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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA TRILOGIA COLOMBIANA DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ

DIOGO DE HOLLANDA CAVALCANTI

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DIOGO DE HOLLANDA CAVALCANTI

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como quesito para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Orientadora: Professora Doutora Elena Cristina Palmero González

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Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

C377d Cavalcanti, Diogo de Hollanda Deslocamento e memória na trilogia colombiana de Juan Gabriel Vásquez / Diogo de Hollanda Cavalcanti. -- Rio de Janeiro, 2016.

148 f.

Orientadora: Elena Cristina Palmero González. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós Graduação em Letras Neolatinas, 2016.

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A meus pais, Pedro e Ana.

A minha mulher, Débora.

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Agradecimentos:

A minha orientadora, Elena Palmero González, pelo entusiasmo, a competência e o afeto que presidem sua prática.

Às professoras e professores que me honram ao integrar a banca: Ana Cristina dos Santos (UERJ), Ary Pimentel (UFRJ), Luiz Barros Montez (UFRJ) e Silvia Cárcamo (UFRJ). À CAPES, por financiar a pesquisa.

Aos professores e alunos que me transformaram nos últimos anos.

A Carlos Alberto Della Paschoa (Instituto Cervantes do Rio de Janeiro), Jasper Vervaeke e todos que me ajudaram na obtenção de livros e outras fontes bibliográficas.

Aos que, generosamente, me apoiaram e escutaram ao longo da pesquisa: Alaor Filho, Alexandre Rodrigues, Ana Lea-Plaza, André Garcia, Andrea Lombardi, Cátia Martins, Davis Diniz, Diana de Hollanda, Guarani Cavalcanti, Jacqueline Farid, Janice Caetano, Joshua Schneyer, Luciano Prado, Lúcio Artioli, Marco Lucchesi, Marcelo Bortoloti, Marcelo

Suplicy, Marcio Gomes da Costa, Mario Rodríguez, Miguel Ángel Zamorano, Miguel Conde, Pura Martínez, Rafael Gutiérrez, Regina Guterman, Susana Kampff Lages, Sylvia

Moretzsohn, Terezinha Santos, Victor Lemus, Vinícius Loureiro, Vitor Nuzzi – entre outros tantos que, injustamente, esqueço de mencionar aqui.

A meus pais: Ana Maria de Hollanda Cavalcanti e Pedro Cavalcanti – poetas, prosadores e professores insubstituíveis.

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Juan Gabriel Vásquez. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

Esta tese propõe a análise de três romances do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez: Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El ruido de las cosas al caer

(2011). Considerando as obras como uma trilogia, a pesquisa procurou verificar de que maneira o deslocamento físico e cultural de Vásquez – que escreveu os livros quando vivia Europa – influenciou a abordagem que faz da Colômbia. As hipóteses têm como ponto de partida o trabalho de Abril Trigo (2003), que sugere que os deslocamentos, ao acarretarem um esquecimento criativo que envolve o distanciamento do imaginário social e da memória histórica do país deixado, estimulam uma propensão questionadora na memória, passível de romper com os paradigmas anteriores e propor novas formas – mais críticas e inclusivas – de olhar a comunidade nacional. Ao gerar uma disposição particular à recordação e fomentar uma memória crítica, o deslocamento também contribui para uma das marcas dos romances de Vásquez: o permanente gesto reflexivo em relação à memória – e, de forma mais ampla, em relação ao passado e às complexidades de narrá-lo. Desenvolvidas de forma reiterada e consistente, suas reflexões sobre a memória produzem uma visão coesa, algo próximo de uma poética, cuja análise também é empreendida na tese. Adicionalmente, o trabalho aponta que o deslocamento, mais do que a condição física de extraterritorialidade, é tomado por Vásquez como um lugar de enunciação e um instrumento de concreção de uma poética, segundo a qual a literatura serve para fazer perguntas, e não expressar certezas.

Palavras-chave: Juan Gabriel Vásquez; literatura hispano-americana; literaturas em deslocamento; deslocamento; memória.

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Juan Gabriel Vásquez. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

Esta tesis propone el análisis de tres novelas del escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez:

Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) y El ruido de las cosas al caer (2011). Considerándolas como una trilogía, la investigación buscó verificar de qué manera el desplazamiento físico y cultural de Vásquez – que escribió los libros mientras vivía en Europa – influye en su recreación literaria de Colombia. Las hipótesis tienen como punto de partida el trabajo de Abril Trigo (2003), que sugiere que los desplazamientos, por acarrear un olvido creativo que incluye el alejamiento del imaginario social y la memoria histórica del país dejado, estimulan una propensión cuestionadora en la memoria, pasible de romper los paradigmas anteriores y proponer nuevas formas – más críticas e inclusivas – de mirar a la comunidad nacional. Al generar una disposición particular al recuerdo y fomentar una memoria crítica, el desplazamiento también contribuye para una de las marcas de las novelas de Vásquez: el permanente gesto reflexivo en relación a la memoria – y, de manera más amplia, en relación al pasado y las complejidades de narrarlo. Desarrolladas de modo reiterado y consistente, sus reflexiones sobre la memoria producen una visión cohesiva, cercana a una poética, cuyo análisis también será efectuado en la tesis. El trabajo también sostiene que el desplazamiento, más allá de la condición física de extraterritorialidad, es tomado por Vásquez como un lugar de enunciación y un instrumento de concreción de una poética, según la cual la literatura sirve para hacer preguntas, y no expresar certezas. Palabras clave: Juan Gabriel Vásquez; literatura hispanoamericana; literaturas en desplazamiento; desplazamiento; memoria.

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Juan Gabriel Vásquez. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

This thesis proposes the analysis of three novels by Colombian writer Juan Gabriel Vásquez:

Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) and El ruido de las cosas al caer (2011). Considering the novels as a trilogy, the research aims to understand how Vásquez´s physical and cultural displacement could have influenced his approach to

Colombia in these three books, all written while the author lived in Europe. The starting point for the hypotheses presented here is Abril Trigo´s argument (2003) that displacements, for provoking a creative oblivion which includes the detachment from the social imaginary and historical memory of the country left behind, stimulates a questioning propensity in memory, capable of breaking former paradigms and proposing new ways – more critical and inclusive

– of looking at national community. Fostering a particular form of remembrance, connected to the constitution of a critical memory, displacement also contributes to one of the main

characteristics of Vásquez´s novels: the constant reflection on memory – and, in a wider perspective, on the past and the complexities involved in its narration. Presented in a consistent way, his ideas about memory produce a coherent view, something close to a poetics, which this thesis also analyzes. In addition, the study argues that displacement, more than the physical condition of extraterritoriality, is taken by Vásquez as a place of enunciation and a tool to materialize a poetics according to which literature serves to put forth questions, instead of certainties.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...10

I DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA LITERATURA HISPANO-AMERICANA CONTEMPORÂNEA...18

1.1 – Deslocamentos: releituras...18

1.2 – Lembrar à distância...25

II O ESCRITOR EM BUSCA DE UM ESTILO...36

III LOS INFORMANTES...45

3.1 – As encruzilhadas da memória...45

3.2 – O imperativo da reflexão...53

3.3 – As dissonâncias da nação...60

IV –HISTORIA SECRETA DE COSTAGUANA...69

4.1 – O narrador deslocado...69

4.2 – História e ficção: encontros e desencontros...80

4.3 – Entre Conrad e García Márquez...86

V EL RUIDO DE LAS COSAS AL CAER……....98

5.1 – O resgate de uma experiência...98

5.2 – O adulto-criança sob o signo do desamparo...108

5.3 – A voz e o olhar dos deslocados ...114

CONCLUSÕES...119

REFERÊNCIAS...122

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INTRODUÇÃO

Esta tese propõe a análise de três romances do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez: Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El ruido de las cosas al caer (2011). A leitura está centrada em dois aspectos principais: a influência do deslocamento físico e cultural de Vásquez (que escreveu os três livros fora da Colômbia) e as reflexões sobre memória que permeiam as obras.

