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As encruzilhadas da memória

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 46-54)

III LOS INFORMANTES

3.1 As encruzilhadas da memória

Publicado em 2004, Los informantes é o primeiro livro de Vásquez que articula a trajetória dos personagens com as consequências de episódios históricos e sociais. É o primeiro em que a Colômbia é tratada com profundidade, tornando-se não apenas cenário, mas um dos temas principais do enredo. E o primeiro em que a memória extrapola a dimensão individual e se debate entre as tensões da esfera pública. A memória, como ocorrerá nos romances seguintes, não se limita a ser um instrumento, uma ponte entre passado, presente e futuro. Trata-se, ela própria, de um objeto de reflexão, um campo cheio de encruzilhadas que desafiam e submetem os personagens.

A trama se inscreve na órbita da Segunda Guerra Mundial, tema determinante para a intensificação do interesse pela memória nas últimas décadas (HUYSSEN, 2000). Vásquez constrói a narrativa em torno de um episódio quase esquecido da história latino-americana: as perseguições sofridas por imigrantes dos países do Eixo depois que os governos locais, pressionados pelos Estados Unidos (RINKE, 2015), alinharam-se ao bloco dos Aliados. Acolhidos nas décadas anteriores, italianos, japoneses e alemães passaram a ser duramente hostilizados, e castigados com expropriação de bens e confinamento diante de qualquer suspeita, comprovada ou não, de que tivessem envolvimento com o nazifascismo. Famílias foram destruídas, patrimônios dilacerados e inúmeros suicídios cometidos por pessoas incluídas nas chamadas listas negras do Departamento de Estado Norte-Americano.

O interesse maior do romance, contudo, mais do que evocar esses acontecimentos, é mostrar como eles continuam vivos e o quão difícil – embora necessária – é a tarefa de rememorá-los. Cinquenta anos depois da guerra, o jornalista colombiano Gabriel Santoro retorna àquele período numa investigação aparentemente sem fim, tamanhos os acréscimos e revisões que suas sucessivas descobertas o obrigam a fazer. Gabriel começa com a biografia da melhor amiga de seu pai, a judia alemã Sara Guterman, que chega à Colômbia em 1938 escapando do nazismo com a família; em seguida, ao saber que o pai tivera participação ativa em alguns episódios, escreve uma nova obra, espécie de ampliação e revisão da anterior, intitulada, metaficcionalmente, Los informantes; por último, um ano depois, publica um postscriptum que, mais uma vez, determina uma nova visão dos fatos – sem eliminar, no entanto, as incertezas que pairam sobre alguns.

Seus consecutivos esforços confirmam o que escreveu Ricouer (2005, p.35-40) sobre o passado: diferentemente do que creem, não é apenas o futuro que está aberto e

indeterminado; também o passado está sujeito a novas interpretações, capazes, inclusive, de influenciar o rumo de nossos projetos. O que temos supostamente de mais familiar – o pai – guarda segredos suficientes para desfazer nossas convicções mais férreas. Não há histórias definitivas, nem relatos que digam tudo. Toda narrativa tem necessariamente uma dimensão seletiva que condena à parcialidade o que se conta. Iluminam-se alguns aspectos, mas outros ficam obrigatoriamente na escuridão (RICOEUR, 2007, p.455).

O romance faz ao mesmo tempo uma reconstrução memorialística e uma reflexão sobre a memória. Este duplo propósito é favorecido pela estrutura metaficcional, em que, tão importante quanto os fatos, é o percurso de sua revelação. A escolha de um narrador jornalista permite uma indagação múltipla sobre diferentes etapas da investigação histórica. Profissional híbrido por excelência, o jornalista se move por fronteiras difusas, entre as quais a da história e a da literatura. Uma boa reportagem é sempre uma pesquisa e uma narrativa. Uma entrevista é a interpelação de uma memória e a confecção conjunta de uma história. Em todos esses momentos, Gabriel Santoro adverte armadilhas, obstáculos psíquicos, políticos, éticos. Barreiras de toda sorte se levantam em seu percurso.

