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O ARQUIVO, ESSE MONSTRO TEMÍVEL E SEDUTOR

No documento ramsesalbertonibarbosa (páginas 43-47)

2 OS RASTROS DISCURSIVOS

2.5 O ARQUIVO, ESSE MONSTRO TEMÍVEL E SEDUTOR

Ao cometer a leitura crítica desses arquivos, descobrindo suas lacunas, rasuras e esquecimentos, propondo, inclusive, a desconstrução desse conceito que se arvora como algo estático e fixo em sua ontologia, de tal modo que se transforma, em sua materialidade, num conjunto de documentos estabelecidos como a positividade da verdade da experiência histórica, segundo pontua Derrida (2001). O autor interpreta a pulsão de morte freudiana “ ” ga os arquivos escritos para que o processo de arquivamento possa ter continuidade, caso contrário, o arquivo implodiria pela impossibilidade da inscrição de outras escrituras.

Primeiramente, é preciso ressaltar que o arquivo é criado e mantido, maiormente, por organizações e instituições, sejam elas privadas ou públicas. A partir de uma visão tradicional, o arquivo constitui um sistema ordenado de documentos e registros com uma finalidade f “ ” ntos, sendo uma fonte histórica factual, neutra e imutável, haja vista que o passado é algo que já aconteceu. Contudo, essa visão vem se alterando desde o início do século XX. Dessa forma, os conceitos de passado e de arquivo precisam ser alargados. Ao resgatar alguns conceitos de Foucault e de Freud, Derrida (2001) perfaz uma reinterpretação da versão clássica do arquivo presente no discurso da História, enunciando uma concepção original, considerando o arquivo como algo lacunar, sintomático e descontínuo, perpassado pelo esquecimento.

A palavra arquivo deriva do grego ta arkheia (registros públicos), arkheion (prefeitura, governo municipal) e arkhé (governo). Por isso, arquivo pode ser tanto o documento quanto o local em que esse documento é arquivado. A palavra arkheion é composta de dois elementos: arkhaios (antigo) e epo (dispor, ter cuidado), dando origem à palavra latina archivum, cujo significado é, por conseguinte, a arrumação das coisas antigas. Como instituição, os arquivos se originam da antiga civilização grega, pois nos séculos V e IV a.C. os atenienses guardavam os documentos do Estado no Metroon, a câmara de reunião para o Senado e templo dedicado à mãe dos deuses, Rhea.

Dessa forma, o arquivo, por meio do exergo, o espaço, em moedas ou medalhas, à “ ê ” ê poder que coloca e conserva o direito,

[...] pois todo arquivo [...] é ao mesmo tempo instituidor e conservador. Revolucionário e tradicional. Arquivo eco-nômico neste duplo sentido:

guarda, põe em reserva, economiza, mas de modo não natural, isto é, fazendo a lei (nomos) ou fazendo respeitar a lei. Há pouco, como dizíamos, nomológico. Ele tem força de lei, de uma lei que é a da casa (oîkos), da casa como lugar, domicílio, família ou instituição. (DERRIDA, 2001, p. 17-18)

Empreender a leitura crítica do arquivo e propor sua desconstrução implica, portanto, não somente articular uma nova interpretação do passado e da tradição, mas, sobretudo, uma leitura diversa da concepção da história. O arquivo será interpretado como algo lacunar e sintomático, uma descontinuidade perpassada pelo esquecimento e pelo apagamento. O que está em jogo é o próprio conceito de verdade histórica, uma imposição, pois a vontade de verdade (FOUCAULT, 2007) é conduzida pela forma como o saber é aplicado em nossa sociedade, já que discurso e poder se imbricam no conceito de arquivo, haja vista que a verdade não se dissocia da singularidade do acontecimento, pois ele é produzido num espaço e num tempo específicos.

Nesse embate, razão e desrazão se digladiam, porquanto a razão se encontra no campo da quimera, da astúcia e da maldade, enquanto a brutalidade da desrazão se encontra no campo dos gestos, dos atos, das paixões, das raivas e, por isso, da verdade. C f “f ”

[...] o passado esquecido das lutas reais, das vitórias efetivas, das derrotas que talvez tenham sido disfarçadas, mas que continuam profundamente inseridas. Trata-se de redescobrir o sangue que secou nos códigos, e, por conseguinte, não, sob a fugacidade da história, o absoluto do direito: não reportar a relatividade da história ao absoluto da lei ou da verdade, mas, sob a fórmula da lei, os gritos de guerra, sob o equilíbrio da justiça, a dissimetria das forças. Num campo histórico, que nem sequer se pode dizer um campo relativo, pois ele não se relaciona com nenhum absoluto, é um infinito da “ z ” mecanismos e acontecimentos que são os da força, do poder e da guerra. (FOUCAULT, 1999, p. 65-66)

Sendo assim, cabe ao pesquisador reconstruir as partes dispersas, historiando sua Herkunft (proveniência) e sua Entstehung (emergência), pois nada existe além da disseminação histórica do acontecimento que se desvia constantemente, pois as forças históricas conflitantes se digladiam no acaso da luta, sendo necessário interpretar as sedimentações escondidas sob o véu do visível. O pesquisador submete, assim, as verdades x “ ” verdade, já que a própria verdade é um acontecimento. Dessa forma,