Nascido em 1973, em Bogotá, Vásquez é um dos nomes de maior destaque na literatura hispano-americana contemporânea, elogiado com a mesma ênfase por representantes da geração anterior, como Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, e escritores surgidos nas últimas décadas, como o argentino Rodrigo Fresán, que o apontou como um dos maiores romancistas políticos da América Latina (FRESÁN, 2011). Traduzido para 18 idiomas e editado em mais de 30 países, Vásquez publicou até agora sete romances, um livro de contos, um de ensaios e uma pequena biografia sobre uma de suas referências literárias, Joseph Conrad.

Embora tenham tramas independentes, Los informantes, Historia secreta de Costaguana e El ruido de las cosas al caer podem ser lidos como uma trilogia1, por compartilharem uma mesma proposta temática – de reescrita do passado colombiano – e terem em comum alguns procedimentos narrativos, como a enunciação em primeira pessoa, o discurso metaficcional e a presença da figura paterna como fio condutor do enredo, que é sempre uma investigação sobre a história nacional. Por terem sido escritas na Europa (onde Vásquez viveu 16 anos, 13 deles em Barcelona), constituem um conjunto textual fecundo para estudar a influência dos deslocamentos, hoje, em relatos que se nutrem da memória individual e coletiva de uma nação.

O problema central da tese se expressa na seguinte pergunta: de que forma o deslocamento de Vásquez, o fato de viver na Europa quando escreveu os romances, influenciou a abordagem que faz da Colômbia?

Minhas hipóteses têm como ponto de partida o trabalho de Abril Trigo (2003), que sugere que os deslocamentos, ao acarretarem um esquecimento criativo que envolve o distanciamento do imaginário social e da memória histórica do país deixado, estimulam uma propensão questionadora na memória, passível de romper com os paradigmas anteriores e propor novas formas – mais críticas e inclusivas – de olhar a comunidade nacional. Marcados pelo questionamento tenaz da história hegemônica e do imaginário social colombiano, os

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romances de Vásquez respaldam a teoria de Trigo, evocando fatos esquecidos e realçando a violência encoberta pela ideia de nação homogênea.

Ao gerar uma disposição particular à recordação e fomentar uma memória crítica, o deslocamento também contribui para uma das marcas dos romances de Vásquez: o permanente gesto reflexivo em relação à memória – e, de forma mais ampla, em relação ao passado e às complexidades de narrá-lo. Desenvolvidas de forma reiterada e consistente, suas reflexões sobre a memória produzem uma visão coesa, algo próximo de uma poética, cuja análise também será empreendida nesta tese.

Adicionalmente, pretendo mostrar que o deslocamento, mais do que a condição física de extraterritorialidade, é tomado por Vásquez como um lugar de enunciação – e, como tal, um lugar ao mesmo tempo concreto e desejado (ACHUGAR, 2006, p.19). Ao falar sobre a Colômbia, o autor adota deliberadamente a perspectiva de quem está de fora. Declara ter com

o país “uma relação de romancista estrangeiro” (HOLLANDA, 2013) e, muito mais do que

um conhecedor, assume a posição de um pesquisador, que se lança sobre um território desconhecido em busca de respostas.

Essa escolha – que demonstra, por si só, as especificidades dos deslocamentos hoje, desvencilhados do sentimento de perda identitária de outros momentos – tem impacto tanto ideológico como estrutural, influenciando, por exemplo, o caráter investigativo, quase detetivesco, das obras. Neste sentido, Vásquez faz do deslocamento o instrumento para concreção de uma poética, segundo a qual a literatura serve para fazer perguntas, e não expressar certezas. Esta concepção, expressa pelo escritor em diferentes ocasiões, é consubstanciada não apenas pela estrutura e o caráter inquisitivo das obras, como também pela presença de personagens deslocados, que em todos os romances são ou narradores ou testemunhas decisivas nas revelações feitas pela trama.

Definido o objeto, o problema e as principais hipóteses da pesquisa, os objetivos do trabalho compreendem a necessidade de:

 estudar a trilogia colombiana de Juan Gabriel Vásquez (Los informantes,

Historia secreta de Costaguana e El ruido de las cosas al caer) em suas principais coordenadas temáticas e compositivas;

 integrar o estudo crítico à análise interpretativa, examinando a influência do deslocamento na reconstrução memorialística, nas estratégias compositivas e na visão histórica que emerge dos textos;

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Para o desenvolvimento da pesquisa, conjugo procedimentos de análise textual e hermenêutica literária com procedimentos provenientes da crítica cultural, dos estudos comparados e da historiografia literária.

Embora tenha merecido resenhas2, concedido entrevistas e participado em 2012 da principal festa literária do país – a Flip, de Paraty –, Juan Gabriel Vásquez praticamente não é estudado na academia brasileira, conforme indicam anais de eventos como o Congresso Brasileiro de Hispanistas e o banco de teses e dissertações da CAPES e de oito universidades (UFRJ, UFF, USP, Unicamp, Unifesp, UFMG, UFRGS e PUC-Rio). A exceção têm sido os trabalhos que, desde 2011, venho publicando sobre o autor – entre eles a dissertação de

mestrado “Deslocamento e memória em Los informantes, de Juan Gabriel Vásquez”, que

defendi no início de 2012, na Faculdade de Letras da UFRJ.

Em nível internacional, contudo, nota-se um interesse crescente, expresso em artigos, eventos e em pelo menos uma tese de doutorado, de autoria de Jasper Vervaeke, da Universidade de Antuérpia, defendida no início de 2015. Atento à intertextualidade na obra de Vásquez, Vervaeke aponta, por exemplo, rastros de W. G. Sebald, Thomas Pynchon e Jorge Luis Borges em Los informantes (VERVAEKE, 2012). Ao mesmo tempo, num perfil publicado na antologia crítica The contemporary Spanish-American Novel. Bolaño and after

(VERVAEKE, 2013), lançada pela editora Bloomsbury, o pesquisador identificou proximidades entre Vásquez e V.S. Naipaul. Perfil parecido, uma espécie de apresentação da obra do autor, integrou a antologia Les espaces des écritures hispaniques et hispano-américaines au XXIe siècle, publicada pela editora da Universidade de Limoges (RAMOS-IZQUIERDO; BARATAUD, 2012). No artigo “Vacillements. Poétique du desequilibre dans

l´ouevre de Juan Gabriel Vásquez”, Catalina Quesada Gómez, professora da Universidade de

Miami, analisa a obra de Vásquez desde seus romances de estreia, Persona (1997) e Alina Suplicante (1999) – hoje rejeitados pelo autor –, até Historia secreta de Costaguana, eleito por Carlos Fuentes (2011) um dos romances canônicos da literatura hispano-americana de inícios do século XXI. Um ano antes, num dossiê sobre a Colômbia elaborado pela revista

Nuova Prosa (Milão, Greco & Greco editori), Quesada Gómez destacava a obra de Vásquez como um exemplo do desapego das gerações atuais em relação à terra em que nasceram. Entre os pontos de ruptura com as gerações anteriores – notadamente a do boom da literatura

2 Os três livros estudados na tese foram editados no Brasil:

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hispano-americana – está o abandono de projetos de busca identitária, nacional ou latino-americana, já que as identidades são cada vez mais assumidas como múltiplas e alheias aos apelos homogeneizantes dos Estados-nação. Também merecem menção o artigo “Le recit cannibale: Historia secreta de Costaguana, de Juan Gabriel Vásquez”, de María Angélica

Semilla Durán (Universidade Lumière Lyon 2), publicado em uma coletânea destinada a homenagear a professora Milagros Ezquerro3, e o primeiro colóquio dedicado exclusivamente a Juan Gabriel Vásquez, realizado em outubro de 2015 na Universidade Paul Valéry, em Montpellier (França). O evento teve apresentações de 20 pesquisadores – a maioria europeus

–, além de uma conferência do próprio Vásquez.

