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4 A CRISE DO ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL

4.3 As estratégias de descentralização das políticas públicas

A descentralização como estratégia de ação estatal no setor das políticas sociais, destaca-se como processo constitutivo do funcionamento do Estado, organizado em novo patamar de desenvolvimento capitalista, no qual a globalização da economia, portanto, dos mercados e dos processos de produção, aparenta ser, sobretudo nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, a construção do moderno fetiche do final do século XX . Faz parte dessa estratégia de reorientação do papel das políticas sociais frente à crise de financiamento do Estado, com o objetivo de reduzir o Estado centralizador, buscando novas formas de organização das políticas sociais, com redução de gastos (ROSAR, 1997; VASQUEZ, 2003).

Consenso de Washington7, tornando hegemônica a idéia de que o Estado deveria focar sua atuação nas relações exteriores e na regulação financeira e que a estrutura seria reformada através de um processo

(...) de desregulamentação na economia da privatização das empresas produtivas estatais, da abertura de mercados, da reforma dos sistemas de previdência social, saúde e educação, descentralizando-se seus serviços, sob a justificativa de otimizar seus recursos. (SOUZA; FARIA, 2003, p. 927).

O discurso é de que esta otimização provocaria condições para uma maior eficiência, um maior envolvimento direto do poder local na captação das demandas e no controle dos gastos. Sendo assim, é correto concordar com Rosar (1997) que afirmou ser este processo a “outra face da política neoliberal de globalização dos mercados e padronização dos processos em todos os países da América Latina”.

Este processo foi estimulado pelas diversas agências internacionais, que apresentavam o processo de descentralização como uma condição para o desenvolvimento dos países de nosso continente. “Para a UNESCO e a OEA, a descentralização permitiria incorporar os grupos marginalizados. Para o Banco Mundial, sob essa ótica, poderiam ser introduzidos os mecanismos de mercado” (ROSAR, 1997, p. 111).

A autora enxerga esse processo como

(...) uma das estratégias do capitalismo para o processo de organização e funcionamento dos sistemas educacionais, contribuindo paulatinamente para a sua desconstrução, de forma particular nos países capitalistas periféricos da América Latina, sob a intervenção dos guardiães do capital: o FMI, o Banco Mundial e os organismos internacionais. (Idem, p. 106- 107).

Existe extensa produção acadêmica versando sobre o conceito de descentralização. Bassi (2001) identifica que as forças impulsionadoras e os consensos em torno da descentralização apontam para uma gestão democrática das políticas sociais, relacionando esse processo a maior participação popular. Esse otimismo não se justifica, pois a descentralização tem sido determinada por iniciativas do governo central e não por demandas

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No final da década de 1980, formulações elaboradas por um grupo de intelectuais foram sistematizadas por John Willianson, do Institute for International Economics, a serviço de instituições financeiras e do governo dos Estados Unidos. Essas formulações, que ficaram conhecidas como Consenso de Washington, deram origem ao modismo da subordinação do Estado ao mercado.

da sociedade civil, não sendo correto associar o processo de descentralização, inclusive no seu viés municipalizante, com processos de democratização e de participação popular.

Arelaro (1999) define municipalização como a “transferência de responsabilidades para os municípios com o respectivo direito de definir política, pedagógica, administrativa e financeiramente o seu ensino e o seu sistema" e desconcentração como todo procedimento administrativo-político realizado pelo Estado "que, para racionalizar e/ou agilizar as sua ações, as transferem para os municípios, mantendo, no entanto, o controle e a gestão do processo decisório” (ARELARO, 1999, p.74).

Em estudo de 1993 Draibe afirmou que descentralização é um dos eixos da estratégia de reforma do sistema de proteção social vigente frente aos ajustes econômicos dos Estados Nacionais, somando-se a focalização e a privatização. Esta autora “relaciona diretamente a descentralização e a questão da eficiência e eficácia do gasto social, uma vez que aproxima os problemas e a gestão das políticas sociais da população beneficiada, através da transferência de responsabilidades aos estados e municípios” (VASQUEZ, 2003, p. 37).

