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II O ESCRITOR EM BUSCA DE UM ESTILO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 37-46)

O deslocamento aparece como elemento temático e lugar de enunciação desde o livro de estreia de Vásquez, o romance P ersona, publicado quando o escritor tinha apenas 24 anos. O texto de orelha, cartão de visita do estreante, não deixa dúvidas sobre suas intenções: quer ser visto como alguém que escreve de fora, porém ressignificando a experiência extraterritorial.

Trata-se de uma obra “excéntrica” e contrária “a todos los tópicos del mundo del exilio”, informa a orelha. A trama é ambientada em Florença, mas uma Florença que não é “fruto del verismo del siglo XIX, sino de la conjetura novelesca, una ficción que le adeuda más a los catálogos de arte que a la experiencia humana de su joven y talentoso autor” (VÁSQUEZ, 1997). Da mesma forma, o personagem principal, o escritor e jornalista Javier Del Solar, “tampoco es el clásico individuo embargado por la nostalgia, sino un ser lúcido y hedonista, que vive su historia de amor en tierras europeas con gusto y lejos de los fantasmas de la añoranza”.

Esta veemente negação da nostalgia é reforçada ao longo da obra, quando Del Solar e sua companheira Helena descartam, reiteradas vezes, a possibilidade de voltar à Colômbia. Autor de um livro sobre arte e colaborador de revistas especializadas, Del Solar vai a Florença estudar “la belleza”, enquanto Helena viaja para aprender italiano. Os dois se conhecem “tristemente por un hecho tan trivial como el ser ambos bogotanos, venir ambos de esa ciudad abominable” (p.30). Helena tem saudades de casa, porém considera impensável voltar à Colômbia, sentindo-se contagiada pelo ódio de Del Solar pelo país (idem). Diferentemente dos romances da trilogia, esta aversão aqui é proferida sem detalhes, o que leva o leitor a associá-la ao trauma da violência que, aqui e ali, emerge influenciando atitudes. Sem mencionar as bombas que, nos anos anteriores, explodiram em Bogotá, o narrador nos conta que as notícias sobre o atentado à Galeria degli Uffizi – que matou cinco pessoas em 1993 – “ya no los aterraban” (p.22). Ao mesmo tempo, um simples atraso a um encontro é motivo de apreensão: “Ya estaba preocupado, regañó Del Solar a Helena. Esto no es Colombia, sabes, repuso ella: aquí no tiene por qué pasarme nada” (p.52).

A rejeição de Del Solar a seu país o leva, inclusive, a apresentar-se como espanhol – “lo que no implicaba explicaciones (p.71)” – e olhar com desinteresse ícones da cultura colombiana, como o pintor Botero (p.52). A este rechaço, contrapõe-se a volúpia com que se entrega às caminhadas por Florença, que se abre como espaço fértil e eletrizado pelo desejo. Tal como em James Joyce, Vargas Llosa e Cortázar – que têm destaque entre as inúmeras

citações da obra – o deslocamento é vivido como uma condição instigante que impulsiona a criação artística. Esta sensação é explicitada pela menção a duas obras paradigmáticas escritas parcial ou integralmente em Paris: os romances La ciudad y los perros (1962), de Mario Vargas Llosa, e Rayuela (1963), de Cortázar, que inauguraram o boom da literatura hispano- americana e marcaram a estreia dos dois escritores no gênero romance. O desejo de se filiar a essa tradição de escritores radicados na Europa aparece também no final, quando Vásquez diz que a obra começou a ser escrita em Florença, em 1995, e foi concluída em Paris, em 1996.