Na Colômbia, uma das interessadas na obra de Vásquez é a professora da Pontificia Universidad Javeriana Luz Mary Giraldo, que, além de abordar a obra do autor em artigos, incluiu algumas páginas sobre Los informantes, analisando sobretudo a identidade híbrida dos imigrantes alemães, em seu livro En otro lugar: migraciones y desplazamientos en la narrativa colombiana contemporánea (Bogotá, 2008). Ricardo Carpio Franco, da Universidade de Cartagena, publicou artigo na revista digital Espéculo, ligada à Universidade Complutense de Madri, sobre história e ficção em Historia secreta de Costaguana – aspectos também abordados por Pablo Montoya, em fragmentos do livro Novela histórica en Colombia: 1988-2008. Entre la pompa y el fracaso (Medellín, 2009). Aparentemente, o segundo romance da trilogia é o mais estudado de Vásquez, objeto também de apresentações nas duas últimas edições das Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana (Jalla)4.

Longe de querer ser exaustivo, este panorama reforça a importância do tema desta tese, realçado pela ausência de outros estudos sobre a obra de Vásquez no Brasil. Além disso, as duas questões que norteiam a leitura – o deslocamento e a memória – merecem atenção cada vez maior do meio acadêmico, que as reconhece, de maneira geral, como indispensáveis para compreender a literatura e a cultura contemporâneas. A memória em situações de trauma, um dos temas de Los informantes, foi, por exemplo, um dos eixos do projeto temático

“Escritas da Violência”, que reuniu, de 2006 a 2010, 17 pesquisadores de nove universidades

brasileiras e estrangeiras, sob a coordenação de Márcio Seligmann-Silva, da Universidade de Campinas (Unicamp). Problemas ligados às mobilidades culturais e às poéticas da memória,

3

Hommage à Milagros Ezquerro. Theorie et fiction. Editado por Michèle Ramond, Eduardo Ramos-Izquierdo e Julien Roger.México/Paris: Rilma 2/ADEHL, 2009.

4

ROJAS, Vivian; RUIZ, Olga Lucía y VELASCO, Mauricio: T es ovelas olo ia as e t e la histo ia la fi ión.

La a oza de Bolíva , El i e del siglo e Histo ia se eta de Costagua a . I : Jalla . Cali. RENDÓN, Ef aí . La e o st u ió del elato histó i o e Histo ia se eta de Costagua a , de Jua Ga iel Vás uez o o

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por sua vez, vêm tendo destaque no grupo de trabalho (GT) “Relações literárias interamericanas”, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguísticas (Anpoll), do qual participo, desde 2012, como convidado. Com mais de 30 pesquisadores ligados às literaturas das quatro principais línguas das Américas (inglês, espanhol, francês e português), o GT tem como um dos princípios romper com as concepções mais rígidas de literaturas nacionais e estabelecer o comparatismo entre os estudos literários de todo o continente. Estes esforços têm sido empreendidos em eventos, orientações de trabalhos de pós-graduação e nas diversas publicações produzidas até agora pelo grupo, como os livros Entre traços e rasuras: intervenções da memória nas escritas das Américas (2013), organizado por Elena Palmero González e Stelamaris Coser; Conceitos de literatura e cultura

(2005, 1ª edição), organizado por Eurídice Figueiredo; Dicionário de figuras e mitos literários das Américas (2007), organizado por Zilá Bernd, e Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010), também organizado por Bernd. Atualmente, está no prelo um dicionário de conceitos sobre memória, com cerca de 40 verbetes vinculando a memória a diversos temas e áreas do conhecimento. A obra, organizada por Elena Palmero González e Stelamaris Coser, está sendo editada pela EdUFF, com financiamento da FAPERJ e publicação prevista para 2016.

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As inúmeras formas de mobilidade que marcam a história da literatura hispano-americana – viagens, emigrações, exílios, diásporas, nomadismos, entre outras – levaram-me a adotar um conceito abrangente de deslocamento (PALMERO GONZÁLEZ, 2010ª), que abarca todas essas variedades e inclui acepções que inclusive prescindem da movimentação física, como a mobilidade linguística, o deslocamento discursivo (ou seja, como lugar de enunciação) e o deslocamento como paradigma crítico e historiográfico para a abordagem da literatura hispano-americana. Meu interesse central, contudo, está nos deslocamentos contemporâneos – e, especialmente, nos movimentos definitivos ou mais duradouros, como o dos escritores que, voluntariamente, instalam-se fora de seus países, como fez Juan Gabriel Vásquez durante 16 anos.

Minha aproximação teórica do deslocamento tem como principal referencial a antropologia e a crítica cultural contemporânea. Para dimensionar o fenômeno na atualidade e realçar suas particularidades, tomo como base os estudos de James Clifford (1997), Arjun Appadurai (1996), Stuart Hall (2003) e Abril Trigo (2003). Para abordar o deslocamento como lócus de enunciação, valho-me de Hugo Achugar (2006) e, ao evocar aspectos políticos e mercadológicos no tom e nas movimentações dos escritores, recorro a Josefina Ludmer (2010), Lidia Santos (2013) e Jorge Volpi (2009).

As articulações de memória e deslocamento respaldam-se novamente em Abril Trigo (idem), complementado por Fernando Aínsa (2010) e Aníbal González (2012); as reflexões sobre esquecimento, lembrança e perdão, cruciais para a análise de Los informantes, baseiam-se na filosofia de Paul Ricoeur (2007), com aportes de Jeanne Marie Gagnebin (2006); as discussões sobre a memória testemunhal são balizadas em Beatriz Sarlo (2005) e Ricoeur (idem); as questões ligadas à memória nacional têm como principal referência Hugo Achugar (idem) e os comentários sobre a valorização da memória partem, em grande medida, do panorama descrito por Andreas Huyssen (2000).

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Como diz Le Goff, “toda história é uma história contemporânea [...] porque suas consequências ainda mexem conosco e estão sempre presentes, reinterpretadas à luz do

presente” (1998, p.121).

A tese está dividida em cinco capítulos. O primeiro propõe uma introdução, predominantemente teórica, sobre os temas do deslocamento e da memória, analisando o interesse que despertam hoje e sua presença ressignificada na literatura hispano-americana. Embora a figura do escritor deslocado jamais tenha saído do cânone literário da região – desde, pelo menos, os Comentarios reales, do Inca Garcilaso de la Vega (1606) –, nunca a experiência de estar fora foi vivida com tanta naturalidade. Isso aparece nos relatos ligados à memória que – conjurando “o fantasma de um Alzheimer coletivo” (ACHUGAR, 2006, p.168) – proliferam dentro e fora da América Latina desde o fim do século XX. Segundo Fernando Aínsa (2010) e Aníbal González (2012), ao recriarem na ficção os países que deixaram para trás, os escritores em deslocamento se mostram hoje imunes a qualquer tipo de nostalgia – sentimento que, apesar do cosmopolitismo que celebraram, ainda esteve presente entre os autores do boom, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Neste sentido, a obra de Vásquez – carregada de críticas à Colômbia, de personagens deslocados e de conexões com a história mundial – é um exemplo expressivo dessa nova postura em relação à nação, além de exibir, com intensidade acima da média, um interesse em refletir sobre a memória, outra característica da literatura contemporânea.

No segundo capítulo, mostro que os temas da memória e, principalmente, do deslocamento já estão presentes nos três primeiros livros de Vásquez: os já citados romances

Persona e Alina suplicante e o livro de contos Los amantes de todos los santos (2001). Neles, a começar pelos textos de orelha, Vásquez busca se posicionar como um escritor que escreve de fora e experimenta de outra forma o deslocamento. Nessas obras, longe da excelência que caracterizaria a trilogia, despontam elementos que se tornariam constantes, como as tensões entre pais e filhos e a solidão dos protagonistas.

