecera.

Na mesma reportagem, o jornal Correio da Manhã noticiou que os estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desconfiaram de um homem desconhecido vestido com camisa de lã. Ao ser questionado, por um estudante, o homem respondeu que era aluno da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG), porém, não soube explicar qual era o curso. Por fim, confessou se chamar João Batista de Sousa e ser um agente infiltrado do Serviço Nacional de Informações (SNI) há dois anos, recebendo como funcionário público do estado de Minas Gerais o salário de CNr$ 120,00 (cento e vinte Cruzeiros Novos) e como informante do SNI a quantia de CNr$ 80,00 (oitenta Cruzeiros Novos). Durante o interrogatório que durara 3 horas, o agente chorara, pedira para ser liberado e comera um lanche comprado pelos alunos.

No final da ditadura, sob iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de São Paulo, o Projeto Brasil: Nunca Mais foi a mais ampla pesquisa realizada pela sociedade civil sobre a tortura política no país, cujos pesquisadores trabalharam sigilosamente durante cinco anos sobre 850 mil páginas de processos do STM. Em 1985, o projeto publicou um relatório e um livro que revelaram a gravidade das violações aos direitos humanos perpetrados pela repressão política durante a ditadura civil-militar (ARNS, 2003).

De acordo com o gráfico a seguir é possível verificar os tipos de tortura em sua distribuição geográfica e cronológica:

Imagem 17 - Tipos de tortura

Percebe-se assim que o auge dos crimes cometidos se deu após o AI-5, se estendendo de 1969 até 1973.

A imagem a seguir, relativa aos números de denúncias, corrobora a imagem anterior, cujo auge de denúncias se refere aos anos 1969 e 1970:

Imagem 18 - Número de denúncias por ano

O último quadro se refere à distribuição geográfica das denúncias e pode-se verificar que elas se concentram em 3 estados da região Sudeste: Rio de Janeiro (28,15%), São Paulo (22,77%) e Minas Gerais (7,74%):

Imagem 19 - Número de denúncias por estado

No entanto, de acordo com Fernandes (2004), apesar do pensamento jurídico-penal ter assumido um caráter sofisticado e velado durante a ditadura, permaneceu no Estado de Direito o viés dogmático, normativo e tecnicista. Por conseguinte,

O dogmatismo, aqui, se apresenta como uma grande missão da luta permanente do tribunal que, através do argumento legal, optou por não tomar conhecimento das denúncias de tortura, apesar do voto de um ministro, general do exército, dar conhecimento de provas, ou ao menos graves á “ ”: questões técnicas, é possível desconhecer pedidos da defesa e até mesmo ignorar torturas. (FERNANDES, 2010, p. 196)

Fernandes (2010) relata a Revisão Criminal 1.125 de Mário Miranda de Albuquerque, condenado por desclassificação a quatro anos de reclusão, incurso no Artigo 43 do DL 898/69 por acórdão do STM de 2 de outubro de 1972, através do advogado Álvaro Augusto Ribeiro da Costa. A revisão foi julgada na 31ª sessão do dia 16 de maio de 1977, relatado pelo Ministro Lima Torres e tendo como revisor o Ministro Rodrigo Octávio que deu conta de registro de tortura nos autos:

[...] fato mais grave, talvez, suscite o exame da Apelação 39.155, oriunda das acusações feitas aos policiais Domingos de Brito Lima, Fausto Venâncio da Silva e outros [...] na Auditoria da VII TJE [...] por sevícias e de torturas feitos a ele e a Odija Carvalho de Souza, podendo ter causado sua morte. [...] Tal crime, se houve, deverá ser devidamente apurado; tanto mais que nem sequer houve autópsia, e o corpo foi enterrado com o completo desconhecimento da família. [...] É preciso que se diga de maneira clara e insofismável que o governo ou as forças armadas não podem responder pelo abuso e ignorância de meia dúzia de fanáticos e irresponsáveis, que usam de torturas e sevícias para obter provas comprometedoras no apoio de servir à estrutura político-jurídica existente. Essa petição não teve a consideração devida pela procuradoria militar, foi motivo até de deboche na procuradoria militar. [...] É lamentável também que o conselho de justiça, por maioria, contra os votos dos capitães Celso Soares e Iná Francisco Ferreira, podendo verificar com mais profundidade as acusações relativas ao espancamento de Odijas pelos policiais Domingos de Brito Lima, Fausto Venâncio da Silva e outros, tenha deixado de fazê-lo. [...] As circunstâncias de não haver sido feita autópsia e do sepultamento ter sido feito de forma clandestina, sem aviso a pai, mãe, esposa e etc., gera graves suspeitas. (FERNANDES, 2010, p. 189-191)

O ministro do STM, Valdemar Torres da Costa, ao receber as denúncias de torturas cometidas com os presos políticos centra seu argumento em bases técnicas, pouco se importando com as revelações, pois

Não seria através de um pedido de revisão que, como bem disse o eminente ministro relator, tem os seus requisitos impostos em lei, para que não sirva a revisão de eterno remédio aos inconformados contra as decisões da justiça. [...] A revisão não pode ser requerida e muito menos concedida a pretexto de piedade ou de humanidade para com os culpados. Aqui se deferem as revisões, não por piedade aqueles que pedem. Mas aos que trazem ao tribunal elementos indiscutíveis que representam os requisitos com os quais a lei faculta exame da revisão e até o seu deferimento. Eu entendo, data venia, desse brilhante trabalho, que também é sem duvida o excelente resultado de um esforço extraordinário do nosso ilustre colega, Ministro Rodrigo Octávio que, como relator e como voto ministro relator, nas circunstâncias em que é pedida essa revisão, com a inexistência de elementos que a justifiquem, realmente não há outra solução de natureza jurídica, data venia, do que não se tomar conhecimento... porque só se deve tomar conhecimento daquilo que tem amparo na Lei e não aquilo que possa servir de pretexto de recurso de qualquer um inconformado com a decisão da justiça. (FERNANDES, 2010, p. 195-196)

Desse modo, as denúncias relatadas nas Cartas de Linhares e no jornal manuscrito Até Sempre 3, por nós analisado no Capítulo III, legitimam os diversos relatos e denúncias de vários prisioneiros que vinham sofrendo os horrores do sistema ditatorial, mas que eram negadas, inclusive, nos próprios tribunais da justiça.

No documento ramsesalbertonibarbosa (páginas 67-78)

Documentos relacionados