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2. O PAPEL MACROECONÔMICO DAS FAMÍLIAS E A HIPÓTESE DE

2.1. As Famílias na Visão Financeira de Minsky

Ao tratar dos aspectos financeiros das decisões dos agentes econômicos, é importante ter em vista que este tipo de discussão envolve duas dimensões, que são complementares: a do

uso e a da origem dos recursos monetários. De um lado, há decisões sobre a utilização do

dinheiro para fins de gasto e sobre a alocação da parte restante74. De outro lado, deve-se decidir sobre a origem dos recursos empregados, isto é, sobre a forma de financiamento das decisões de

uso através de recursos próprios, e/ou de terceiros. No primeiro conjunto de decisões, trata-se de

definir o quanto é necessário para atender às atividades correntes e futuras (gastos) e o quanto será destinado à acumulação temporária ou permanente (não-gastos). No segundo conjunto, a decisão é sobre em que medida o gasto é, ou pode ser, financiado com recursos próprios, e o quanto será (se for) financiado por terceiros, considerando o custo, as condicionalidades e prazos dos credores. É decidido, também, se as aplicações se restringirão à magnitude dos recursos próprios deduzidos dos gastos ou recorrer-se-á a recursos externos adicionais, de acordo com uma motivação particular do tomador de decisões.

Essa tipificação, de caráter geral, é derivada da exposição de Minsky (1975) e pode ser aplicada a qualquer agente. A exemplo do que foi visto na seção anterior, a estrutura desta abordagem se apoia na construção teórica de Keynes presente na Teoria Geral e, principalmente, no Treatise on Money75. Desse modo, todo o desenvolvimento e o resgate de conceitos destas obras – como os fatores envolvidos na função-consumo, a incerteza, as expectativas, a renda, a

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Estão considerados na denominação ―uso‖, os gastos que compõem a demanda agregada e as aplicações dos recursos restantes em qualquer modalidade. A poupança, o resíduo do gasto, per se, é um ―não gasto‖, que envolve uma decisão posterior sobre a forma em que será mantida.

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Keynes (1973, p.20-29) trata destas dimensões ao explorar a dinâmica do sistema bancário em Bank Money. Neste capítulo, transparecem noções de instabilidade e fragilidade financeiras, ainda que restritas ao ambiente bancário.

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riqueza, as poupanças e o crédito – continuam válidos e podem ser explorados de forma mais aprofundada a partir do enfoque sobre os portfólios e as estruturas financeiras constituídas pelos agentes no curso de suas decisões.

Minsky, em John Maynard Keynes, elenca três aspectos para o entendimento do comportamento da economia a partir da Teoria Geral: o ciclo de negócios, a incerteza e a

natureza do investimento. Na interpretação do autor, Keynes havia construído uma teoria para

explicar o comportamento de uma economia capitalista financeiramente sofisticada, tendo como uma de suas principais características a ocorrência de flutuações bruscas oriundas de seu próprio processo de funcionamento e que levariam à construção e superação de situações passageiras, ou estados transitórios, de operação do sistema econômico – tais como booms, crashes, fases de desaceleração, recuperação e de estagnação76.

Numa primeira interpretação, a instabilidade teria como causa a volatilidade do investimento, sendo esta a razão mais próxima da natureza mutável de cada estado transitório. Contudo, para Minsky, os processos e os aspectos que cercam a decisão de investir também seriam compatíveis com os que estão envolvidos na tomada de outras decisões de portfólio. Tal como o investimento, as demais decisões de portfólio estão sujeitas: (i) à incerteza; (ii) são de caráter expectacional; (iii) dependem de avaliações subjetivas sobre os acontecimentos e perspectivas ao longo do tempo; e (iv) estabelecem posições, através de contratos, que implicam obrigações financeiras a serem levadas para além do período corrente. Ou seja, poder-se-ia pensar, desse modo, numa causa ainda mais profunda e geral de perturbação do sistema77: a instabilidade advinda das decisões de portfólio e das interrelações financeiras que se constituem a partir da dinâmica de negócios e das relações econômicas em geral. Assim, na interpretação de Minsky, esta é uma economia: “where each household and, more importantly, each business firm