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uma vigorosa reflexão sobre o ato de rememorar, colocando em xeque desde o narrador jornalista às testemunhas que tornam possível o seu relato.

O quarto capítulo tem como tema Historia secreta de Costaguana, romance em que a postura crítica de Vásquez transcende o campo da memória e chega à escrita da história e suas relações com a ficção. Em um tom que oscila entre a farsa, a ironia e a paródia, o personagem narrador, José Altamirano, conta sua vida – e, por extensão a história da Colômbia no século XIX – questionando, principalmente, o discurso e os métodos historiográficos. Questiona-se, por exemplo, sobre o espaço que deve dedicar aos acontecimentos. Ou sobre a conveniência, para fins estilísticos, de alterar ligeiramente alguns dados. Na acusação que faz a Joseph Conrad – de roubar sua história para escrever Nostromo – emerge um dos temas que abordarei no capítulo: as fronteiras difusas entre história e ficção.

A análise da trilogia é concluída no quinto capítulo, dedicado a El ruido de las cosas al caer. No livro, vencedor do Prêmio Alfaguara (2011) e do IMPAC (2014), Vásquez volta a articular o passado recente com o mais remoto, buscando explicações para a violência que assolou a Colômbia nas últimas décadas. Além de, mais uma vez, colocar um personagem deslocado como determinante para as revelações da trama, o romance reforça os principais pontos da poética da memória criada nas obras anteriores. Novamente, a história do país é acessada pela trajetória de uma família, que se desmantela depois que o pai – um piloto de avião que trabalhava para traficantes – é preso em uma tentativa frustrada de entrar com cocaína nos Estados Unidos. Mais uma vez, a reconstrução memorial depende do empenho do protagonista: afetado pelo passado, é ele que vai atrás de informações, ouve pessoas, vasculha documentos privados e – nas inevitáveis lacunas – utiliza a imaginação para complementar ou elucidar os fatos. E, como em todos os demais romances, não há vida privada, por mais

reclusa e prudente, capaz de se manter incólume à ação dos “grandes acontecimentos”.

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I DESLOCAMENTO E MEMÓRIA NA LITERATURA

HISPANO-AMERICANA CONTEMPORÂNEA

1.1Deslocamentos: releituras

Imaginemos um aluno de Letras que, com a ementa da disciplina em mãos, queira pesquisar um pouco sobre os autores que lerá no curso de literatura hispano-americana. Considerando um programa bastante plausível (o Inca Garcilaso de la Vega, Sor Juana Inés de la Cruz, Andrés Bello, Esteban Echeverría, Rubén Darío, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Roberto Bolaño), o aluno se surpreenderá com o fato de que, com exceção de Sor Juana (que se moveu apenas pelos domínios da Nova Espanha), todos os escritores previstos passaram parte importante da vida – às vezes a mais fecunda – fora da América Latina. A situação não mudaria muito se o professor privilegiasse outras leituras (por exemplo: Simón Bolívar, Domingo Faustino Sarmiento, José Martí, Oliverio Girondo, Gabriel García Márquez e Ricardo Piglia). Em qualquer abordagem panorâmica, o deslocamento dos escritores aparecerá como uma condição permanente da literatura hispano-americana.

Os motivos, naturalmente, variam conforme a época e o autor. Se no romantismo e no neoclassicismo predominaram os exílios políticos – já que os grandes nomes da literatura eram também figuras de proa na política –, no modernismo e na vanguarda as viagens significaram um rito de formação artística, um aggiornamento na modernidade que tinha Paris como sede. O próprio hábito de viajar, como lembra Jacinto Fombona (2005), foi cada vez mais sendo visto como fértil para a literatura, e a escrita se tornou um motivo e não só uma decorrência dos deslocamentos. A busca de mercado, de novas possibilidades de publicação, também se impôs desde cedo como um fator determinante. Numa crônica publicada no La Nación e incluída no livro España contemporánea (1901), Rubén Darío já se referia ao

“sueño rosado de un escritor hispano-americano tener un editor español” (apud FOMBONA, p.199).

A atualidade desse desejo, assim como a continuidade dos deslocamentos, é evidenciada nos eventos e coletâneas que propõem oferecer um panorama da literatura produzida pelas novas gerações. Dos 16 hispano-americanos selecionados para a antologia

Los mejores narradores jóvenes en español, da revista inglesa Granta (2010), oito estão radicados fora da América Latina5. Da mesma forma, dos 39 escritores com menos de 39 anos considerados promissores no festival Bogotá 39, realizado em 2007, pelo menos 15 viveram fora da região nos últimos anos. A maioria se divide entre os Estados Unidos e a Espanha,

5

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atraídos pelo mercado editorial e a oferta de outras atividades ligadas à literatura, como a investigação acadêmica e a colaboração em suplementos literários. Como nota o mexicano Jorge Volpi – um dos 39 escolhidos em Bogotá –, apesar do fortalecimento de algumas editoras independentes (principalmente no México e na Argentina), a indústria editorial latino-americana continua tímida em relação aos conglomerados instalados na Espanha (alguns deles integrados a gigantes globais, como a Alfaguara, comprada pela Penguin Random House). Diante disso, Volpi – que morou em vários países, entre eles a Espanha – considera que, para um escritor hispano-americano, “publicar nas editoras espanholas não significa uma invasão bárbara ou um ato de traição, mas a única forma de escapar de sua

gaiola nacional e de ser lido nos demais países da região” (VOLPI, 2009, p. 157-158, tradução nossa).

Embora levante várias questões importantes – como os condicionamentos de uma literatura voltada majoritariamente para um público externo –, não nos interessa aprofundar aqui este aspecto pragmático do deslocamento, que Lidia Santos (2013) definiu como

“cosmopolitismo de mercado”. Analisando particularmente a inserção de latino-americanos no universo editorial dos Estados Unidos, Santos identificou uma inversão das etapas geralmente previstas no processo de internacionalização dos escritores. Antes, segundo ela, este percurso começava pelo sucesso interno, desdobrava-se para o reconhecimento na Europa e culminava com a entrada do escritor nos circuitos internacionais de vendas de livros. Hoje, se o autor publica nos Estados Unidos, consegue pular as etapas que, no passado, teria de cumprir para ter seu livro traduzido. “Sem passar pelo cânone nacional, já nasce, ou sonha

nascer, „cosmopolita‟”, afirma a professora (p.290, tradução nossa).

Concentremo-nos, no entanto, em outras diferenças entre o fenômeno dos deslocamentos hoje e em outros momentos da história. A primeira delas é a magnitude. Mesmo sem apresentar estatísticas, estudiosos dos deslocamentos afirmam que os movimentos migratórios, por mais que existam desde as origens da humanidade, atingiram níveis sem precedentes nas últimas décadas. Abril Trigo (2003, p.41) afirma que o aprofundamento da globalização intensificou um crescimento iniciado no fim do século XIX com a corrida imperialista, a modernização dos meios de transporte e os excedentes de mão de obra resultantes das inovações industriais.

Neste contexto, a percepção de um mundo transnacional (uma das marcas do capitalismo financeiro) tornou-se cada vez mais difundida, e não apenas pelos fluxos humanos vazando fronteiras, mas também pela formação de blocos políticos supranacionais como a

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nacional”, em um mundo cujo centro cultural está “em toda parte e em lugar nenhum”. Isto

não significa o esgotamento dos Estados-nação, mas sua subordinação, em vários aspectos, a

operações globais mais amplas. A globalização cultural, diz Hall, é desterritorializante. “Suas compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços

entre a cultura e o lugar” (idem).