Joyce também é citado por seu romance de estreia, Retrato do artista quando jovem (1916), cuja influência na obra de Vásquez é evidente. Persona tem uma estrutura circular, com tempos intercalados e uma narrativa em terceira pessoa que se alterna com monólogos interiores dos quatro personagens principais: os colombianos Del Solar e Helena e os italianos Gianna Alessandri e Stefano Pozzi. A ação transcorre em três dias do outono florentino de 1993, concentrando-se numa longa noite no apartamento de Pozzi e Alessandri, quando desejos e tensões se equilibram precariamente em meio a um jogo de cartas. Namorados no passado, Alessandri e Del Solar mantêm-se perigosamente próximos, nutrindo mútua admiração que desperta sobretudo o ciúme de Pozzi, adúltero contumaz que teme comportamento idêntico por parte da esposa. Helena, por sua vez, anula-se na relação com Del Solar, a quem se entrega em jornadas inexauríveis que incluem a longa e irrestrita exibição de seu corpo. Egocêntrico, presunçoso, sexista, Del Solar é o artista do grupo, invejado por Pozzi e adorado pelas duas mulheres. Seus monólogos interiores são carregados de citações, numa incessante demonstração de saber à qual se rendem, inebriados, os três amigos. “La opinión de nadie era tan definitiva como la de ese hombre”, pensa Stefano (p.82). “Sin ti no hubiera conocido nunca a Joyce, a Proust, a Schopenhauer”, reconhece Helena (p.86). Olhando para a namorada, ele diz para si mesmo: “Yo la he creado” (p.101).

Contraponto silencioso à verborragia circundante, Helena é também a que menos se mostra, a que transmite a imagem mais distante do que verdadeiramente é. No decorrer da noite, convicta da atração de Del Solar por Alessandri, decide partir para o balneário de Viareggio, aproveitando os bilhetes adquiridos por Alessandri. Já para esses personagens, o deslocamento tem um significado que ecoará por toda a obra de Vásquez: o da possibilidade de escapar, de fugir de uma situação negativa confiando nas promessas de um novo espaço. Del Solar, ao chegar a Florença, “venía escapando” de sua “ciudad abominable” (p.30); Stefano perambula pelas ruas para não se defrontar com os fantasmas de seu casamento (p. 33); Alessandri busca superar a crise com um fim de semana em Viareggio, e Helena decide ir

ao balneário para se livrar do jugo de Del Solar. Os lugares aprisionam e infligem a dor, mas também libertam e viabilizam desejos.

Esta dupla natureza aparece também em Alina suplicante, o segundo romance de Vásquez, em que a ida a Paris deixa de ser um mero recurso de fuga e se torna o meio de realização do desejo reprimido entre dois irmãos. Algumas referências permitem situar a ação no fim da década de 1980 – provavelmente em 1988 –, quando a guerra entre o narcotráfico e o governo ainda não havia atingido o auge, mas já tinha produzido alguns dos lances mais dramáticos, como os assassinatos do ex-ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla, em 1984, e do jornalista Guillermo Cano, diretor de El espectador, em 1986. Apesar disso, praticamente não há ecos da violência entre os personagens principais. As breves menções ao tema em nada sugerem o clima de terror descrito em Los informantes e El ruido de las cosas al caer; e, longe de caracterizar uma situação histórica específica, têm um caráter vago, que as torna adaptáveis a qualquer grande cidade latino-americana: um homem chega ao hospital após levar uma facada (p.19), uma expressiva quantidade de armas é apreendida numa praça (p.119), comentários sobre a insegurança que depois se repetem, praticamente idênticos, nas ruas de Paris. Chama atenção que, num cotidiano brutal como o da Bogotá dos anos 1980, um policial se disponha a atender a uma queixa pueril, como a de um jovem inconformado por ter sido expulso de casa pelo pai.

A Colômbia do romance, portanto, por mais que tenha suas mazelas – a corrupção, a poluição, a desordem urbana –, está longe do país abominável de outras obras. São de cunho existencial e essencialmente amoroso os sobressaltos que, no vaivém de avenidas, ruas engarrafadas, restaurantes, universidades, quartéis e hospitais, acometem os personagens. São as encruzilhadas da consciência que impelem Alina duas vezes para fora da Colômbia. É a paixão pela irmã que leva Julián à sua caça. Refugiados num quarto de hotel – um dos clássicos não lugares apontados por Marc Augé (1994) –, os dois se entregam, em Paris, ao desejo que não se permitiram consumar na Colômbia. Rendem-se a isso como um destino inelutável, a emboscada final de uma conspiração como as que tramavam os deuses contra os heróis das tragédias gregas.

