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OS INQUÉRITOS POLICIAIS MILITARES

No documento ramsesalbertonibarbosa (páginas 47-54)

2 OS RASTROS DISCURSIVOS

2.6 OS INQUÉRITOS POLICIAIS MILITARES

Apesar de estarmos analisando as formas comunicacionais de sujeitos específicos, não podemos nos esquecer que estamos enredados em narrativas processuais que se espelham constantemente, pois os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) se constroem como narrativas intertextuais, pois o que constitui a intertextualidade é a relação de co-presença entre dois ou mais textos, são gramas escriturais, segundo Kristeva (2005), que dialogam no interior do próprio texto que se constrói como uma escritura-réplica, de função ou negação, de outro texto, enquanto leituras de outras escrituras, assim sua comunicação é a comunicação com outra escritura.

Ao analisarmos a arqueologia e a genealogia dos processos jurídico-militares da ditadura civil-militar de 1964, não apenas em seus traços patentes e ostensivos, mas também nas múltiplas leituras autorizadas pela condição de posterioridade do intérprete, podemos sopesar que eles configuram uma prática penal que constrói uma forma da verdade em nossas sociedades, cuja origem pode ser encontrada em uma prática política e administrativa, inclusive, na prática judiciária. Segundo Foucault, o inquérito surge na Idade Média

[...] como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica. Foi para saber exatamente quem fez o quê, em que condições e em que momento, que o Ocidente elaborou as complexas técnicas do inquérito que puderam, em seguida, ser utilizadas na ordem cientifica e na ordem da reflexão filosófica. Da mesma forma, no séc. XIX também se inventaram, a partir de problemas jurídicos, judiciários, penais, formas de análise bem curiosas que chamaria de exame (examen) e não mais de inquérito. Tais

formas de análise deram origem à sociologia, à psicologia, à psicopatologia, à criminologia, à psicanálise. (FOUCAULT, 2003, p. 12)

A origem destas formas jurídicas, no final do século XIX, ocorreu concomitantemente com a formação de certo número de controles políticos e sociais.

No Brasil, o procedimento dos IPMs fora instituído, de maneira separada da legislação processual, pelo Decreto nº 14.450, de 30 de outubro de 1920, durante o governo do presidente Epitácio Pessoa, estando previsto no Código de Processo Penal Militar (CPPM):

Art. 74. O inquerito policial militar consiste em um processo summario, em que se ouvirão o indiciado e o offendido, e duas ou tres testemunhas, e se fará o corpo de delicto ou qualquer exame e diligencia necessaria ao esclarecimento do facto o suas circumstancias. (BRASIL, 1920, p. 8)

Por conseguinte, o IPM, de acordo com Fronza (2017), possibilita ao Ministério Público Militar (MPM) apreciar a prática do fato delituoso com todas as suas circunstâncias, e refere-se à apuração sumária do fato e de sua autoria que, nos termos legais, configure crime militar, possuindo caráter de instrução provisória, cuja finalidade é a de fornecer elementos para a propositura da ação penal; todavia, as perícias, os exames e as avaliações são instrutórias dessa ação e devem observar as formalidades legais quanto à sua realização, cujo encarregado do inquérito deve se restringir à apuração completa do fato ou dos fatos definidos na portaria de sua designação.

Ressalte-se que o encarregado do IPM deve manter contato com a procuradoria da Justiça Militar1 enquadrante da Organização Militar onde se realiza o inquérito. O encarregado do IPM deverá executar as seguintes providências para a formação do inquérito:

a) Oitiva: do ofendido (art. 311 a 313 do CPPM), do indiciado (art. 302 a 306 do CPPM) e das testemunhas (art. 347 a 367 do CPPM);

b) Reconhecimento de pessoas e coisas (art. 368 a 390 do CPPM); c) Acareações;

d) Determinar a elaboração de exame de corpo de delito e outras perícias e exames (art. 314 a 346), elaborando os quesitos julgados necessários, podendo também fazê-lo o indiciado;

e) Avaliação das coisas subtraídas, destruídas ou desviadas; f) Proceder buscas a apreensões (art. 170 a 189);

g) Proceder à reprodução simulada dos fatos, sempre que possível. (FRONZA, 2017, p. 3-7).