As tecnologias de transporte e comunicações, efetivamente, geram experiências radicalmente novas. Em livros publicados na década de 1990, quando a internet engatinhava e não havia Skype (2003), Facebook (2004), You Tube (2005) nem WhatsApp (2009), James Clifford (1997) e Arjun Appadurai (1996) destacavam formas de conexão que, já na época, subvertiam as noções de distância. Clifford dava o exemplo de cidades que, separadas por milhares de quilômetros, viviam relações de fronteira, graças à circulação de pessoas, dinheiro, mercadoria e informação. Appadurai, por sua vez, mencionava os trabalhadores turcos que, de seus apartamentos em Berlim, assistiam a filmes rodados na Turquia, e os motoristas de táxi paquistaneses que, circulando pelas ruas de Chicago, escutavam sermões de mesquitas do Paquistão em cassetes enviados por amigos e parentes.

Possibilidades como essas – que se multiplicaram e sofisticaram nos últimos anos – atenuam a ruptura que, mesmo em movimentos voluntários (como os que privilegiamos nesta tese), sempre ocorre em maior ou menor medida na experiência do deslocamento. Hoje, o

que se vive está mais próximo de uma simultaneidade, um “estar dentro e fora ao mesmo tempo”, como define Stuart Hall (idem). Além disso, graças aos meios de comunicação de

massa – que fomentam, juntamente com os movimentos migratórios, o que Appadurai chama

de “trabalho de imaginação” –, a subjetividade contemporânea já é permeada de referências a outros lugares, de forma que quem não saiu de seu país frequentemente pensa em fazê-lo, repensando os vínculos com o lugar de nascimento.

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deixado.6 Embora seja impossível generalizar, o sujeito deslocado de hoje tende a ser menos rígido em suas negociações identitárias, pois antes mesmo de partir costuma se mostrar mais maleável.

Considerando as reflexões teóricas que, desde a década de 1980, colocaram em crise a ideia de nação e identidade nacional, Claudia Ferman (1997) aponta a insuficiência do termo

“exílio”, pois se baseia, justamente, numa suposta estabilidade dessas duas categorias. O

exilado, observa Ferman, é aquele cuja identidade não varia nos processos de translado e que

não se mobiliza no movimento transnacional de que participa. “A categoria de „exílio‟ dá muito pouca conta da permanente instabilidade de nossas identidades”, resume (p.7, tradução nossa).

Um conjunto expressivo de escritores latino-americanos vive hoje o deslocamento despojado de conceitos monolíticos de identidade. O posicionamento híbrido, flagrante em tantas narrativas, é assumido com desenvoltura quando falam sobre a decisão de se estabelecer fora de seus países. No discurso que proferiu ao receber o prêmio Rómulo Gallegos de 1999 (ou seja, quatro anos antes de morrer), o chileno radicado em Barcelona Roberto Bolaño, que também morou vários anos no México, afirmou:

[…] a mí lo mismo me da que digan que soy chileno, aunque algunos colegas chilenos prefieran verme como mexicano, o que digan que soy mexicano, aunque algunos colegas mexicanos prefieren considerarme español, o, ya de plano, desaparecido en combate, e incluso lo mismo me da que me consideren español, aunque algunos colegas españoles pongan el grito en el cielo y a partir de ahora digan que soy venezolano, nacido en Caracas o Bogotá, cosa que tampoco me disgusta, más bien todo lo contrario. Lo cierto es que soy chileno y también soy muchas otras cosas (BOLAÑO, 1999).

Improváveis em outros tempos, declarações como essa se proliferaram nos últimos anos. O escritor barranquillero Julio Olaciregui, estabelecido em Paris há mais de duas décadas, define-se, por exemplo, como “pós-colombiano” (QUESADA GÓMEZ, 2011, p.34). O argentino Rodrigo Fresán, que vive em Barcelona em 1999, diz que sua pátria é sua biblioteca7. O peruano Fernando Iwasaki, há 26 anos em Sevilha, afirma que, para ele, não existe literatura espanhola nem literatura hispano-americana, somente literatura em espanhol (CORRAL, 2004, p.28). Jorge Volpi – que, como dissemos, viveu em vários países – observa o seguinte sobre os autores hispano-americanos nascidos depois de 1960: “Embora nenhum

6

Em sua obra Em estado de memória, publicada originalmente em 1990, Tununa Mercado comenta essa

esist ia, ita do p ofissões de f si ples e te pat iotei as e t e os e ilados a ge ti os na Cidade do México, como manifestações com a bandeira do país durante a Copa do Mundo e a Guerra das Malvinas (MERCADO, 2011, p.38; edição brasileira com tradução de Idelber Avelar).

7

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deles renegue abertamente sua pátria, trata-se agora de uma mera referência autobiográfica e

não de uma denominação de origem” (VOLPI, 2009, p.168, tradução nossa).

Essas afirmações mostram que, para esses autores, mais que uma circunstância geográfica, o deslocamento é assumido como um lugar de enunciação – ou seja, um lugar ao

mesmo tempo “verdadeiro e imaginado, concreto e desejado, histórico e ficcional”, como define Hugo Achugar (2006, p.19). O ensaísta entende o lugar como um posicionamento identitário, lembrando que o lugar de onde se fala (ab situ) nem mesmo precisa ter um caráter geográfico. Assim, o que esses escritores expressam é um desejo de distanciamento duplo – físico e discursivo – de sua nação de origem.

Esta declaração de desprendimento aparece em dois conhecidos manifestos de escritores hispano-americanos da década de 1990: o prefácio da antologia de contos McOndo

(1996), organizada pelos chilenos Alberto Fuguet e Sergio Gómez, e o Manifesto Crack, apresentado no mesmo ano por cinco escritores mexicanos: Jorge Volpi, Eloy Urroz, Ricardo Chávez Castañeda, Pedro Ángel Palou e Ignacio Padilla8. Nos dois documentos, os grupos buscam se diferenciar da literatura produzida pela geração do boom e rechaçam, sobretudo, os estereótipos perpetuados por pastiches do realismo mágico. Uma reivindicação dos signatários é, precisamente, a de ambientar suas narrativas em qualquer época histórica e em qualquer lugar do mundo, retomando uma defesa feita mais de 40 anos antes por Jorge Luis Borges em

“El escritor argentino y la tradición”.

De fato, um panorama da produção literária dos últimos 20 anos mostra itinerários incomuns para a ficção hispano-americana. Um exemplo é o volume de contos Microbios

(2006), do argentino radicado em Paris Diego Vecchio, que escolhe lugares como Edmonton (Canadá) e a ilha de Fyn (Dinamarca) para histórias já por si singulares, que mesclam a temática médica com a literatura. Com exceção de uma trama passada na Patagônia, não há no livro de Vecchio nenhum elemento que o associe a seu país de origem. Caso parecido é o do peruano radicado nos Estados Unidos Carlos Yushimito, que, sem jamais ter vindo ao Brasil, publicou uma série de contos ambientados em favelas cariocas e outros rincões do país (um deles inspirado na vida de Virgulino Ferreira, o lendário Lampião). Não por acaso, a diáspora foi tomada como eixo da antologia da narrativa argentina organizada em 2010 por Luis Gusmán. Alargando noções identitárias e extrapolando limitações temáticas e territoriais, a seleção de Gusmán incorpora, entre outros exemplos, a nipo-americana Anna Kazumi Stahl,

8 O manifesto foi lido pela primeira vez em agosto de 1996 no lançamento conjunto de romances dos cinco

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que nasceu e cresceu nos Estados Unidos e foi para Buenos Aires aos 25 anos para aprender o idioma em que escreve, o castelhano.

Mas, apesar desses exemplos – que poderiam ser acrescidos de inúmeros outros –, a maioria dos escritores acaba escrevendo sobre os países que deixaram para trás, seguindo uma tradição antiga que remonta pelo menos ao século XVII, quando o Inca Garcilaso de la Vega publicou seu clássico sobre a civilização incaica, Los comentarios reales, 45 anos depois de se mudar do Peru para a Espanha. A grande diferença, segundo Aníbal González (2012), é que hoje, pela primeira vez, os autores falam de seus países sem nenhuma inflexão nostálgica, elemento que até mesmo no boom, com todo o cosmopolitismo que o caracterizou, esteve presente em muitas narrativas, ainda que de forma “reflexiva”, conforme define o crítico.