Publicado pela editora Norma – na época uma das maiores da Colômbia e hoje voltada exclusivamente à educação –, Alina suplicante rendeu a Vásquez as primeiras aparições nos cadernos culturais colombianos. Em sua coluna no jornal El tiempo, o principal diário do país, o jornalista Mauricio Becerra (1999) anunciava-o como “un escritor para tener en cuenta en los próximos años”, embora identificasse, em contrapeso aos elogios, alguns “resabios de escritor en proceso de madurez”. Vásquez disse a Becerra que um dos pontos de partida de

seu livro foi a leitura de A morte da tragédia, de George Steiner, que fortaleceu sua percepção de que o romance contemporâneo havia deixado de explorar a riqueza da tragédia grega. Foi nos rastros dessa tradição que ele teria escrito Alina suplicante, como a própria orelha da edição se encarrega de afirmar. Porém, por diferentes aspectos, o livro se assemelha mais a uma obra do romantismo.

Dificilmente o leitor de María (1867), do colombiano Jorge Isaacs, deixará de sentir certa familiaridade nessa história de amor proibido, nas duas viagens que separam o casal e na atmosfera que marca sobretudo o primeiro reencontro, quando Alina – a exemplo do que faz Efrain ao rever María – experimenta na solidão de seu quarto a ebulição de desejo provocada pelo contato com o irmão. Uma diferença decisiva – além do fato de serem irmãos, e não primos – é que, no romance de Vásquez, Julián consegue vencer a prostração e encontrar Alina na Europa, enquanto a heroína de Isaacs, condenada pela epilepsia, languidesce e morre antes de Efrain retornar da Inglaterra. Além disso, o comportamento de Alina é a antítese da pudicícia típica da mulher romântica. Leitora de Byron (e não de Chateaubriand, como María), Alina veste roupas sensuais, bebe incansavelmente e chega a arrancar um beijo do irmão na pista de dança de uma discoteca.

Esta aura romântica é reforçada pela voz narrativa em terceira pessoa, que mantém sem firmeza uma onisciência didática e não raro inverossímil, recordando os titubeios frequentes de alguns românticos hispano-americanos. É notável como Vásquez, do primeiro ao segundo romance, substitui um paradigma tipicamente vanguardista – expresso tanto nas referências quanto nos procedimentos que adota, como o monólogo interior e o fluxo de consciência – por uma estética conservadora que, ao buscar a clareza que faltara a Persona, acaba pecando pelo excesso, resvalando no simplismo e na puerilidade. Assim como no romance de estreia, o narrador onisciente alterna sua perspectiva entre todos os personagens principais, mas desta vez sem misturar a terceira pessoa com a primeira. Essa alternância é feita de forma brusca, prejudicando a naturalidade e a fluência da ação. O resultado, além de uma artificialidade recorrente, é a fragilidade na caracterização dos personagens, que não dispõem de substância suficiente para convencer o leitor. Caso emblemático é o comportamento de Martín, o pai dos irmãos, em relação a Julián. Ora na frieza, ora nas tentativas de aproximação, seus movimentos são inconsistentes, vazios. Como compreender, por exemplo, a súbita decisão de revelar que tem uma amante? A própria Alina, que dá título à obra, não incomodaria se fosse meramente ambígua e imprevisível – como são, em geral, os grandes personagens literários. O problema é a frouxidão com que despontam suas contradições, que emergem quase ao acaso, sem tensões que as contraponham, parecendo,

mais do que tudo, tropeços de um narrador cambaio. Exemplo disso é a confusão de sentimentos despertada pela aproximação de Virginia e Julián. Como crer no ciúme mencionado pelo narrador, se linhas acima Alina “se sintió como abrazada por la evidencia de que esta niña había terminado por enamorarse del solitario empedernido que era su hermano” (p.99).

Deparando-nos com esses problemas, é fácil entender por que, já depois de consagrado, Vásquez passou a desprezar os primeiros romances ao falar de sua obra. Ambos resistem como testemunhas indesejáveis de uma imaturidade capaz de causar desconforto no artista de hoje. Note-se que, em Persona, os mergulhos psicológicos também são insuficientes para dar profundidade aos personagens. Misturando a primeira e a terceira pessoa, o narrador percorre o pensamento de todos, mas igualmente de forma abrupta e por vezes confusa. O forte erotismo descamba para a vulgaridade, como nas diversas frases sobre ereção ou nas considerações sobre o púbis feminino, “que Del Solar recordaba oscuro y rico como um sarcófago egipcio” (p.72). As comparações, uma das virtudes da prosa de Vásquez, são frequentemente temerárias. O couro do sofá é “resbaloso como un árabe” (p.61). O tempo “nada como un perro” (p.58). Uma mulher ostenta “una sonrisa de flor mojada, de templo” (p.17). Além disso, crivadas de citações e demonstrações de erudição, as páginas de P ersona exalam afetação intelectual, ao mesmo tempo que mantêm (rivalizando com menções a Dante e Joyce) frases francamente tolas, como “Qué idioma bello, hombre. Ragazza, pizza, jacuzzi. Io so´pazzo, paparazzi” (p.52)