As complicações começam pela fratura quase irremediável entre os que querem lembrar e os que querem esquecer. As pessoas mais próximas do jornalista – Sara e seu pai – representam, emblematicamente, os dois extremos dessa tensão. Atormentado pela culpa, Gabriel pai é incapaz de esquecer a traição à família Deresser, mas torce para que as listas negras desapareçam definitivamente da memória pública do país. Sara, em contrapartida, fala com avidez sobre sua experiência, mas tem os anseios de recordação tolhidos pelos filhos e pelo pacto de silêncio estabelecido com Gabriel. Já Enrique, o amigo traído, compartilha as lembranças com a família, mas não admite levá-las para fora de casa.

Tão rígidas são as amarras da memória, que somente um acontecimento fortuito permite ao narrador contar sua história. Não fosse a morte trágica de Gabriel e a estridente irrupção de Angelina – que, perante câmeras e holofotes, escancara ao país as infâmias do professor de retórica –, a investigação do protagonista teria atolado no marasmo, no infrutífero embasbacamento com a capacidade de superação do pai. Há, no lugar disso, a inevitável queda da glória para o opróbrio, o ilustre membro da sociedade rebaixado à condição de pária. Tão importante é a transformação do pai que a ela se referem os títulos de todos os capítulos (“La vida insuficiente”, “La segunda vida”, “La vida según Sara Guterman”, “La vida heredada”).

A ameaça de esquecimento, pois, atravessa o romance de Vásquez. As barreiras impostas no âmbito privado estendem-se à esfera pública, onde são reforçadas por novas

práticas de silenciamento. Se na Colômbia do livro há uma política predominante em relação à memória, esta se caracteriza pela omissão de fatos traumáticos ou capazes de provocar o dissenso. A ideia de uma nação católica, solidária e unida é imposta a fórceps nas cerimônias de governo, homenagens, celebrações de dias pátrios. As comemorações – que Ricouer (2007) considera um dos recursos mais frequentes de manipulação da memória – disseminam-se de tal forma que constituem uma tradição (VÁSQUEZ, 2004, p.25). São ocasiões em que uma mesma história é contada e recontada infinitas vezes, sem brechas que possibilitem a expressão de novas vozes, a ressurreição dos mortos excluídos das narrativas dominantes.

Lugares de memória aparecem enxovalhados (como os monumentos cobertos de fezes) ou atuando na direção contrária (como os arquivos, onde a memória, ao invés de protegida, é transformada em lixo). “El funcionario que me la dio me confesó la verdad. Esos papeles los cortaban en tiras y los ponían junto al mesón de trámites, para que la gente que iba a poner la huella tuviera con qué limpiarse los dedos”, diz Enrique (p.316). Os meios de comunicação, por sua vez, abordam a história com sensacionalismo e ligeireza. O entrevistador de Angelina lamenta que as listas negras estejam “tristemente olvidadas entre el gran público” (p.194), mas não ajuda a mudar a situação ao enveredar pela futricagem, o desagravo raivoso de uma mulher abandonada.

Numa sociedade de vínculos frágeis, selados pelo casuísmo e a hipocrisia, o fantasma da proscrição é um motivo a mais para não falar. O pertencimento é uma condição provisória e sempre mantida a um alto preço. “Vaca sagrada” da sociedade (p.25), Gabriel sabe que cairá em desgraça se as comportas de seu passado forem rompidas. Não há, por isso, vestígios da juventude em seu apartamento nem, muito menos, documentos que o apontem como informante das listas negras (p.223). A herança do banimento também é um fardo do qual se esquivam, ou tentam esquivar-se, os filhos de Sara – que a proíbem de contar o passado aos netos – e Enrique, que assiste muito jovem ao aniquilamento social do pai.

Ao silenciamento da memória, sucede então o inevitável: o passado começa a ser usurpado. Por vezes num revisionismo flagrante, como quando Gabriel, desesperado com o livro do filho, tenta difundir um episódio fictício de sua vida, no qual aparece não como delator, mas como vítima de uma delação injusta (p.70-71). Outras vezes, num efeito inercial – o hábito de não dizer, de não lembrar as coisas como foram –, que provoca um deslocamento inicialmente suave, mas depois deletério dos fatos do passado. É o que ocorre, por exemplo, quando uma revista antepõe o adjetivo “suposto” ao antissemitismo do ministro López de Mesa – o mesmo que, entre outras declarações, disse que os judeus tinham “una orientación parasitaria de la vida” (p.266). “Yo entiendo que el tema sea difícil de tratar entre

os ciudadanos colombianos, pero no debería serlo en los medios”, protesta a livreira que decide enviar uma carta de reclamação à revista (p.269).