Es cierto, como ha recordado Jorge Volpi, que a los autores del boom se les acusó inicialmente de ser cosmopolitas y desarraigados, pero no es menos cierto el hecho de que sin la gravitación de esa nostalgia reflexiva que tiende a desembocar en lo nacional no se entienden a plenitud ni Rayuela ni la mayoría de las demás obras maestras del Boom: ni los remordimientos mexicanos de Artemio Cruz en La muerte de Artemio Cruz, ni los recuerdos ardientes de La Habana nocturna de Tres tristes tigres, ni las añoranzas del Caribe colombiano en Cien años de soledad, ni el dolor y el placer de una adolescencia limeña en La ciudad y los perros. La memoria individual de cada uno de estos autores está marcada y enmarcada por la armazón colectiva de una memoria social a la cual estos autores tienden a entregarse, como si – a pesar de sus exilios involuntarios y expatriaciones voluntarias, o tal vez a causa de estos mismos – ellos sufrieran del temor infantil de la separación de la madre, que es también la „madre patria‟ (GONZÁLEZ, 2012, p.88).

Note-se também que, entre os escritores do boom, unidos por mais de uma década em torno da Revolução Cubana (1959) e de outros projetos socialistas, como o de Salvador Allende no Chile, havia uma causa de emancipação política da América Latina, que envolvia a literatura no propósito de afirmar uma identidade regional. Tida por alguns críticos como uma das marcas do fenômeno do boom, essa mobilização tem um exemplo no discurso de García Márquez no recebimento do Prêmio Nobel, em 1982. Na ocasião, vestindo um típico traje caribenho, o escritor pediu que se respeitassem os caminhos trilhados pela América Latina em busca de uma identidade própria.

Pues si estas dificultades nos entorpecen a nosotros, que somos de su esencia, no es difícil entender que los talentos racionales de este lado del mundo, extasiados en la contemplación de su propia cultura, se hayan quedado sin un método válido para interpretarnos. Es comprensible que insistan en medirnos com la misma vara con que se miden a sí mismos, sin recordar que los estragos de la vida no son iguales para todos, y que la búsqueda de la identidad propia es tan ardua y sangrienta para nosotros como lo fue para ellos (GARCÍAMÁRQUEZ, 2010, p.26).

O uso da palavra “esencia”, que mostra uma concepção de identidade raramente

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discurso habitualmente proferido pelos autores que começaram a publicar nas últimas três décadas. Nestes, como nota Catalina Quesada Gómez (2011, p.35), a busca de uma identidade coletiva tem sido cada vez mais substituída pelo esforço contrário de desmantelar a ideia de nação como comunidade coesa e homogênea.

Para Josefina Ludmer (2010), o tom antinacional da literatura latino-americana foi particularmente forte nos anos 1990, devendo-se à influência dos projetos neoliberais que se alastraram pela região, propondo a reformulação dos Estados mediante programas de privatização e desnacionalização. Ludmer cita obras que, exacerbando o tom crítico, fazem uma verdadeira diatribe contra os países de seus autores. É o caso de La virgen de los sicarios

(1994), do colombiano Fernando Vallejo, Contra o Brasil (1998), do brasileiro Diogo Mainardi, e El asco. Thomas Bernhard en San Salvador (1997), do salvadorenho Horacio Castellanos Moya. Todas, segundo Ludmer, convergem na acidez com que investem, numa atitude profanatória, contra a identidade nacional e cultural desses países. Compartilham também o lugar de enunciação dos narradores, personagens que vivem ou viviam fora e agora têm de suportar, penosamente, o retorno ou a breve estada em um ambiente que já não toleram.

Nossa voz antipatriótica está e não está territorialmente na nação: está fora-dentro, e não só porque vem de fora por um tempo. Está fisicamente e linguisticamente e provisoriamente dentro, mas está intelectualmente fora em relação ao território da nação. Separa o olho da língua: olha o país a partir do primeiro mundo e o diz em uma voz interior latino-americana. A posição fora-dentro (neste caso da nação) é uma posição central no presente e nas políticas territoriais. Implica ver as nações latino-americanas a partir do primeiro mundo (a partir de fora e de outro território nacional), e dizê-lo aqui mesmo, na língua de dentro. E assim se estabeleceu a política de desnacionalização dos anos 1990 na América Latina (LUDMER, 2010, p.163, tradução nossa).

Ludmer identifica nessas obras uma atitude performática que põe em cena um discurso exaltado que já impregnava a atmosfera privatista dos anos 1990, vociferando e amplificando as injúrias que se diziam em surdina. “A literatura é como um eco múltiplo, deformado e monstruoso de algo ouvido e escrito que se quer duplicar e que aparece como ficcional e real

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Em “Elogio da profanação”, incluído no livro Profanações (2007), Agamben diz que a profanação, ao tornar profano o que é sagrado, restitui algo ao uso comum dos homens, retirando da esfera religiosa e sacra em que se achava limitado. De acordo com o filosofo, a religião subtrai do uso comum lugares, coisas, animais ou pessoas, deslocando-os para uma esfera à parte: toda separação contém um núcleo religioso e não há religião sem essa separação. Agamben distingue secularização de profanação. A secularização limita-se a deslocar algo de um lugar para outro, deixando intactas as forças (por exemplo, a secularização política dos conceitos teológicos). Já a profanação implica a neutralização do que se profana: depois de profanado, o que estava separado perde sua aura e é restituído ao uso comum. Trata-se de duas operações políticas: a primeira está ligada ao exercício do poder, enquanto a segunda desativa os dispositivos do poder e restitui ao uso comum o que havia sido confiscado. A criação de um novo uso, segundo Agamben, só é possível desativando o uso anterior, tornando-o inoperante.

Apropriando-nos da definição do filósofo, podemos entender a profanação de uma nação como, possivelmente, a tentativa de restituí-la ao uso comum – ou, em outras palavras, refundá-la sob um paradigma democratizante. Essa compreensão vai ao encontro do esforço para se instaurar uma “memória democrática” que Hugo Achugar (2006, p.160) identifica na América Latina das últimas três décadas. De acordo com o autor, após um longo período de regimes autoritários, manipuladores, excludentes, há hoje na região a busca por uma memória e uma história inclusivas, em que caibam não apenas os presidentes, os generais, os latifundiários, mas todos os setores da sociedade.

Na avaliação de Achugar, longe da derrocada, os Estados-nação passam por uma redefinição, norteada, entre outros fatores, pelo enfrentamento à concepção homogeneizante que prevalecia no século XIX. Hoje, segundo ele, predomina no âmbito acadêmico a ideia da nação como “uma espécie de cenário-processo onde múltiplos sujeitos sociais representam sua leitura” (p.156). Ou, na definição de Prasenjit Duara, um espaço em que diferentes projetos nacionais se enfrentam e negociam entre si (p.157). Achugar destaca o desafio que é

pensar a categoria de nação “como lugar simbólico de um nós não uniforme, mas sim inclusivo e respeitoso da diversidade” (p.156).

1.2 Lembrar à distância

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privilegiada. Muitos dos escritores que produzem em situação de deslocamento dizem que a distância do país natal ajudou a dar-lhes uma visão mais nítida da realidade que deixaram. Mario Vargas Llosa (2009, p.365), por exemplo, declarou que só descobriu a América Latina quando se mudou para Paris na década de 1960. Entre os autores mais jovens, manifestações desse tipo continuam frequentes.

Mas há, de fato, a perspectiva de uma visão mais lúcida para quem, de longe, lança os olhos sobre o país deixado? Esta hipótese é corroborada por um estudo de Abril Trigo (2003) que, partindo de um trabalho etnográfico com uma comunidade de uruguaios nos Estados Unidos, sugere uma propensão questionadora na memória de indivíduos que vivem em situação de deslocamento. Trigo argumenta que, ao mudar de país, os sujeitos sofrem uma fratura identitária que os leva a empreender, de maneira quase imperceptível, um movimento de resgate e reciclagem de memórias culturais até então soterradas na memória histórica e no imaginário social da nação deixada. Uma das principais consequências é o surgimento de novas formas de olhar a comunidade nacional – formas alternativas que conseguem se desvencilhar da ação homogeneizadora da memória histórica, incorporar diferenças antes asfixiadas e colocar em xeque os pilares do imaginário social.