Seria injusto, contudo, não reconhecer os méritos do escritor precoce. Ainda mais importante é observar como despontam nas duas obras alguns elementos formais e temáticos que serão marcantes nos romances da trilogia. Em Alina suplicante, além de elemento temático, o deslocamento é assumido como lugar de enunciação pelo escritor, que faz questão de informar que concluiu a obra em Paris; além disso, no texto de orelha, Vásquez aparece morando na Bélgica, na pequena cidade de Aywalle, na região das Ardenas, cenário da maioria dos contos de Los amantes de todos los santos.

Da mesma forma, esses primeiros escritos já exibem o interesse pela memória – “esa mítica facultad de los hombres” (1997, p.72) –, assim como pela permanência do passado, evidenciada na atração de Del Solar por Alessandri e no inextinguível desejo entre Alina e Julián. A relação conflituosa com o pai, as possibilidade da linguagem, a oratória, o direito, o jornalismo, são outros elementos já presentes e que ressurgirão, amadurecidos e diversificados, no trabalho posterior de Vásquez.

Sua obra dá um salto qualitativo na coletânea de contos Los amantes de todos los santos. Com uma edição colombiana de 2001 e uma segunda edição feita na Espanha em 2008, o livro marca a estreia de Vásquez na editora Alfaguara, uma das maiores do mundo hispânico, hoje parte do conglomerado Penguin Random House. O volume reúne sete contos (cinco na edição colombiana) ambientados entre a Bélgica e a França, países em que o escritor residiu entre 1996 e 1999. Com exceção do primeiro conto, de apenas nove páginas, os relatos têm entre 18 e 43 páginas, nas quais Vásquez aprofunda temas e recursos estilísticos que caracterizarão sua obra madura.

Um aspecto singular, no entanto, é a ausência quase absoluta de referências à Colômbia, com a única ressalva do conto “Lugares para esconderse”, em que o personagem narrador tem um artigo encomendado por uma revista colombiana e é, ele próprio, provavelmente colombiano, embora não haja mais que indícios sugerindo essa possibilidade (o texto da quarta capa, porém, coloca-o taxativamente nessa condição). No mais, os contos se internam em uma paisagem alheia à América Latina, narrando as vicissitudes de belgas, franceses e indivíduos de nacionalidade incerta. O cenário principal é a região das Ardenas, onde transcorrem quatro dos sete relatos (além de parte de um quinto). Por informações extratextuais – da orelha do livro anterior a entrevistas dadas por Vásquez –, sabemos que o escritor viveu durante cerca de um ano na região, mas não há o intuito de uma caracterização documental. As Ardenas do livro, mais que um lugar específico, representam uma geografia de fragilidade e solidão, onde nem mesmo as sólidas e antigas propriedades são capazes de proteger os homens das perdas da vida e dos fantasmas do passado. Organizados rigidamente, grupos mantêm a imemorial tradição da caça, mas o desejo de pertencimento é traído pelas rupturas, pelas surpresas que vêm nem sempre do bosque, mas da escuridão dos próprios caçadores. Não há rifle que previna o fim de um casamento, um suicídio entre os amigos, uma traição dentro de casa. Não há cão suficientemente destro para farejar os acontecimentos que, como animais sorrateiros, irrompem em nossa vida para mudar-lhe o curso definitivamente.