Há, como este, inúmeros casos de inadequação – ou no mínimo tensão – entre palavras e coisas no livro. A palavra ora diz pouco, ora diz mal, ora diz nada. E tudo o que diz depende do contexto. Já nas primeiras páginas, após citar um fragmento da biografia de Sara, Gabriel observa que alguns termos, como “Auswanderer” e “listas negras”, haviam mudado de significado depois da publicação de sua obra (e, principalmente, das descobertas que fez sobre o pai, das quais saberemos adiante). A instabilidade do passado necessariamente estende-se às palavras. Até mesmo seu nome passa a significar outra coisa depois de perder seu homônimo mais próximo (p.104):

Rellenando los formularios de la cremación había escrito, por primera vez en mucho tiempo, el nombre completo de mi padre, y me había estremecido el automatismo de mi mano, que había memorizado esos movimientos a través de años de escribir Gabriel Santoro, pero siempre refiriéndose a mí, no a un muerto. El contenido de mi proprio nombre, aquello que nos parece inmutable (aunque no sea más que por la fuerza de la costumbre), se estaba transformando (VÁSQUEZ, 2004, p.104).

Essa mutabilidade dos significados – sua historicidade, seu condicionamento às circunstâncias – é expressa também nos comentários de Peter Guterman sobre o nome Europa (p.38-39) ou na resposta de Gabriel sobre a petrolífera “Troco”, em que o pai trabalhara: “Es un nombre de empresa. Como cualquier otro nombre. No quiere decir nada” (p.108). Ou seja, não quer dizer nada por si, depende do contexto. Significativamente, na página seguinte, Angelina afirma que Gabriel pai, sim, importava-se muito com os nomes (p.109). Embora se refira aos rótulos dados aos relacionamentos, podemos estender a preocupação a outras coisas, ao desejo de nomeá-las e, com isso, controlá-las. “Nomear é apropriar-se”, já disse Stephen Greenblatt (1989) em seus estudos sobre a conquista da América.

Se a memória pública, como escreveu Hugo Achugar (2006, p.183), resulta de um constante embate de memórias, é nas palavras que se travam algumas das principais batalhas. Palavras são instrumentos de poder e podem agrilhoar memórias e esvaziar experiências10. É inadmissível, diz Sara (p.83), empregar o mesmo termo – “campo de concentração” – para designar os Läger dos nazistas e os locais de confinamento para imigrantes do Eixo. Colocar o Hotel Sabaneta na categoria de Auschwitz é amenizar os horrores deste, esquecer aquilo que não pode ser esquecido: “el lenguaje no nos puede hacer estas trampas. Una cosa es una cosa y otra cosa es otra cosa”, diz ela (p.83).

10 Convém le a a defi ição de Rola d Ba thes, segu do ue a lí gua si ples e te fas ista; pois o

Esta postura rigorosa contrasta com a leviandade do padre e do representante da prefeitura que, nas exéquias de Gabriel pai, repartem adjetivos genéricos entre frases prontas, servindo para soterrar, e não invocar, a memória do morto. Contrasta também com o “desapego” e o “cinismo” com que Gabriel pai maneja as palavras, usando-as como “herramienta para mirar desde arriba” (p.305). Considerando o lugar da oratória no imaginário social colombiano – que ainda hoje não esqueceu o epíteto “Atenas sul- americana” dado a Bogotá no século XIX11 –, é notável que o romance concentre no mesmo personagem a defesa do esquecimento e a maestria na arte de falar – ou “de falar de tal modo que se consiga persuadir o interlocutor”, como se definia a eloquência nos primórdios da retórica (TODOROV, 1991, p.171). No longo percurso trilhado a partir de então, a retórica não raro atingiu o esplendor divorciando-se da verdade, da moral e da responsabilidade política. Sofistas como Górgias e Protágoras, por exemplo, diziam que “não há qualquer necessidade, para quem queira tornar-se um orador, de se instruir acerca do que é realmente a justiça, mas sim do que sobre isso pode pensar a multidão, uma vez que é justamente ela quem julgará” (apud TODOROV, idem, p.173). Já estetas como Quintiliano pregavam a palavra por si mesma, voltada unicamente para a beleza e sem nenhuma intenção de utilidade. “O encanto das letras é mais puro se elas se afastam da ação, ou seja, do trabalho, e se podem fruir da sua própria contemplação”, dizia (idem, p.180).