Para Rondinelli e colaboradores (1986), que desenvolveram uma classificação em trabalho financiado pelo Banco Mundial, desconcentração seria a delegação de autoridade para níveis inferiores dentro do órgão do governo central; delegação, a transferência de responsabilidade para organizações fora da estrutura burocrática regular e controladas indiretamente pelo governo central; devolução, a criação ou o fortalecimento financeiro ou legal – as unidades subnacionais do governo, cujas atividades estão substancialmente fora de controle direto do governo central e finalmente, privatização seria a transferência de atividades para a responsabilidade para empresas privadas. Esta classificação foi duramente criticada por Hevia (1991) para quem os autores tendem a identificar a centralização com a atividade estatal e a descentralização com a atividade privada, como os pólos extremos de um contínuo. Esta autora defende uma perspectiva crítica de descentralização, trabalhando com o seguinte conceito: “o grau de centralização ou descentralização em um país se define pelo grau de poder e controle social que determinados grupos ou atores sociais exercem sobre o domínio particular da atividade pública” (HEVIA, 1991, p.23).

Podemos citar a classificação oferecida por Lobo (1990), para a qual teríamos três tipos de descentralização. Da administração direta para a indireta, através da criação de empresas públicas com a justificativa de agilizar as ações governamentais. Entre níveis de governo, através da delegação de maior poder aos estados e municípios, incluindo a

dimensão financeira (redistribuição das receitas públicas) e a política-institucional (reordenamento das competências governamentais). E, por último, do Estado para a sociedade civil.

Para nosso trabalho utilizaremos a apreciação conceitual de Oliveira (1999). Este autor identifica dois processos que se desenvolveram na América Latina. O primeiro, de desconcentração, compreendida como “a delegação de determinadas funções a entidades regionais ou locais que dependem diretamente do outorgante”. O segundo, de descentralização, compreendida como o processo em que “as entidades regionais ou locais, com graus significativos de autonomia definam as formas próprias com as quais vão organizar e administrar o sistema de educação pública em suas respectivas áreas de atuação” (OLIVEIRA, 1999, p. 16). Os processos de descentralização se desenvolveram em nossa região a partir de três modalidades: regionalização, nuclearização e municipalização. A mais importante delas, a municipalização, apresenta-se em três possibilidades.

(...) o Município se encarrega de todo o ensino, em um ou mais níveis no âmbito de sua jurisdição; o Município se encarrega de parte das matrículas, convivendo no mesmo território com a rede estadual; o Município se encarrega de determinados programas (merenda escolar, transporte de alunos, construções escolares, funcionários postos à disposição das escolas estaduais, por exemplo), os quais são desenvolvidos junto à rede estadual. (Idem, 1999, p.17).

A educação foi alvo privilegiado do processo de descentralização das políticas sociais, visando para combater uma crise cujos sintomas são identificados no mal desempenho de seus programas, porque identificados com a centralização estatal. A idéia que justificava tal procedimento era a de que a piora econômica seria conseqüência da crise da educação, imputando-se às escolas a responsabilidade por resultados obtidos em avaliações externas. Para superar esse quadro são apresentadas algumas soluções, dentre elas, a reforma na estrutura e nas funções do sistema de ensino, no currículo e na formação dos professores, a descentralização administrativa e financeira e a avaliação externa (MARTINS, 2001).

Vivenciamos uma utilização de descentralização e municipalização como sinônimos. Na verdade, “(...) são processos distintos, onde o primeiro não necessariamente implica no segundo; ou seja, a descentralização pode ser realizada sem que haja transferência de recursos patrimoniais e humanos do Estado para o município”. (VASQUEZ, 2003, p. 36).

No caso do ensino fundamental, a atual política de descentralização significa a transferência da gestão do ensino do governo estadual para o governo municipal. Com esse sentido, a municipalização do ensino é, então, tomada como sinônimo da descentralização educacional. A partir da década de 70 a política para o ensino fundamental

(...) foi traçada no âmbito de projetos federais implantados sobretudo em estados do nordeste, com o objetivo de induzir a municipalização do ensino, transferindo encargos para o município, sem que se efetivasse um investimento financeiro satisfatório nessa instância. (...) Ao contrário, a União efetuou uma concentração de recursos ao nível federal, enquanto adotava a descentralização a nível do sistema educacional. (ROSAR, 1997, p. 106).

Com isso, o processo de municipalização do ensino no Brasil foi quase exclusivamente fruto de iniciativas do Governo,

(...) visando adequar o Estado aos novos modelos de racionalidade adotados pela Administração Pública, com consequente enxugamento do aparato estatal, e não resposta a reivindicações da sociedade civil interessada em participar de forma mais ativa nas escolas e nos projetos pedagógicos que ali se desenvolvem. (ARELARO, 1999, p. 65).