O que se busca então não é saber o que é verdadeiro ou falso, fundamentado ou não fundamentado, real ou ilusório, científico ou ideológico, legítimo ou abusivo. Procura-se saber quais são os elos, quais são as conexões que podem ser observadas entre mecanismos de coerção e elementos de conhecimento, quais jogos de emissão e de suporte se desenvolvem uns nos outros, o que faz com que tal elemento de conhecimento possa tomar efeitos de poder afetados num tal sistema a um elemento verdadeiro ou provável ou incerto ou falso, e o que faz com que tal procedimento de coerção adquira a forma e as justificações próprias a um elemento racional, calculado, f z […] f se, de um lado, não está conforme a um conjunto de regras e de coações características, por exemplo, de tal tipo de discurso científico numa época dada, e se, de outro lado, não dotasse efeitos de coerção ou simplesmente de incitação próprios ao que é validado como científico ou simplesmente racional ou comumente admitido, etc. Inversamente nada pode funcionar como mecanismo de poder se não se manifesta segundo procedimentos, instrumentos, meios, objetivos que possam ser validados em sistemas mais ou menos coerentes de saber. (FOUCAULT, 2018, p. 13-15)

A questão, portanto, não é descrever o que é saber e o que é poder, mas, sim, descrever uma integração de saber-poder que nos permita compreender o que institui a aceitabilidade de um sistema. Por conseguinte, considera-se que toda forma de saber possui uma positividade que não se condiciona à cientificidade e que não pode ser julgada por uma referência que não seja o próprio saber. É necessário especificar, dessa forma, um método de investigação que visa entender a ordem interna que constitui um determinado saber, por isso, a análise arqueológica precisa transitar por diferentes formulações conceituais, pertencentes a f H “ z ” f -o em documentos

[...] e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico; que poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento. (FOUCAULT, 2008, p. 8)

A arqueologia foucaultiana é uma maneira de fazer história que considera todas as práticas discursivas a partir do estatuto do acontecimento, pois o que foi dito instaura uma realidade discursiva que permite deslindar como o homem constrói sua própria existência, já

que os sujeitos e os objetos não existem a priori, mas são construídos discursivamente sobre o que se fala sobre eles. A partir da análise de um conjunto de documentos, o historiador estabelece certo número de relações.

[...] interpreta mais o documento para apreender por trás dele uma espécie de realidade social ou espiritual que nele se esconderia; seu trabalho consiste em manipular e tratar uma série de documentos homogêneos concernido a um objeto particular e a uma época determinada, e são as relações internas ou externas desse corpus de documentos que constituem o resultado do trabalho do historiador. (FOUCAULT, 2008, p. 291)

Enquanto a arqueologia é o á “ ” á f z “ ” á porquanto foram qualificados como saberes não conceituais e insuficientemente elaborados por uma hierarquia dos saberes (FOUCAULT, 1999). Assim, no momento em que se resgata esses fragmentos de genealogia, eles correm o risco de serem recodificados e recolonizados à “ ” versus as implicações de poder do discurso científico. Por meio da análise de um conjunto de documentos, é consentido ao pesquisador estabelecer certo número de relações e interpretar todo o material disponível

[...] para apreender por trás dele uma espécie de realidade social ou espiritual que nele se esconderia; seu trabalho consiste em manipular e tratar uma série de documentos homogêneos concernido a um objeto particular e a uma época determinada, e são as relações internas ou externas desse corpus de documentos que constituem o resultado do trabalho do historiador. (FOUCAULT, 2008, p. 291)

A arqueologia documental estaria voltada, então, para o estudo das interpretações, apropriações, criações e regulações do conhecimento por parte das sociedades em determinados momentos históricos, possibilitando a formação de atos de fala enunciativos ou elocutórios que estariam contidos no interior das formações discursivas orientadas por um regime de verdade.

No entanto, a partir do momento em que o pesquisador não se resigna a simplesmente registrar o dito, mas provoca o dizer, a pesquisa está sendo bem conduzida,

Pois os textos ou os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-los. Naturalmente, é necessário que essa escolha ponderada de perguntas seja extremamente flexível, suscetível de agregar, no caminho,

uma multiplicidade de novos tópicos, e aberta a todas as surpresas. De tal modo, no entanto, que possa desde o início servir de ímã às limalhas do documento. O explorador sabe muito bem, previamente, que o itinerário que ele estabelece, no começo, não será seguido ponto a ponto. Não ter um, no entanto, implicaria o risco de errar eternamente ao acaso. A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele. (BLOCH, 2002, p. 79)

A entrada no labirinto dos arquivos é um caminho sem volta, cujo centro é inexistente, pois existe apenas o peregrinar pelas entranhas transparentes e opacas desse monstro temível e sedutor, por isso, foi imprescindível construir um percurso de leitura em diagonal que “ ” (FOUC ULT ) instrumentário analítico do poder, decompondo-o e recompondo-o em suas múltiplas facetas.

No documento ramsesalbertonibarbosa (páginas 43-47)

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