Essas duas concepções parecem influenciar particularmente a prática de Gabriel pai, orador reverenciado que, durante 20 anos, ministrou o curso da Suprema Corte de Justiça colombiana. A um aluno que menciona as ideias de um discurso, ele rebate: “Las ideas no importan, las ideas las tiene cualquier bestia” (p.22). Sobre um célebre discurso de sua autoria, afirma: “La última frase es una estupidez, pero el alejandrino es bonito” (p.27). Recordando-se desta ocasião, Gabriel filho observa, ironicamente, que o pai “habló de reconstrucción y de moral y de perseverancia, y lo hizo sin ruborizarse, porque se fijaba menos en lo dicho que en la figura usada para decirlo” (p.26-27).

O antagonismo entre os dois, portanto, radica-se não apenas na tensão entre lembrar e esquecer, mas em duas visões opostas da linguagem. Enquanto o pai, defensor do esquecimento, comunica-se estritamente pela oralidade, manifestando desprezo pelos significados, o filho confia no poder ordenador da escrita, sempre em busca de provas para confrontar aos testemunhos que colhe. Longe de se esgotarem em si – como os discursos

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Alcunha herdada da geração de gramáticos, filólogos e lexicógrafos que orbitou o poder na segunda metade do século XIX – alguns deles atingindo a presidência. Sobre o tema, ve Miguel A to io Ca o a igos: g a áti a pode e Colo ia DEA“, e Limpia, fija y da esplendor: el letrado y la letra en Colombia a fines del siglo XIX (Walde, 1997).

autotélicos de Quintiliano –, os livros de Gabriel filho provocam reações imediatas: o desespero do pai, a carta de Enrique, a agressividade de Sergio. A rememoração dos fatos impacta a memória pública e reverbera na memória individual dos envolvidos. Depois de ler Los informantes, Enrique se mostra arrependido pelo tratamento dispensado a Gabriel. “Si hubiera leído tu libro antes, si hubiera sabido lo que había detrás de su visita, tal vez no le habría dicho lo que le dije” (p.309).

É possível que, no decorrer do romance, o leitor se pergunte o que o protagonista afinal investiga: o passado do pai ou a história do país? Essas duas instâncias, a individual e a coletiva, mostram-se inextricáveis. São os meandros da memória familiar que conectam Gabriel com o passado colombiano; é o passado colombiano que ilumina sua história familiar – sem primazia de um sobre o outro. Após a morte do pai, Gabriel se assume como herdeiro e executor testamentário – ou seja, responsável por fazer cumprir as disposições finais do morto. E estas, antes mesmo do perdão, incluem o desejo de ser lembrado, que já expressara ao batizar o filho com o próprio nome, destinando-o a ser a evocação permanente de sua memória. “El nombre de mi padre lo reconoce cualquiera, y no sólo porque sea el mismo que firma este libro”, diz Gabriel filho, em uma das primeiras páginas (p.21).

Esta função rememorativa é confirmada mais adiante, em uma passagem de grande força simbólica, quando Gabriel se torna guardião do documento que dá ao pai o direito de ser enterrado ao lado da mulher – espécie de vale-túmulo que levará na carteira por muitos anos. A simbologia é ainda mais clara se pensarmos no túmulo como um lugar de memória, tendo inclusive a mesma origem etimológica que a palavra signo.

O fato de a palavra grega sèma significar, ao mesmo tempo, túmulo e signo é um indício evidente de que todo trabalho de pesquisa simbólica e de criação de significação é também um trabalho de luto. E que as inscrições funerárias estejam entre os primeiros rastros de signos confirma-nos, igualmente, quão inseparáveis são memória, escrita e morte (GAGNEBIN, 2006, p.45).

Los informantes, nos diz o narrador (p.94), é uma herança deixada pela morte de seu pai, que lhe deu, postumamente, sua maior lição: a da mutabilidade do passado e sua permanência incontornável no presente. O livro nasce da “obligación de descubrirlo, interpretarlo, averiguar quién había sido en realidad” (p.261) – ou seja, parte do desconhecimento, como todas as narrativas que compõem a trilogia. Esta mesma perspectiva aparece quando Gabriel cita os motivos que o levam a escrever sobre a vida de Sara.