Os estudos dos impactos do processo de descentralização via municipalização do ensino no Brasil apontam para uma concordância de que a municipalização está sendo implementada em um contexto de "enxugamento" do poder estatal. Opera-se uma redução da máquina pública para proporcionar uma diminuição de gastos para o pagamento de compromissos com o mercado, em especial para honrar os pagamentos das dívidas externa e interna. A descentralização através da municipalização do ensino fundamental tem sido parte do Mecanismo para "enxugar" os gastos com as políticas sociais. Contudo, esse processo, ao mesmo tempo em que promove uma descentralização operacional das redes para as cidades, executa uma extrema centralização de regulamentações, diretrizes, financiamento e, principalmente, avaliações da implementação de políticas advindas dos governos estaduais e federal (GIL; ARELARO, 2004).

Não é sem motivo que Souza e Faria (2003) afirmam que a municipalização tem se tornado um processo de prefeiturização - mera transferência de atribuições somente no plano da administração-, descumprindo a Constituição Federal em relação ao regime de

colaboração.

As evidências levantadas por Rosar (1997), em exaustiva análise dos programas federais indutores do processo de municipalização, permitiram concluir que o processo de descentralização pela via da municipalização, induzida pelo governo federal, produziu um efeito desagregador das redes municipais, afetando diretamente a expansão e a qualidade do ensino. Sua análise

(...) demonstrou o quanto a política de descentralização favoreceu a concentração de recursos e de poder sob o controle dos mesmos grupos econômicos e políticos que se associam entre si em todos os níveis e setores da estrutura da sociedade capitalista que temos no Brasil e em toda a América Latina. (ROSAR, 1997, p. 138).

E que as experiências de descentralização que foram implementadas em vários países da região,

(...) evidenciaram que as relações centro-periferia reproduzem os padrões de dependência em relação ao poder central, dado que a estrutura fiscal permanece favorecendo a captação de recursos a nível central. Por outro lado, os programas de capacitação dependem de critérios financeiros e os recursos vêm decrescendo com o descomprometi mento do governo central. (ROSAR, 1997, p. 112).

Igual conclusão chegou Cunil (1999) ao estudar o processo de descentralização do ensino na América Latina, especialmente no Chile. Para a autora, a descentralização se converteu numa estratégia para promover a retirada do Estado, sendo executada em duas faces: a privatização e a municipalização. Concluiu que nenhuma das reformas de descentralização conseguiu que o acesso, a eficiência ou a qualidade da educação sejam mais equitativamente distribuídas. Os estudos informam de um aumento da iniqüidade em conseqüência da transferência da autoridade para níveis mais baixos.

De maneira que não necessariamente maiores níveis de descentralização estatal não social redundam em mais e melhores políticas sociais que ampliam os direitos econômicos e sociais e fortalecem os níveis de auto- organização política e de auto-organização social. (Idem, p. 44).

Interessa ao nosso trabalho detectar os principais fatores que determinam a aceitação ou não dos entes federados de políticas de descentralização de políticas sociais, no caso a educacional. Arretche (2000) nos oferece elementos importantes. Para a autora os fatores determinantes de um processo de descentralização de políticas sociais podem ser classificados

em fatores de tipo estrutural (de natureza econômica ou político-adminstrativa), fatores de tipo institucional e ainda fatores ligados à ação política (relação entre os três níveis de governo ou relações entre Estado e sociedade).

Por fator estrutural compreende-se a possibilidade de um governo assumir atribuições de gestão em programas sociais, o que depende diretamente de sua capacidade de gasto ou de sua capacitação político-administrativa.

É necessário também levar em conta a interferência de fatores relacionados à natureza das instituições em que se tomam as decisões e se implementam as reformas. Para isso a autora trabalha com três variáveis ligadas aos fatores institucionais. A primeira diz respeito ao legado das políticas prévias, ou seja, os processos de reforma de programas sociais são influenciados pela herança institucional dos programas anteriores, pela capacidade técnica instalada, pelos interesses ligados ao desenho anterior que operam resistência à mudança. A segunda é relativa a existência de regras constitucionais que normatizam as competências entre níveis de governo, pois estas facilitarão ou impedirão determinados desenhos. E por último, deve-se considerar a engenharia operacional das políticas propostas.

O último fator considerado pela autora é a ação política. Isso tem a ver com a natureza das relações entre Estado e Sociedade, vinculada a cultura cívica e, sobretudo, com as relações entre níveis de governo. Assim “(...) em Estados federativos, estratégias de indução de um nível mais abrangente podem ter impacto sobre a produção de políticas públicas deste último” (ARRETCHE, 2000, p. 33).