1 A Justiça Militar brasileira foi criada em 1808, com a vinda da família real para o Brasil, através do Alvará nº

Por fim, o Inquérito é encerrado com um minucioso Relatório, seguido de uma Conclusão, onde se pronunciará sobre o cometimento ou não de infração penal, devendo-se f x “I C ” “C ”

No dia 9 de abril de 1964, uma junta militar composta pelo general Artur da Costa e Silva, o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e o almirante Augusto Rademaker, decretou o primeiro Ato Institucional (AI-1) da ditadura civil-militar, num total de 17, que, regulamentados por 104 atos complementares, conferiram um alto grau de centralização à administração e à política do país. O AI-1 impunha modificações à Constituição Federal de 1946, suspendendo a imunidade parlamentar, autorizando a cassação dos mandatos e a suspenção dos direitos políticos, pelo prazo de dez anos, dos que, porventura, fossem destituídos de seus cargos. O AI-1 criara as bases para a instalação dos IPMs que passaram a ser regulados pelo Artigo 8º do Ato:

Art. 8º - Os inquéritos e processos visando à apuração da responsabilidade pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos de guerra revolucionária poderão ser instaurados individual ou coletivamente. (BRASIL, 1964, p. 2)

De acordo com Fico (2004) a criação dos IPMs foi uma das primeiras providências de repressão do sistema ditatorial, revelando- “ ”

Após a leitura dos autos de alguns IPMs é preciso deixar claro, entretanto, que apesar das ilegalidades jurídicas cometidas pelas autoridades envolvidas na investigação e no julgamento dos jovens estudantes, alguns componentes da justiça militar brasileira não foram coniventes com os crimes cometidos por essa justiça e enfrentaram os desmandos da ditadura, conforme imagem a seguir relativa ao julgamento do habeas corpus do líder estudantil Vladimir Palmeira e de Antônio Resende Guedes, pelo Supremo Tribunal Federal (STF):

Imagem 8 - Habeas Corpus

Fonte: Correio da Manhã, Edição 23143, 19/09/1968, p. 3

O Ministro Pery Constant Bevilacqua que votou pelo trancamento do Processo 5/69, “ ê I M ” f posteriormente aposentado com base no Ato Institucional Nº 5 (AI-5).

O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV) publicou em seu portal o Dossiê Justiça Militar, um conjunto de 12 entrevistas realizadas entre 2005 e 2006, durante a realização de uma pesquisa sobre os 200 anos M B M C ’ Celso Castro, cujos depoentes são 10 ministros do Supremo Tribunal Militar (STM) e 2 advogados que se relacionaram, de modos distintos, com a Justiça Militar brasileira. Segundo um dos depoentes, o almirante-de-esquadra Júlio de Sá Bierrenbach, nomeado para o cargo de ministro do STM em 3 de junho de 1977, o caso mais complicado que enfrentou foi o do

preso político Paulo José de Oliveira Moraes, membro de uma quadrilha de assaltantes de bancos e réu em vários processos.

De um modo geral, acredito que esse foi o melhor serviço que prestei à Justiça Militar. [...] Teve ampla repercussão, e, não tenho dúvida, reduziu muito a prática de torturas e sevícias nas delegacias policiais de vários estados do país. [...] Ouvi de vários advogados que nos julgamentos em segunda instância, isto é, no Tribunal, os juízes devem se restringir ao que M á z : “O que não está nos autos não está ” E f bom serviço porque as polícias aí ficaram... vendo que a gente checava tudo. (CPDOC-FGV, 2018, Bierrenbach, 2010, p. 4-6)

O ministro Bierrenbach ficara famoso por respeitar os presos políticos e por agir de forma ética.