Para explicar o funcionamento do imaginário social, Trigo recorre ao conceito de interpelação ideológica proposto por Louis Althusser (1971; 1972). Assim como a ideologia, o imaginário social é sustentado pelo prazer que provoca no indivíduo – o prazer do pertencimento, o prazer que une os membros de uma comunidade em torno de uma fantasia coletiva. Discernir o que há de falacioso nos símbolos, mitos e valores sobre os quais repousa a ideia da nacionalidade é geralmente mais difícil para o sujeito que permanece sempre no mesmo país, nutrindo sua identidade dos atributos que lhe renovam, a cada dia, a convicção de integrar uma coletividade. Da mesma forma, enxergar e denunciar as imposturas da memória histórica – ou seja, da memória transmitida nas narrativas dominantes – tende a ser mais árduo para quem jamais se ausenta, física ou imaginariamente, da terra em que nasceu. Produzida pelos aparelhos ideológicos do Estado e guiada primordialmente por objetivos nacionalistas (TRIGO, 2003, p.98), a memória história se dirige, acima de tudo, aos indivíduos de uma nação. E, para isso, se vale de um aparato discursivo que abrange desde eventos, como aniversários, comemorações cívicas e festivais, a lugares como monumentos, museus e santuários9.

9

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Em sua dupla condição psicológica e social, a memória não é a mera repetição e recuperação das marcas do ontem, mas a construção de um passado posto a serviço de um projeto de futuro a partir das circunstâncias do presente (TRIGO, 2003, p.93). Fora de seu país de origem, com novas exigências imaginárias, os indivíduos deslocados reformulam suas

lembranças experimentando um processo de “esquecimento criativo” que os distancia, cada

vez mais, do imaginário social e da memória histórica. Trigo diz, por exemplo, que, com o passar dos anos, os migrantes entrevistados por ele praticamente deixaram de celebrar as festas nacionais do Uruguai e raramente invocam seus símbolos pátrios. A quebra desses vínculos anteriormente prazerosos deflagra uma crise identitária que provoca, entre outros efeitos, a irrupção da chamada imaginação radical, força questionadora com a qual o indivíduo, que o imaginário social quisera domesticar e reduzir a mero sujeito-súdito, afirma-se como sujeito-agente e, através de práticas antagônicas, no questionamento tenaz e persistente do imaginário social, conquista a autonomia, tornando-se mais apto a desconstruir as narrativas dominantes e sugerir novas formas de pensar o nacional (idem, p.80-85, tradução nossa).

Por indevidas que sejam as generalizações – sobretudo pelo perfil econômico e cultural radicalmente diferente da comunidade estudada por Trigo –, é impossível não identificar coincidências entre o processo descrito pelo autor e o trabalho desenvolvido por inúmeros escritores em deslocamento, que capitanearam nos últimos anos algumas das empreitadas mais arrojadas de retorno literário ao passado da América Latina. Analisando um amplo corpus de hispano-americanos, Fernando Aínsa (2010) destaca o expressivo conjunto de narrativas em que os autores reconstroem à distância, com olhar crítico e desmistificador, o país ou a cidade em que nasceram. Aínsa cita Fernando Vallejo com Bogotá (escrevendo do México), Juan Villoro com o México (escrevendo de Barcelona), Abilio Estévez com Havana (também de Barcelona), Carlos Franz com o Chile (escrevendo de Madri), entre outros tantos

que mostram que “um espaço nacional construído fora das fronteiras não só é possível, como recomendável” (AÍNSA, 2010, p.31, tradução nossa).

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Outros autores relatam situações semelhantes, como o hispano-argentino Andrés Neuman, que se mudou para a Espanha em 1991 e somente seis anos depois conseguiu escrever sobre sua cidade natal, Buenos Aires. “Para entonces, entre mi lugar de origen y yo había la distancia justa: lo conocía bien, pero había comenzado a olvidarlo y, por lo tanto, a ser capaz de imaginármelo. Sin memoria profunda no hay ficción que valga” (CORRAL, 2004, p.43).

Com frequência, mais do que matéria-prima, a memória se torna o próprio tema das obras, com seus percursos cheios de dilemas, zonas escuras e enigmas que, para além da trama, levantam questões de caráter ético, político e literário. Esta metamemória, como poderíamos chamar, aparece às vezes sutilmente, como no romance Bariloche (1998), de Neuman, em que o quebra-cabeça do protagonista representa o jogo de forças entre lembranças e esquecimento; outras vezes, porém, é uma marca permanente, com a reflexão se impondo a cada gesto do narrador, como nas obras que constituem o foco desta tese. Embora se cruzem em diferentes pontos, os três romances evocam problemas específicos que nos estimulam a uma aproximação teórica que se antecipe à análise que faremos nos capítulos seguintes.

Em Los informantes, que se defronta com a memória da Segunda Guerra Mundial na Colômbia agonizante dos anos 1990, o personagem narrador se move por um país dividido entre a lembrança e o esquecimento, a palavra e o silêncio, o desejo de perdão e a exigência de reparação. Para além dos efeitos práticos em sua investigação, essas tensões suscitam dilemas éticos e até mesmo filosóficos. Por que evocar episódios que muitos querem ver silenciados? Que benefícios pode trazer ao futuro a lembrança de conflitos, ignomínias, fatos que ainda hoje dividem os que os viveram? Pelas questões que aborda, a obra nos convida a um diálogo com o clássico A memória, a história, o esquecimento (2007), de Paul Ricoeur.

Ciente dos abusos que podem ocorrer dos dois lados – ou seja, tanto do esquecimento quanto da memória –, Ricoeur propõe a busca de uma “memória justa”, que decorreria precisamente do equilíbrio entre lembrar e esquecer. Uma premissa, segundo ele, é o empenho para não esquecer acontecimentos como o Holocausto (Shoah, no termo hebraico) e outros genocídios e crimes contra a humanidade. Jeanne Marie Gagnebin observa que o imperativo do não esquecimento – cujo propósito, lamentavelmente fracassado, é o de evitar que atrocidades semelhantes voltem a ocorrer – tornou-se central nas discussões sobre a memória desde pelo menos 1947, quando Theodor Adorno e Max Horkheimer publicaram a

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vem sendo qualificada como o “dever de memória”, conforme expressão consagrada pela historiografia francesa (HEYMANN, 2006).

A importância desse esforço é ressaltada por inúmeros fatores – psíquicos e políticos, individuais e coletivos – que se impõem no caminho da recordação. Ricoeur resume-os em três situações: a memória impedida, a memória manipulada e o esquecimento comandado.

A memória impedida é um fenômeno psicopatológico, que se dá principalmente após situações dolorosas, quando os indivíduos desenvolvem mecanismos de defesa que impossibilitam o trabalho de luto necessário para superar as perdas. A memória manipulada é

produto da história dominante (que alguns chamam de “história oficial”), a qual se vale da

inevitável seletividade de toda narrativa e suprime episódios, desloca ênfases, modifica os protagonistas, entre outras manobras. Por último, segundo Ricoeur, o terceiro grande entrave à recordação é o esquecimento comandado, instituído pelo poder público mediante instrumentos legais, como editos e decretos.

Bem antes de os Estados-nações surgirem, no fim do século XVIII, o esquecimento havia sido adotado diversas vezes como política pública para reaproximar populações divididas. Em Atenas, por exemplo, um decreto baixado em 403 a.C. proibiu a evocação dos conflitos entre oligarcas e democratas. Em 1588, o célebre Edito de Nantes, promulgado por Henrique IV, tentou sedimentar a paz entre católicos e protestantes com os seguintes termos:

“a memória dos fatos ocorridos permanecerá apagada e adormecida como coisa não ocorrida; fica proibido renovar a memória deste passado” (apud RICOEUR, 2007, p.460-461).