Darme cuenta: esa era mi intención, sencilla y pretenciosa al mismo tiempo; y pensar en el pasado, obrigar a alguien a recordarlo, era una manera de hacerlo, un pulso librado contra la entropía, un intento de que el desorden del mundo, cuyo único destino es siempre un desorden más intenso, fuera detenido, puesto en grilletes, por una vez derrotado (VÁSQUEZ, idem, p.34).

São, portanto, as circunstâncias do presente que o impelem ao passado. Considerando o início das entrevistas com Sara, em 1987, e o postscriptum a Los informantes, em 1995, a produção de Gabriel se dá em oito anos dilacerantes da história colombiana, quando os confrontos entre governo e tráfico instauram um cotidiano de pânico em cidades como Bogotá e Medellín. As incertezas, o medo e os traumas provocados pela violência ainda não têm a centralidade que terão em El ruido de las cosas al caer (2011), porém definem a experiência dos personagens e a relação que estabelecem com o entorno. Cada paisagem de Bogotá é um memento mori, diz Gabriel (p.50), mencionando sequestros, atentados, assassinatos, entre outras brutalidades que, de tão frequentes, tornam-se corriqueiras e integram a crônica de qualquer família. Seu avô foi morto numa guerra civil (p.23). Seu pai, ameaçado de sequestro (p.89). Angelina perdeu os pais numa bomba (p.90) e o amante em um tiroteio (p.241). A tal ponto se difunde o costume de matar (p.75) que o erro de um jogador tem a morte como sentença inapelável (p.278).

É nesse país convulsionado que a memória se projeta como horizonte urgente. Ao voltar à Colômbia dos anos 1930 e 1940, Gabriel não encontra explicações cabais, relações de causa e efeito, mas detecta práticas semelhantes de exclusão, intolerância e hipocrisia. Judeus são hostilizados. Alemães perseguidos. Negros rejeitados. Um homem agoniza em plena rua sem ninguém que se solidarize (p.133). Não por acaso, o último capítulo antes do postscriptum termina com a explosão de ódio que foi o “Bogotazo”, a série de depredações, saques e confrontos que, em 1948, após o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, deflagrou o período conhecido como “A Violência”, que produziu mais de 200 mil mortos numa guerra civil de dez anos (DEAS, 2006, p.61).

As fraturas sociais, portanto, são antigas e endêmicas na Colômbia; e, como mostra o romance, não é o silêncio nem as dissimulações que curarão feridas. Para que o perdão seja possível, diz Ricoeur (2005, p.35-40), é preciso um “trabalho de memória”, um esforço de rememoração capaz de superar a repetição compulsiva (a queixa incessante, a evocação infeliz dos mesmos acontecimentos) e afrontar o trauma por meio das lembranças. A culpa de Gabriel, o rancor de Enrique, o silêncio de ambos sugerem que, na maior parte do tempo, mantiveram-se enredados na evocação repetitiva do trauma – Gabriel ouvindo o disco de Wagner, Enrique lendo as cartas do pai (e tentando, inutilmente, imaginar o momento da delação). Somente a reviravolta na vida de Gabriel – a bem-sucedida cirurgia renovando suas perspectivas – o faz buscar a reconciliação com o passado, para a qual o perdão de Enrique é

condição essencial. Enrique, no entanto, recusa-se a perdoar o ex-amigo e diz, precisamente, que o havia excluído da memória.

Lo menosprecié mucho, Gabriel, y me arrepiento por eso. Menosprecié su esfuerzo. Lo que él hizo, viniendo aquí a hablar conmigo, no es para todo el mundo. Pero nuestra posición en este momento era muy distinta: él había pensado mucho en mí, o por lo menos eso me decía. Yo, en cambio, lo había borrado de la mente (p.303).

O romance aponta o risco de um círculo vicioso em que as desavenças são eternizadas sem a possibilidade de perdão. Esta ameaça é encarnada por Sergio, o colérico filho de Enrique, que desconhecia a história da família até a publicação dos livros de Gabriel: “la cosa también es conmigo, no sólo con mi papá”, esbraveja (p.292), sentindo como material

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 46-54)