As sessões do STM começaram a ser gravadas em 1975. Em 1997, Fernandes (2004) se deparou, nos arquivos do STM, com um material composto de 940 fitas de rolo com os registros dos julgamentos. Contudo, após três dias pesquisando, o acesso foi-lhe barrado pelo tribunal, sob a alegação de que o material era secreto e seria destruído. Porém, Fernandes conseguiu impedir a iniciativa após mobilizar várias pessoas importantes em Brasília, pois nesses arquivos encontram-se todos os processos que tramitaram no Tribunal de Segurança Nacional, durante o Estado Novo, e perante a Justiça Militar na ditadura civil-militar de 1964. Na defesa dos réus Alex Polari de Alverga e José Roberto Gonçalves Rezende, acusados de sequestrarem o embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, em 11 de junho de 1970, que fora trocado por 40 presos políticos, alguns deles detidos na Penitenciária de Linhares, o advogado Lino Machado sustentou, perante julgamento no STM, que o

[...] criminoso político não é um criminoso comum, que mente desabusadamente, que mente sempre, que nega sempre, este não, senhores juízes, porque negar-se-ia a si próprio se não confessasse aquilo que realmente fizera. [...] E o resultado que se queria não era a morte, o resultado que se queria era o sequestro, e era sequestro para servir o refém de elemento de troca por prisioneiro da sua posição política. (FERNANDES, 2004, p. 250-251)

Já o advogado Nélio Machado questionou o próprio inquérito militar, pois, segundo ele,

[...] dentro daquela finalidade precípua do inquérito policial militar, qual seja a de oferecer os elementos necessários à propositura da ação penal, o MP trabalhou com bases movediças, teve elementos contraditórios, teve informações que não se coadunavam, houve indiciados que não foram denunciados e, por fim, indiciados da segunda leva, do segundo inquérito, que por fim acabaram por ingressar na esfera judicial. (FERNANDES, 2004, p. 254)

Dessa forma, evidencia-se a história de resistência dos advogados perante os tribunais da República por meio do acervo de áudio das sustentações orais de advogados de defesa de vários presos políticos. Fernandes (2004) analisou a atuação dos advogados de defesa contra o “ ” as leis de segurança.

Conquanto decisão do STF garantisse o acesso aos arquivos do STM desde 2006, Fernandes fora impedido de acessá-los na íntegra, pois o tribunal alegou proteção à “f ” e prosseguir com sua pesquisa. Em março de 2006, o ministro do STF Nelson Jobim ordenou que o STM liberasse o acesso aos arquivos. Assim, em três meses, Fernandes conseguiu copiar as fitas de 85 sessões de 1976 e 1977, material que seria utilizado em sua tese de doutorado defendida em 2010. De acordo com Fernandes, sua pesquisa procurou

[...] identificar as ideologias jurídico-políticas formadoras da cultura jurídica que foi um dos sustentáculos do poder no regime militar de 1964. Uma abordagem destas ideias que, muitas vezes, passaram sob disfarces nos fundamentos escritos do campo jurídico, é possível diante da abertura de um material nunca antes consultado. [...] Os julgamentos da década de 70 devem ser analisados por vários olhares, e o olhar centrado nos efeitos políticos da construção do indivíduo que exercerá o poder, de sua formação, de seus sentimentos, é fundamental para a completa compreensão dos efeitos dos projetos ideológicos, suas permanências históricas à época e hoje. (FERNANDES, 2010, p. 11)

Em 2013 as sessões públicas foram digitalizadas e em 2014 o STM deu continuidade ao projeto determinando a digitalização de todo o conteúdo disponível. Em janeiro de 2015, esse conteúdo passou a ser público e foi disponibilizado a pesquisadores e jornalistas interessados. Deste volume, 1.049 horas de áudio são referentes a sessões antes consideradas “ ”

Cumprindo decisão do STF, de 16 de março 2017, o STM liberou o acesso aos arquivos do regime militar. Dessa forma, em 19 de abril de 2017, o STM entregou, a

F á “ ” ocorridas no período de 1975 a 2004 (STM, 2017).

