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CAPÍTULO 1 – UMA HISTÓRIA DE INSTABILIDADE POLÍTICA

1.5 Do fim do Duvalierismo à ascensão de Aristide (1986-1990)

Nos quatro anos de violência e turbulência política que seguiram à derrubada da ditadura duvalierista, o Haiti teve cinco governos, três dos quais militares.

Antes de partir para o exílio, Jean-Claude Duvalier constituiu um Conselho Nacional de Governo, chefiado pelo General Henri Namphy. A nação estava traumatizada por quase 30 anos de ditadura e dividida entre duas forças antagônicas: a duvalierista, que resistia a qualquer medida liberalizante; e a oposição, para a qual a cassação política dos TTM e sua punição pelos crimes cometidos, transformara-se em sinônimo de democratização.

Em 1987, o Governo Namphy promulgou uma nova constituição, de cunho francamente democrático. A nova Carta consagrou os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos haitianos; reconheceu o créole como uma das línguas oficiais do país; estabeleceu um mandato de cinco anos para o presidente da República e o limite da idade mínima de 35 anos para o exercício do cargo presidencial; criou chefias de Estado e de governo, atribuindo

37 HEINL, Robert Debs; HEINL, Nancy Gordon. Written in Blood: The Story of the Haitian People, 1492-1995.

Lanham: University Press of America, 2005, p. 666, tradução nossa.

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ao Executivo a prerrogativa de nomear o primeiro-ministro; impôs a necessidade de que as nomeações pelo Executivo para os cargos de Chefia das Forças Armadas e das Forças de Polícia fossem submetidas a procedimento de ratificação pelo Senado; criou o Conselho Eleitoral Permanente, totalmente independente, para a administração das eleições; retirou as atribuições políticas das Forças Armadas; determinou a separação entre as forças policiais e o Exército; e, ainda, proibiu a participação dos duvalieristas na política nacional por um período de dez anos.

Namphy comprometeu-se a realizar eleições presidenciais ainda em 1987, com base na nova constituição, mas acabou cedendo às pressões dos duvalieristas que, além de intimidarem o órgão eleitoral com uma série de ameaças, conduziram uma campanha de terror, cujo desfecho seria o trágico massacre de eleitores no dia do pleito eleitoral e a consequente anulação das eleições presidenciais.

No início de 1988, foram realizadas novas eleições, mas Namphy afastou o presidente eleito, Leslie Manigat, reassumindo o poder em junho do mesmo ano, sendo, porém, deposto em fins de 1988 por um movimento militar.

De 1989 a 1990, o General Prosper Avril esteve no poder e impôs uma política fortemente repressiva. A oposição foi perseguida, seus expoentes arbitrariamente detidos e torturados, a imprensa censurada e a insatisfação popular silenciada pela decretação do estado de sítio. Apesar da repressão, os partidos de oposição reuniram-se em uma coalizão, a Assembléia da Concertação, e, assim fortalecidos, provocaram a renúncia de Avril, em março de 1990. Em obediência à constituição, um Governo provisório foi constituído, sob a liderança da juíza da Suprema Corte de Justiça, Ertha Pascal-Trouillot.

Pela primeira vez na história haitiana, na administração Trouillot as lideranças políticas pactuaram assumir um autêntico compromisso com a democratização das instituições políticas nacionais. Eleições presidenciais foram marcadas para dezembro de 1990; uma lei eleitoral foi aprovada; e um Conselho Eleitoral Provisório instituído para administrar o processo eleitoral.

Os partidos políticos eram muito fracos e careciam de uma significativa base popular. Outros tipos de organizações da sociedade civil eram mais influentes. Entre elas, destacavam- se as comunidades católicas de base, fundamentadas na doutrina da Teologia da Libertação, que desafiavam a hierarquia da Igreja. Foi dessa ala progressista que emergiu um jovem padre, Jean-Bertrand Aristide, ou Père Titid, como era afetuosamente chamado por seus paroquianos, cuja voz levantava-se para desafiar os regimes militares e denunciar as desigualdades sociais e econômicas do Haiti. Em um país onde a quase totalidade da

população sempre esteve condenada ao silêncio político e à marginalização social, Aristide, com suas pregações populistas em créole e seu clamor por justiça social, encontrou pronta resposta na camada mais carente da população.

No lado oposto do espectro político estava Roger Lafontant, um notório ex-ministro do interior da era Duvalier, cuja candidatura provocou alarme e escândalo. Uma coalizão de partidos de esquerda e centro-esquerda, a Front National pour le Changement et la Démocratie (FNCD), desistiu da candidatura de Victor Benoît em favor de Aristide, o único que seria capaz de unir a esquerda e o centro contra o candidato duvalierista. Com a presença de 200 observadores eleitorais da OEA e outros 200 da ONU, entre eles representantes do Tribunal Superior Eleitoral brasileiro, Aristide venceu com uma esmagadora vitória obtendo 67% dos votos. O segundo colocado, Marc Bazin, representante das forças tradicionais, alcançou apenas 14% dos votos.39

Pela primeira vez, um líder carismático prometendo mudanças na estrutura social do país foi eleito. A eleição foi verdadeiramente democrática e criou as bases para um governo legítimo do qual o Haiti carecia há muito tempo. Contudo, a primeira administração Aristide não possuía experiência política e estava mal preparada para os enormes desafios. Rapidamente, surgiram divisões dentro da própria coalizão vitoriosa. Aristide tinha um grande apoio popular, mas enfrentou uma vigorosa oposição de muitos setores-chave, incluindo a elite econômica, os militares e importantes setores dentro do Governo americano.

