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Transformações Estruturais do Sistema Financeiro Americano

2. O PAPEL MACROECONÔMICO DAS FAMÍLIAS E A HIPÓTESE DE

3.2. A Inserção das Famílias numa Estrutura em Permanente Transformação

3.2.1. Transformações Estruturais do Sistema Financeiro Americano

Com o intuíto de situar as considerações sobre o portfólio das famílias (ativos e passivos), cabe inserir uma breve discussão sobre as principais mudanças que afetaram o sistema financeiro americano, as quais representaram a ruptura da arquitetura financeira e de regulação prudencial posta no pós-guerra, permitindo um melhor entendimento sobre em quais condições se processou o comportamento das famílias, ao se analisar o longo período 1945-2010.

A crise estrutural do padrão de crescimento da Golden Age, levou, progressivamente, ao questionamento da institucionalidade do regime em várias frentes. A indústria, após duas décadas de crescimento acelerado, passou a perder posições, domesticamente, por conta da concorrência das economias reconstruídas (Japão e Alemanha), levando a uma queda dos lucros128, cuja reação imediata foi a pressão sobre os salários e dos trabalhadores nos EUA. Nas finanças, o recrudescimento da inflação, frente às restrições prudenciais, obrigaram as empresas financeiras a buscarem alternativas, como a criação de centros off-shore (o euromercado), buscando novas formas de captação para viabizar as operações e se manter competitivas. No âmbito monetário e internacional, a credibilidade do padrão dólar-ouro foi progressivamente abalada, levando ao desmonte deste arranjo.

Os anos 1970, assim, apresentaram-se como o período de transição da Golden Age, quando se eliminaram os pilares, já danificados, da construção de 1944. Os preços-chave da economia passaram a ser flexíveis, como destaca Belluzzo (2009, p.285-288). Com o rompimento da paridade do dólar-ouro em 1971, as taxas de câmbio, a partir de 1973, tornam-se flutuantes. As taxas de juros, por sua vez, já apresentavam volatilidade por conta das tentativas de controle da inflação ao longo da década. Contudo, em 1979, por questões de ordem política e internacional, tenta-se resgatar a credibilidade da divisa, invertendo-se a trajetória de depreciação da moeda com o choque das taxas de juros, que além de jogar a economia americana e mundial em recessão, tornou os EUA o destino prioritário de capitais. Nesse cenário, a volatilidade passaria a ser a regra a partir dos anos 1970 e 1980, inclusive no âmbito doméstico. Ao longo

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deste período, assistiu-se à desarticulação do sistema financeiro regulado, pela remoção de alicerces prudenciais, pelo movimento de inovações financeiras e pela entrada de novos players no interior da dinâmica competitiva. Como afirma Belluzzo:

Já entre o fim dos anos 60 e o início dos 70, as tensões entre a regulamentação dos sistemas nacionais e o surgimento de um espaço ―desregulado‖ de criação de empréstimos (e depósitos), num ambiente de inflação ascendente, haviam acarretado mudanças nas formas de concorrência bancária, provocando uma onda de inovações financeiras. (Belluzzo, 2009, p.274).

Nesse sentido, cabe destacar que a partir dos anos 1970, como argumenta Carvalho et

al (2000), a inovação financeira, num cenário de elevada volatilidade dos preços, passou a ser a

arma competitiva das instituições financeiras bancárias e não bancárias. O aumento da incerteza passou a exigir e estimular práticas de administração de riscos e de redução das posições de longo prazo carregadas em portfólio. Desse modo, com a progressiva integração financeira global, auxíliada pelo impacto das tecnologias de informação e comunicação, num cenário de desregulamentação e liberalização financeira, assistiu-se à emergência de novos players, os investidores institucionais, e à transformação dos velhos, como a progressiva universalização do bancos. Produtos e práticas novas surgiram e se consolidaram, como a securitização e, posteriormente, os mercados de derivativos129.

Como argumenta Guttmann (1998), com a queda das taxas de juros nos anos 1980, o desempenho do mercado de títulos, juntamente com a emergência de novas instituições financeiras e a crise bancária nos anos 1980, fizeram com que as empresas preferissem lançar títulos de dívida (commercial papers) para se financiar. Isto é, a securitização primária foi preferível relativamente à tomada de empréstimos bancários, mais custosos. Pressionados, os bancos comerciais passaram a financiar instituições voltadas para o mercado de títulos, securitizaram seus créditos130 e, de forma progressiva, foram rompendo com as limitações da regulação (operações off-balance). A concentração bancária que se verificou nos anos 1980 e 1990, inclusive com bancos comerciais adquirindo bancos de investimento, mostrou a clara

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―Securitization leads to the creation of financial paper that is eminently suitable for a global financial structure. There is a

symbiotic relation between the globalization of the world‟s financial structure and the securitization of financial instruments. Globalization requires the conformity of institutions across national lines and in particular the ability of creditors to capture assets that underlie the securities”. (Minsky, 2008c, p.2-3).

