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CAPÍTULO 1 – UMA HISTÓRIA DE INSTABILIDADE POLÍTICA

1.4 As ditaduras de Papa Doc e Baby Doc (1957-1986)

Em setembro de 1957, François Duvalier (ou Papa Doc como era conhecido) venceu as eleições com 70% dos votos válidos, no primeiro exercício de sufrágio universal até então realizado no país. Sua candidatura levantou a bandeira da “negritude” da nação haitiana, prometendo colocar seu governo a serviço da afirmação dos valores e tradições da população negra, o que assegurou o apoio em massa da população à sua candidatura. Em sua posse, prometeu um governo de unidade e reconciliação nacionais, comprometido com a Constituição, o pluralismo ideológico, a liberdade de imprensa e o reconhecimento dos direitos sindicais.34

No entanto, na prática essas intenções liberalizantes mostraram ser apenas palavras vazias de um governante que desejava medir e consolidar a sua força. O trecho de um de seus discursos, em 05 de Agosto de 1958, revela seu caráter extremamente autoritário e até mesmo messiânico: “Eu controlo o país. Eu controlo o poder. Eu sou o novo Haiti. Tentar me destruir é tentar destruir o próprio Haiti. Nenhuma força pode me impedir de cumprir minha missão histórica porque foi Deus e o Destino que me escolheram”.35

Em menos de um ano, a Constituição haitiana estava sendo desrespeitada, os inimigos de Duvalier perseguidos e assassinados, os sindicatos desmontados e a população aterrorizada pela ação dos temidos “tontons macoutes” (TTM), a milícia paramilitar de ―voluntários de segurança nacional‖ que servia de instrumento para impor a tirania sobre o povo.

Respaldado pela tolerância do governo americano, assegurada por sua postura anticomunista, Papa Doc foi se transformando rapidamente num déspota, cujas arbitrariedades não tinham limites. Seus 14 anos de governo foram caracterizados pela tirania e a violência com que reprimiu toda e qualquer oposição que ameaçasse seu projeto de perpetuar-se no poder. Seus adversários foram, um a um, eliminados, perseguidos ou expulsos do país. O Exército, única força que poderia ter representado algum obstáculo para a continuidade de seu regime, foi cuidadosamente neutralizado por Duvalier, que continuou a ampliar os efetivos de seus TTM, estimados, em 1959, em cerca de 25.000 homens – um número quatro vezes maior do que o efetivo das Forças Armadas.36

34 FERGUSON, James. Papa Doc, Baby Doc – Haiti and the Duvaliers. Basil Blackwell Ltd., Oxford, 1987, p.

38.

35 HEINL, Robert Debs; HEINL, Nancy Gordon. Written in Blood: The Story of the Haitian People, 1492-1971.

Lanham: University Press of America, 2005, p. 553, tradução nossa.

Papa Doc também investiu contra os obstáculos constitucionais que se opunham ao seu projeto de poder. Em 1961, dissolveu a Assembléia Nacional, reelegendo-se por mais seis anos; em 1964, aboliu a Constituição e aprovou uma nova Carta que lhe conferia a Presidência vitalícia; e em 1971, pouco antes de sua morte, forçou o Legislativo a aprovar a redução de 40 para 18 anos da idade mínima para o exercício da presidência, conseguindo ―legalizar‖ a futura nomeação de seu filho Jean-Claude para sucedê-lo no cargo.

Com a morte de Papa Doc, o despotismo duvalierista se manteria inalterado por mais 15 anos com o jovem Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que sem a experiência e as ambições políticas do pai, tenderia a seguir as diretrizes traçadas pelos expoentes do antigo regime. Ao final da década de 70, quando o Presidente americano Jimmy Carter, em defesa dos direitos humanos, passou a exigir o fim dos abusos da ditadura haitiana, Jean-Claude tentou iniciar um processo de liberalização política, mas que na prática não passou da libertação de alguns presos políticos, do julgamento de alguns poucos TTM e de uma retórica oficial mais comprometida com valores democráticos.

Com a retomada do anticomunismo do Governo Reagan, no início da década de 80, a fachada de democratização deu lugar novamente ao autoritarismo, que se refletiu no próprio texto constitucional de 1983, uma revisão da Constituição duvalierista de 1964. O poder continuou fortemente concentrado nas mãos do Executivo, que mantinha os direitos de Jean- Claude aos títulos de Presidente vitalício e Chefe das Forças Armadas e sua autoridade para nomear seu sucessor e dissolver a Assembleia Nacional.

Na segunda metade da década de 80, quando o processo de democratização que ocorria em toda a América Latina aumentou as pressões internacionais para que Baby Doc cumprisse suas antigas promessas de liberalização, Jean-Claude aprovou algumas reformas da Constituição que lançaram as bases para a implantação de um regime multipartidário no Haiti, mantendo, no entanto, a Presidência vitalícia e o direito de nomear seu sucessor.

As medidas democratizantes do ditador descontentaram, ao mesmo tempo, a linha- dura duvalierista e a oposição sedenta de reformas, minando a autoridade de Baby Doc que, pressionado pela opinião pública internacional e ameaçado internamente por levantes populares em diversas cidades haitianas, acabou fugindo do país, em 7 de fevereiro de 1986, deixando para o povo haitiano a esperança de democratização.

Baby Doc gravou um vídeo para ser visto depois de sua partida. Sentado no escritório que herdou de seu pai, ele dirigiu-se ao povo de seu país: “Meus queridos compatriotas. Nos últimos dias eu tenho procurado em vão por algum sinal que pudesse indicar uma saída para este pesadelo de sangue. Desejando entrar para a história com minha cabeça erguida e a

consciência tranquila e clara, eu decidi esta noite passar o destino do país para as Forças Armadas...”37

O fim do Governo de Jean-Claude Duvalier não acabou com o arraigado autoritarismo no país. O duvalierismo permaneceu vivo sem os Duvaliers, por meio dos expoentes do antigo regime, dos “tontons macoutes”, da oligarquia rural, das elites urbanas e das Forças Armadas, que desejavam manter o status quo do ―escravagismo‖ da ditadura. Uma força de oposição, formada pelas elites negras progressistas, estudantes, artistas e a burguesia comercial, começou, no entanto, a se organizar.

Com a partida de Baby Doc, um capítulo importante da história do Haiti chegou ao fim. Pobre, mas orgulhoso quando François Duvalier assumiu o poder em 1957, o país foi levado, em 1986, às profundezas da miséria e do desespero que teriam chocado até mesmo Papa Doc. Os Duvaliers mudaram para sempre a face da sociedade haitiana criando, por meio de suas políticas, uma diáspora com alcance muito além da elite, com um afluxo de milhares de refugiados aos EUA, Canadá e França. Em 1986, um em cada seis haitianos moravam no exterior. Ironicamente, Papa Doc, o supremo nacionalista, plantou as sementes para uma internacionalização do Haiti muito maior do que a ocorrida durante a ocupação norte- americana de 1915 a 1934.38