São essas questões, de cunho fundamentalmente existencial, que Vásquez extrai do tópico da caça, tão inusitado para a literatura hispano-americana como o cenário das Ardenas, região que – diferentemente de Paris – provavelmente faz sua estreia nas letras da América Latina. Temas centrais de sua obra, como a permanência do passado e a reformulação das lembranças, amadurecem aqui e atingem, em alguns casos, a elaboração conceitual que aparecerá nas obras seguintes. Exemplo é o conto “El inquilino”, em que o casal Georges e Charlotte não consegue se livrar da lembrança do amigo Xavier, que anos antes fora amante de Charlotte e, mesmo preterido, continua a frequentar a residência do casal. Entregue ao

álcool e jamais curado do amor perdido, Xavier se suicida no meio de uma manhã de caça, e sua trágica decisão desata um aluvião de recordações em Charlotte e Georges. Este se dá conta de que o gesto do amigo modificará para sempre as lembranças que tinham dele. “Lo que más lo sorprendía era la forma en que la imagen de Xavier comenzaba a cambiar: ya esas memorias estaban viciadas por el suicidio” (2008, p.85). Xavier estará para sempre presente na memória do casal.

Era una inocencia o una ingenuidad creer que el pasado era capaz de enterrar a sus muertos. A partir de esa noche, Moré se apropiaría de una parte de la casa: sería un inquilino permanente, alguien a quien Georges vería con sólo voltear la cabeza […] (2008, p.88).

A experiência do deslocamento atravessa os contos do livro. Em quase todos, os personagens trafegam por estradas e múltiplas localidades que se alternam entre campos, longas noites e frio intenso. Mais do que um lugar, as Ardenas são um conjunto de lugares subsumidos na vastidão. Empregos, namoros, consultas médicas, compras – as atividades conectam diferentes municípios e às vezes cruzam as fronteiras nacionais, chegando à França ou à Alemanha. Excedem também os limites urbanos, imiscuindo-se no rural e contribuindo, entre idas e vindas, para a sensação de simultaneidade que marca a vida dos personagens. Mesmo aqueles que se aferram a um lugar sentem um desenraizamento, expresso não necessariamente na percepção identitária, mas na transitoriedade que constatam em suas vidas. Quase todos os títulos aludem às experiências de habitar ou deslocar-se. Em “Lugares para esconderse”, uma artista plástica viaja para a casa do pai, nas Ardenas, fugindo da angústia que o casamento lhe inflige. “Si por mí fuera, aquí me quedaba hasta el día del juicio” (p.166), ela diz ao amigo escritor, que também considera a região um refúgio. Frase quase idêntica é dita por Agatha, em “La vida en la isla de Grimsey”, quando o homem que conheceu horas antes – o imigrante Oliveira, que chegara à França quando criança – avisa que é hora de deixarem o motel: “Si por mí fuera, me quedaba aquí hasta mañana” (p.186). Solitários que se encontram casualmente – como os de “Los amantes de Todos los Santos” –, Oliveira e Agatha viajam para se distanciar do passado, da herança familiar, da perda de alguém querido, como a filha de Agatha, que se suicidou numa seita religiosa. Ela sonha com a ilha de Grimsey, na Islândia, onde o dia jamais acaba (p.188). Ele parte para Barcelona, para “vivir una vida distinta y de alguna manera liberada y lista para responder al cambio” (p.214).

Em “El regreso”, primeiro conto do livro, deslocamento e memória se entremesclam para abordar, em chave alegórica, um dos temas fundamentais da experiência da migração: a impossibilidade de retorno ao lugar de origem. O conto narra a história de Madame Michaud, mulher solitária e obcecada com o casarão em que vive desde a infância, nas proximidades de

Liège. Incomodada com os planos do cunhado em relação à propriedade – reformá-la e tornar as terras produtivas –, Madame Michaud assassina o rapaz e, por causa disso, é levada à prisão. No cárcere, que vive como “un exilio doloroso” (p.18), ela passa o tempo inteiro mergulhada num desenho que fez da casa. Trinta e nove anos depois, quando finalmente é libertada, regressa imediatamente para o casarão da infância. Porém, chegando, encontra-o de tal forma modificado – do terreno às dependências –, que é tomada por uma “confusão”, um “desnorteamento” que a faz retroceder e afastar-se da casa, depois de quatro décadas pensando obsessivamente nela.

Agradeció que el taxi la esperara aún, porque no estaba segura de ser capaz de encontrar el camino de salida entre tantos senderos nuevos que conducían a tantas nuevas dependencias, a tantas construcciones recientes que Sara había proyectado y

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