De acordo com o depoimento de Antônio Modesto Silveira, advogado de vários presos políticos que foram julgados na Auditoria da IV Circunscrição Judiciária Militar (CJM) em Juiz de Fora, à Comissão Municipal da Verdade (CMV-JF), existiam dois tipos de juízes:

Houve aqui um juiz, não me lembro exatamente o nome dele, mas lembro do apelido que ele tinha, acho que era João Carangolano, porque ele era, era compridão, magro, cumprido e que era um juiz ruim, condenador porque recebia ordens e cumpria, não era um juiz independente, recebia ordens e cumpria como mandavam. E esse juiz era visto com muita frequência bêbado, no que a gente chama de zona, isto é, uma área da prostituição daqui de Juiz de Fora na época. Se perguntarem o pessoal daqui saberão quem é ele e até onde é essa tal de zona que eu não sei onde é. Bom, então, tem coisas. Quer ver outra coisa que honra Juiz de Fora e honra até a própria justiça militar, embora como não haja tantos como ele. Houve um juiz aqui chamado Antônio Arruda, Antônio Arruda Marques, era um juiz auditor, muito correto e digno. E a lei dizia o seguinte, dizia e diz, tá lá na lei, no Código Penal, no Código de Processo Penal Militar, em que os juízes são sorteados dentre todos os que servem na região, naquela unidade militar. Pra tirar um corpo de juiz você tem que pegar todos os nomes e fazer um sorteio pra tirar os quatro. Pois bem, eu contei essa história, depois eu vou detalhar uma coisa importante! Como eles aí não fizeram a listagem, escolheram um grupo pequenininho e o juiz tinha listagem dos oficiais todos. Quando o juiz viu que aquela listinha não correspondia à lista legal que a lei determina que seja, todos os oficiais, não exclui A, B ou C, excluiu tudo legalmente. Ele então mandou de volta a lista, pedindo ao comando daqui que fizesse a lista completa de acordo com a lei, artigos tais e tais. O comandante sabe o que fez? Em vez de obedecer à lei como ele pedia, devolveu o pedido que fizesse direito, toda a listagem de acordo com a lei. O comando daqui fez o contrário, pegou a lista riscou a maior parte e deixou só aqueles da estrita confiança dele, isto é, só aquele que determinasse absolver, matar. Pois bem, quando o comando daqui fez isso, esse juiz digno de direito, Antônio Marques Arruda, ele simplesmente mandou ofício pro STM, o Superior Tribunal Militar, informando o que tinha acontecido e mais, enquanto eles não mandarem a lista legal ele não tem condição ética e nem legal de fazer ê “E f ” C extravasou, nós tomamos conhecimento lá no Rio, e aí, enquanto houve essa movimentação toda meio secreta, meio sigilosa. O que que acontece, a ditadura se encarrega de cassar os direitos e até a função do juiz. [...] O Simeão de Farias era um promotor muito duro, rígido, e a impressão que ele me dava, era de que ele cumpria as ordens da área militar de querer, em vez de cumprir a ordem legal, em vez de cumprir a lei, cumpria as ordens dos militares. [...] Porque nos processos a gente lembra muito bem de que a conduta dele não era uma conduta de um advogado nem de um promotor nem sequer uma autoridade ética. Ele queria era obedecer às ordens de onde vinham causando um derradeiro à ética e à moral das pessoas. (DEPOIMENTOS, 2017, Silveira, 2014, p. 7-9)

Dessa forma, procurou-se resgatar parte da história de resistência à ditadura civil- militar de 1964 no Brasil, por parte de militantes políticos na cidade de Juiz de Fora, durante as décadas de 1960 e 1970, possibilitando a reconstrução de algumas narrativas preteridas, identificando histórias de luta, suas personagens, os espaços urbanos em que se articulou a resistência à ditadura civil-militar e, inclusive, as instituições que, de alguma forma, possibilitaram acolhimento e refúgio aos indivíduos perseguidos e até condenados.

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