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A securitização secundária pode ser vista através da securitização dos ativos bancários, na qual ocorre a transformação da carteira de crédito em obrigações negociáveis no mercado de títulos, num processo em que as receitas dos empréstimos tornam-se colaterais de um pacote negociável, ver Carvalho et al. (2000),

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tendência à universalização bancária, cujo impedimento formal era o Glass Stegal Act – o qual foi revogado em 1999, reconhecendo uma prática de fato já em andamento.

Com relação à securitização secundária, não apenas os bancos comerciais se beneficiaram da retirada das operações do balanço. Outros agentes financeiros, como as instituições de poupança, companhias de seguro, financiadoras de cartão de crédito, automóveis, passaram a se envolver nestas operações como forma de se manter competitivos.

Ao lado do processo de securitização estaria, também, a expansão dos instrumentos derivativos. Por um lado, estes instrumentos financeiros permitiriam decompor e negociar os riscos de um ativo e de um mercado, possibilitando uma melhor administração destes. Desse modo, poderiam dar liquidez aos ativos de referência, cumprindo as mesmas funções do mercado secundário. Por outro lado, permitem um enorme incremento dos riscos assumidos, individual e, sobretudo sistemicamentente. Como afirma Carvalho et al. (2000), os derivativos teriam se associado de forma simbiótica com as transações nos mercados de capitais, dando liquidez aos títulos de dívida das empresas, sendo que o mesmo não teria ocorrido com os derivativos de crédito, ao menos até o ano 2000131.

Além destas inovações financeiras, destaca-se a emergência dos investidores institucionais, ao longo dos anos 1980. Isto é, o surgimento de vários agentes financeiros, com diferentes propósitos, cujo traço comum estaria no poder de concentração e centralização de recursos da sociedade para aplicações financeiras, garantindo, assim, a participação em mercados que não estariam disponíveis ao pequeno investidor individual. Dentre os fundos mais importantes estariam os fundos de pensão, os fundos mútuos e de investimento. Estes fundos passaram a ser um destino atrativo para os recursos ociosos das famílias, oferecendo flexibilidade e retorno superiores com relação aos depósitos em instituições de poupança e bancos comerciais. Dessa forma, a inserção financeira das famílias passou a ser ampliada pelo lado dos ativos, neste caso, pelo acesso a ativos financeiros através de participações em fundos. Assim, ainda que indiretamente, vários estratos da população passaram a ter seus recursos próprios expostos às condições e dinâmica dos mercados financeiros. Cabe destacar que as famílias de maior poder

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Entre os elementos para que a crise do mercado imobiliário se tornasse uma crise financeira profunda está a expansão dos derivativos de crédito, uma vez que a combinação da securitização destes créditos, mesmo os de pior qualidade, juntamente com a expansão dos contratos derivativos, na esperança de diluir o risco, contaminou os vários mercados financeiros e instituições.

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aquisitivo já participavam destes mercados, sendo a novidade, a difusão desse acesso, aspecto que passa a alimentar a própria expansão da esfera financeira.132

Gráfico 4: Participação nos ativos financeiros totais por tipo de instituição, EUA, 1952-2009, em %

Fonte: Economic Report of the President, 2009, p.163.

Em relação à complexidade que o sistema financeiro americano assumiu a partir das décadas de 1980 e 1990 (observada no gráfico 4), Chesnais (1998, p.11) argumenta sobre o predomínio das instituições financeiras não-bancárias, ao tratar da mundialização financeira. A arquiterura regulatória e prudencial baseada no sistema bancário transitou, no espaço de uma década, para um sistema financeiro desregulado e de ―finanças desintermediadas‖. Isto é, a perda relativa de participação das instituições depositárias sob controle das autoridades monetárias, sobretudo os bancos133134, e a vertigionosa expansão de várias instituições que passaram a captar recursos das famílias.

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Como destaca Aglietta (2004), a recuperação dos mercados acionários na segunda metade dos anos 1980, conta com um importante envolvimento das famílias. A oferta rígida de ativos (ações) passou a se confrontar com a expansão da demanda, entre outros, propiciada pelas reduções das condições para se aplicar e pela busca de proteção dos recursos poupados. Este movimento acabou conduzindo à alta das cotações, bem como a estimular novos movimentos, como a especulação e o endividamento, em face da expectativa de continuidade da valorização dos preços.

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Ver gráficos A3, A4 e A5, em anexo, sobre a evolução do número de instituições bancárias e de poupança (filiais e escritórios). 134

A menor participação dos bancos, no entanto, também reflete a dinâmica do processo de securitização. Os bancos puderam reduzir seus ativos financeiros através da securitização dos créditos, reduzindo a necessidade de requerimentos das autoridades regulatórias, ―perdendo‖, assim, participação em ativos, os quais passaram a constar nos demais intermediários financeiros.

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