O Governo Aristide trouxe como palavra de ordem o lavalas (torrente, em créole), termo que, com seu sentido bíblico de purificação pela água, continha a promessa da moralização da máquina governamental, pelo afastamento dos TTM e antigos expoentes duvalieristas dos cargos públicos federais ou departamentais mas que, no seu sentido tradicional, representa a enxurrada que desce das montanhas levando tudo o que há pela frente, em geral carregando o lixo dos ricos para a casa dos pobres. Seu governo iniciou em clima de confronto com a ala direita do Parlamento, cujos representantes se empenhariam por bloquear quaisquer outras decisões do executivo, que entendessem como institucionais, radicais ou revanchistas.

Além das causas estritamente político-administrativas, motivos de ordem econômica também geraram tensões entre o Governo e as elites. Aristide defendia a implementação de um programa econômico de emergência, que beneficiasse de imediato e prioritariamente as camadas mais necessitadas da população. Seus objetivos eram os de conceder aumentos

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salariais, gerar empregos, melhorar as condições de atendimento em escolas e hospitais e implementar projetos de desenvolvimento integral. Para isso, o Presidente necessitava dispor de recursos financeiros inexistentes num país que há dez anos apresentava um quadro econômico recessivo, com fortes perdas nos setores de produção e exportação. Há muito tempo, o Haiti sobrevivia, movido pela ajuda financeira internacional.

Foi nesse país marcado por um declínio econômico acelerado e erigido sobre uma estrutura social perversa que o Presidente Aristide pretendeu aplicar um programa econômico em nome da justiça social. O plano visava a obtenção de recursos externos e internos adicionais para a implementação, numa primeira fase, de projetos de desenvolvimento em áreas prioritárias, como energia, rede de transportes, saneamento, agricultura e saúde. Aristide empenhou-se e foi muito bem-sucedido junto a países doadores e entidades financeiras internacionais para que novos empréstimos fossem liberados.

O mesmo não aconteceu no plano interno, no qual Aristide tentou implantar um plano de revisão do sistema fiscal, cujos ônus certamente teriam que recair sobre as classes mais abastadas.

Essa estratégia “lavalassiana” aplicada na área político-administrativa e o plano econômico de emergência não foram, no entanto, as únicas causas de descontentamento dos setores conservadores. Outras ações do Presidente inquietaram igualmente a oposição, despertando, sobretudo, a reação dos militares.

A primeira delas foi a decisão de criar uma guarda militar responsável por sua segurança pessoal, o chamado Serviço de Segurança do Presidente (SSP). A iniciativa foi interpretada pelas Forças Armadas como inconstitucional por contrariar um artigo da carta magna que proíbe a formação de qualquer corpo armado, além das forças armadas e das forças policiais. Na verdade, os militares estavam preocupados com a possibilidade de que o Presidente formasse um ―exército paralelo‖ semelhante aos “tontons macoutes” da era Duvalier, que pudesse neutralizar a ação das Forças Armadas, retirando delas o poder de influir sobre os destinos políticos da nação.

A segunda foi o fato de que Aristide se comprometeu a combater o tráfico de drogas e apontou os militares como os responsáveis por ser o Haiti o segundo maior distribuidor de drogas do ocidente. Essa atividade, que movimentaria cerca de 48 toneladas anuais de drogas transitando em solo haitiano, traria 200 milhões de dólares ao ano para a cúpula das Forças

Armadas. Alguns consideram o enfrentamento do tráfico de drogas como a grande e verdadeira razão do golpe que derrubou Aristide.40

A última ação e, provavelmente, a ―gota d'água‖ que teria esgotado a tolerância militar parece ter sido o discurso de Aristide à nação em 26 de setembro de 1991, apenas quatro dias antes do movimento que o destituiria, no qual ele teria insinuado que o povo deveria recorrer à violência para combater as forças da opressão, fazendo alusão ao ―suplício do colar‖ ou Père Lebrun41, prática de longo tempo conhecida da população haitiana e que consistia em imobilizar a vítima, amarrando-lhe os braços, para incendiá-la com um pneu banhado em gasolina que lhe era colocado em torno do corpo.

Naquele instante do dia 26 de setembro de 1991, o atestado de óbito do Governo Aristide foi assinado pelas forças militares. Quatro dias após sua fala à nação, o Presidente foi deposto e o incipiente esforço para a democratização do Haiti sofreu perverso retrocesso.