(including banks and other financial institutions) makes intertemporal portfolio as well as contemporaneous income decisions”.78 Desse modo, a economia descrita por Keynes poderia ser representada como constituída por portfólios privados, nos quais os ativos reais seriam praticamente equivalentes aos ativos financeiros – em termos dos aspectos envolvidos no ato de aquisição e financiamento, e na qual os bancos e as instituições financeiras desempenhariam

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Minsky (2008a, p.77-78) observa na obra de Keynes uma teoria capaz de explicar a sucessão de estados ou situações da atividade econômica.

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O investimento, por sua vez, é um tipo de decisão de portfólio. Nesse sentido, a proposta de Minsky é explorar uma dimensão mais ampla e, portanto, mais completa do curso das modificações na atividade econômica.

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papéis importantes para a dinâmica de funcionamento desta economia, estimulando ou inibindo seu funcionamento79.

A incerteza, nesta abordagem, impacta a performance do sistema por afetar a sua estrutura financeira a partir das decisões de gasto e de portfólio. Vale dizer, Minsky expande a validade ou a percepção do conceito de incerteza e a sua ação sobre o sistema econômico, potencializando a visão de Keynes. Os portfólios das várias unidades econômicas são constituídos a partir de avaliações subjetivas dos rendimentos esperados das operações e empreendimentos em curso (investimentos, aquisições de ativos, renda do trabalho), de forma que cada nova evidência ou acontecimento pode alterar a confiança e as próprias expectativas, modificando as decisões que estabelecem os portfólios, de modo similar ao que ocorre com o investimento, na abordagem de Keynes. Estas reversões e mudanças de opinião moldariam novas trajetórias para a atividade econômica. Assim, as flutuações no sistema econômico estariam associadas às decisões de investimento, bem como às outras decisões de portfólio, às condições de financiamento apresentadas pelo mercado e ao estado de confiança em relação ao futuro face a esta incerteza. Vale dizer, estes fatores, em conjunto, configuram a base de sustentação ou de ruptura da conjuntura econômica, do estado transitório, que se caracteriza pela interação das decisões expressas através da coleção de ativos e passivos de cada indivíduo ou organização e pela adequação dos fluxos de rendimentos e obrigações.

Nessa economia, as famílias, os empresários, as instituições financeiras bancárias e não-bancárias e mesmo os governos realizam escolhas intertemporais na dimensão de seus gastos e na formação de seus portfólios. Contudo, não antecipam e não dominam plenamente o resultado de suas ações. As famílias podem ser retratadas como tomadoras de decisões de portfólio que excedem a órbita do gasto e da renda; podem realizar aquisições de ativos de diversas naturezas e financiá-los com recursos próprios provenientes do fluxo de renda corrente, ou do estoque de riqueza, ou ainda através de compromissos de dívida a serem quitados ao longo do tempo.

Assim, a partir da abordagem minskyana, é possível inserir o financiamento nas decisões de gasto e de aplicações, abrindo espaço para determinantes mais complexos sobre o próprio consumo e permitindo explorar as consequências do lado dos ativos e sua relação na construção de um cenário de fragilidade. A partir dos portfólios, os resíduos financeiros na forma

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Em ―John Maynard Keynes‖, Minsky (2008a) aborda mais diretamente os bancos. Contudo, em outros trabalhos – Minsky (2008b), Ibid., (2008c) e Ibid., (1992) – o autor destaca a dimensão das instituições financeiras não-bancárias, sobretudo em relação aos processo de desregulamentação financeira, no final dos anos 1970, e de securitização, nos anos 1980.

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de contratos que contém compromissos de pagamento estão representados e são considerados a

cada decisão corrente. Assim, é possível inserir as famílias como agentes capazes de planejar seus gastos para além do período corrente, inclusive com a opção de recorrer ao financiamento, e nesse sentido, inseri-las no universo de incerteza e expectativas destacado pela Teoria Geral. Em outras palavras, a partir do enfoque de Minsky é possível explorar uma função financeira para as famílias.