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AS DIMENSÕES DA APRENDIZAGEM

II. INTERAÇÃO E APRENDIZAGEM

2.6. AS DIMENSÕES DA APRENDIZAGEM

OBJETIVIDADE, SUBJETIVIDADE E INTERSUBJETIVIDADE

“Aprender é mudar e mudar não é um processo fácil, sem conseqüências, pois inclui o humano e com ele todas as suas emoções” (DAVINI, 1998:47)

Diante das perspectivas teóricas consideradas pelos corpora que constituem o presente estudo, é oportuno retomar a discussão sobre as dimensões implicadas na constituição do discurso narrativo oral de crianças entre os dois e os seis anos. Para tanto, é importante reiterar que o discurso narrativo é, ao mesmo tempo, processo e resultado, construído ao longo do período de aquisição e desenvolvimento da linguagem.

A dimensão objetiva desse processo se refere ao posicionamento do sujeito frente à estrutura complexa da língua e tem como eixo central os fatores lingüísticos envolvidos, ou seja, aspectos fonéticos, fonológicos, léxicos, sintáticos, de acordo com as regras da língua e aspectos semânticos e pragmáticos, norteados pelos sentidos possíveis e pelo uso que o grupo ao qual pertence a criança faz. Em seus momentos de interação com seu entorno social, o sujeito percebe a macroestrutura da língua, absorve seu funcionamento e vai, gradativamente constituindo-se discursivo ao narrar seus recontos.

Entre os fatores que envolvem a subjetividade presente durante todo o processo de elaboração interativa do discurso infantil, encontram-se os aspectos pragmático e semântico relacionados aos usos que o grupo social faz da língua e os muitos sentidos que podem ser atribuídos ao que é dito. Deve-se também considerar o fato de ser a criança, aprendiz da língua, um sujeito clivado cujo psiquismo funciona tanto no nível consciente das operações mentais quanto no

nível inconsciente e subjetivo, de acordo com Davini (1998), Freire (1997), Lane (1997), Parlato (1997), Perroni (1992), entre outros.

A dimensão intersubjetiva envolvida neste processo se refere às relações entre os atores do cenário discursivo. Ao se estabelecer como objeto de estudo uma criança em fase pré-escolar, devem ser considerados seus limitados conhecimentos da língua e do mundo de forma geral, resguardando-se a intersubjetividade valor relevante na construção do discurso narrativo. Tal fator aparece relacionando estruturas cognitivas, sócio-afetivas e a historicidade composta pelas experiências prévias que circunscrevem o sujeito em foco, ao mesmo tempo se refletindo e se refratando em seus recontos, numa dinâmica que nem sempre é constante mas é certamente contínua.

Além dos dois universos acima citados, segundo Bakhtin (1979, p.125), “os discursos são modelados pela fricção da palavra contra o meio extra-verbal e contra a palavra do outro”. Embora sem abordar especificamente crianças em seus livros, como se vê, Bakhtin mostra como a criança vai sendo envolvida pelo “fluxo ininterrupto da linguagem para transformar cada enunciação em um ato de criação individual, único e não reiterável” (BAKHTIN, 1979, p.77), mas contando sempre com elementos idênticos aos de outros enunciados. A intersubjetividade fica então assim definida: é a troca constante entre o Eu e o Outro, é toda influência trazida pelas vozes de outros discursos para o meu e a ondulação provocada pelo que digo no discurso de quem me escuta.

Neste quadro, torna-se possível perceber que o discurso, assim como a ponta do iceberg de David Bohm (1992), ou como cada uma das partes que formam a imagem tridimensional descoberta por Dennis Gabor (1947), é apenas parte de um todo bem mais amplo e complexo. A partir daí, pode-se entender a linguagem como um universo caótico semelhante ao de Lorenz (in SOUZA, 1998, p.43), que mobiliza linhas aparentemente incongruentes, arrumando-as numa ordem mais complexa, que exige dos interessados um olhar mais criterioso. Assim como na teoria do caos, Lorenz acredita que um pequeno movimento em um determinado ponto pode provocar grandes repercussões em outros lugares distantes do mundo, durante o processo de desenvolvimento da linguagem eventos

aparentemente simples podem alterar todo o seu funcionamento e o resultado do processo.