Além de proporem algo impossível – o apagamento deliberado do passado, o faz de conta de que nada ocorreu –, medidas como essas têm efeitos mais nocivos do que positivos sobre o futuro. Primeiro porque impedem, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, que

haja “uma reapropriação lúcida do passado e de sua carga traumática”, como diz Ricoeur

(idem, p.462). Ou seja, abortam desde o princípio os trabalhos de memória e de luto que poderiam, segundo o filósofo, possibilitar o perdão e, posteriormente, o alcance de uma

“memória feliz, apaziguada e reconciliada”. Em segundo lugar, porque limitam as possibilidades de aprendizado que os eventos traumáticos podem oferecer.

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desconsiderando a falibilidade da memória e outros obstáculos que recaem sobre a reconstrução do passado. Sarlo adverte:

Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal. E só uma caracterização ingênua da experiência reclamaria para ela uma verdade mais alta (SARLO, 2005, p. 63, tradução nossa).

A ensaísta ressalva que, para alguns momentos históricos, recomenda-se a abstenção – ou o diferimento – da aplicação de dúvidas metodológicas nos testemunhos, como nos depoimentos prestados por vítimas das ditaduras na Argentina, quando as declarações diziam

respeito não apenas a elas, mas constituíam “a matéria-prima da indignação e o impulso para

as transições democráticas” (idem, p.61). Porém, o que Sarlo nota é uma generalização da

importância dos testemunhos, que outorga até mesmo aos depoimentos corriqueiros uma aura de fidedignidade imune a qualquer questionamento. “Todo testemunho quer ser acreditado e, no entanto, não carrega em si mesmo as provas pelas quais sua veracidade pode ser

comprovada” (idem, p.47).

Estas contradições também são apontadas por Ricoeur, que cita experiências feitas pela psicologia judiciária nas quais várias pessoas assistem à mesma cena (gravada por uma câmera) e, ao relatar o que viram, dão versões não apenas divergentes entre si, mas discrepantes, em vários aspectos, do registrado pela câmera. Além dos problemas de percepção, retenção e reconstituição que esses experimentos evidenciam, os testemunhos são afetados por outros fatores, como o tempo decorrido em relação ao vivido, que pode levar ao

que Freud chamou de “elaboração secundária”, ou seja, uma remodelação do sonho (neste

caso a lembrança), a fim de torná-lo, entre outras coisas, mais coerente e compreensível. Ricoeur refuta também um dos pilares da credibilidade do testemunho: a ideia de que

estabelece uma fronteira bem definida entre realidade e ficção. “A fenomenologia da memória

confrontou-nos muito cedo com o caráter sempre problemático dessa fronteira”, diz (idem, p.172).

Essa questão reaparece, com abordagem diferente, em Historia secreta de Costaguana, romance que, mais uma vez, relata o passado com uma postura desconfiada em relação às ferramentas de que dispõe. As reflexões, no entanto, extrapolam o campo da memória e se concentram na escrita da história. Neste sentido, o livro se encaixa na categoria

de “metaficcção historiográfica” proposta por Linda Hutcheon (1988), assim como exibe

vários dos traços que levaram Seymour Menton (1993) a cunhar o termo “novo romance

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analisar esses aspectos, convém fazer um panorama, ainda que breve, do chamado romance histórico, desde suas origens, no início do século XIX, às mais recentes manifestações, que incorporaram mudanças significativas na forma de compreender a história.

Impulsionado pela crise de identidade que se seguiu às bruscas mudanças no quadro social da época, o romance histórico surgiu durante o Romantismo, quando autores como Walter Scott, Chateaubriand e Victor Hugo satisfizeram o gosto de um público que, depois dos abalos provocados pela Revolução Francesa (1789-1799), procurava encontrar no passado elementos que compensassem a falta de certezas sobre o futuro (JITRIK, 1995). Na América Latina, que também passava por uma reviravolta após a independência das antigas colônias, a chegada do gênero se deu de forma quase instantânea e logo o dotou de características próprias, como a presença de figuras históricas importantes entre os protagonistas, diferentemente do que se verificava nas narrativas europeias, que, como notou Lukács (2011), quase sempre tinham anônimos entre os personagens centrais.

Nos dois âmbitos, a ascensão da ficção histórica coincidiu com a própria consolidação do romance como o conhecemos hoje e com uma forte valorização da história, sob os auspícios do Iluminismo. Havia para isso um imaginário favorável, que nutriu a convicção de

que o romance histórico era “a culminação ou a máxima realização” do que era romancear,

como observa Noé Jitrik (idem, p.15), lembrando que, bem antes de a literatura moderna produzir histórias narradas no presente e até mesmo no futuro, a noção que prevalecia era a do relato clássico, segundo a qual o objeto a ser referido advinha sempre de um saber anterior, fosse real, imaginário ou fantástico. Desta forma, se todo romance era a narrativa de algo sabido ou acontecido, o romance histórico era o romance por excelência, já que o saber histórico – numa visão idealizada que perdurou por muito tempo – era tido como o modo mais pleno e total do saber.

O termo “romance histórico” contém um oximoro que expressa um acordo talvez

sempre violado entre duas instâncias opostas: a “verdade”, que estaria do lado da história, e a “mentira”, que se situaria do lado da ficção. Um acordo entre tais categorias, diz Jitrik (idem,

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filósofo e linguista Tzvetan Todorov (1991) propôs os termos “verdade de adequação” e

“verdade-desvendamento”. A primeira, buscada pela ciência e pela história convencional, só admite como medidas o tudo e o nada – ou, por extensão, dedica-se a verificar se algum fenômeno aconteceu realmente ou não. Já a verdade-desvendamento, perseguida por romancistas e intérpretes, toma como medidas o “mais e o menos” – ou seja, preocupa-se acima de tudo em compreender as razões de um acontecimento.

Ao analisar as transformações sofridas pelo gênero, Jitrik destaca tanto a influência de novas concepções estéticas – que renovaram o romance de modo geral – como as mudanças ocorridas na própria ideia de história. Embora não dê detalhes sobre estas últimas, podemos citar as inovações produzidas pela Escola dos Anais, na França, desde os fundadores do movimento, Marc Bloch e Lucien Febvre, até os criadores da chamada “Nova História”, entre os quais Fernand Braudel, Jacques Le Goff, Michel de Certeau e Pierre Nora. Além de consolidar uma nova postura em relação ao passado – visto não mais como um universo fechado e passível de um resgate integral, mas como algo vivo e modificável no presente –, esses intelectuais contribuíram para colocar em xeque o caráter absoluto da verdade histórica. Michel de Certeau, por exemplo, enfatizou em diversos trabalhos as estratégias narrativas que

faziam da história, tal como a literatura, “uma obra de ficção” (LE GOFF, 1982, p. 35). A história não é científica, se por científico se entender o texto que explicita as regras da sua produção. É uma mistura, é ficção científica, em que a narrativa apenas tem a aparência do raciocínio mas que também não é menos circunscrita por controles e possibilidades de falsificação. Assim se entendem as citações, as notas, a cronologia, todas as manhas que apelam para a credibilidade ou para as “autoridades”. Estes expedientes permitem suprir, por uma narratividade, o que falta em rigor. Efetivamente, esta mistura liga num mesmo texto a ciência e a fábula, as duas metades simbólicas e abstratamente distintas de nossa sociedade. (CERTEAU apud LE GOFF, 1982, p.32-33).

Na mesma direção, o historiador norte-americano Hayden White classifica os trabalhos historiográficos como ficções com pretensões de verdade. Segundo White, as

narrativas históricas são “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto

descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que

com os seus correspondentes nas ciências” (WHITE, 1994, p.98, grifo do autor).

Referências

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