É assim que simultaneamente o sujeito vai se constituindo discursivo e desenvolvendo suas habilidades e sua competência lingüística, ou seja, vai aprendendo como, quando e para que usar a língua, na medida em que convive com ela. O conceito de competência foi elaborado por Perrenoud (1999, p.07) e diz respeito à “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiado em conhecimentos, mas sem se limitar a eles”. É, portanto, a habilidade ou aptidão para usar determinado objeto do conhecimento em diferentes contextos e com criatividade. O início da construção da competência lingüística é, conforme pesquisas já comentadas, anterior à escolarização e quem sabe anterior mesmo ao nascimento, devendo ser promovida durante o convívio familiar e no período de educação pré-escolar.

Referindo-se a esta fase em que a ludicidade preenche grande parte dos momentos de interação, Amarilha (1997) declara que “toda atividade lúdica implica em distanciamento do real (...) e que esta abstração é necessária ao planejamento e à elaboração de projetos”. A partir dessa colocação, a autora é ainda mais firme, assegurando que “só consegue planejar quem consegue abstrair o mundo imediato e viver temporariamente no imaginário posto que, é a partir da abstração que se treina a concentração” (AMARILHA, 1997, p.51). Nesta abordagem, a autora indica, portanto, uma das contribuições das atividades originadas a partir das narrativas de Contos de Fadas.

Ao ouvir Contos de Fadas, as crianças aprendem sobre si, com o mundo que as cerca e com a natureza da própria vida, podendo então relaxar e confiar no final feliz. Conforme Bettelheim (1980) e Held (1980), citados mais adiante, as narrativas de Contos de Fadas já foram condenadas por serem consideradas escapistas e incentivadoras de uma possível fuga da realidade. O que ocorre de fato é que elas oferecem às crianças uma possibilidade de enfrentamento e superação das próprias dificuldades. Na verdade, as crianças que tem acesso a este gênero aprendem principalmente a confiar em si mesmas e a lutar pelo que acreditam. Elas aprendem isso porque seu raciocínio mágico trata as

experiências vividas pelos personagens como conhecimento prévio: ‘se a Cinderela conseguiu eu também posso conseguir’.

Held, preocupada com as convenções sociais que insistem em rotular antes de averiguar as coisas em profundidade, analisa os múltiplos aspectos da literatura infantil e a evolução intelectual e psicológica da criança e confirma que “o tempo e o espaço míticos do conto são naturais à criança” (HELD, 1980, p.43). Na obra ora referida, indica que “razão e imaginação não se constroem uma contra a outra, mas, ao contrário, uma pela outra. Não é tentando extirpar da infância as raízes da imaginação criadora que vamos torná-la racional. Pelo contrário, é auxiliando a manipular essa imaginação criadora cada vez com mais habilidade , o que supõe quase sempre a mediação do adulto” (HELD, 1980, p.48). Para Held, a infância é a idade do jogo verbal, nesta atividade, a criança pequena mergulha num banho de linguagem adulta, descobre sons e pouco a pouco se apropria deles.

A atividade narrativa associada ao conteúdo simbólico dos Contos de Fadas ajuda a criança a agir de maneira mais competente diante de diversas solicitações que envolvam questões lingüísticas, cognitivas e sócio-afetivas. A criança que tem acesso a esta prática, não só freqüentemente é mais falante, como também realiza muito cedo construções lingüísticas qualitativamente mais elaboradas, é mais sensível a questões sociais e se mostram afetivamente mais tranqüilas. Antigas dúvidas a respeito das contribuições da atividade de narrar Contos de Fadas devido ao fato de tais narrativas estarem aparentemente distante da realidade da criança atual, já foram a muito tempo dissipadas. Tudo aquilo que antes se temia, a magia e o encantamento de uma época atemporal são hoje entendidos como aliados do pequeno aprendiz.

As informações trazidas pelo presente estudo atestam o valor da atividade de conto e reconto das referidas narrativas para a construção do discurso narrativo oral considerando o sujeito em processo de desenvolvimento e em contato com a estrutura da língua, anterior a ele, com suas relações sócio-afetivas imediatas, com o valor de sua participação ativa e com o caráter dialógico de suas relações.

A atividade de reconto tem como ponto central seu caráter interativo e todos os benefícios que dela se podem usufruir os quais estão relacionados às contribuições que o contato com o Outro pode oferecer a este processo de construção. A criança aprende com a narrativa, mas aprende muito mais ao observar seu interlocutor. É ele quem lhe oferece os novos conhecimentos e, muitas vezes, é o referencial de sua fala que a criança projeta para o futuro.

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