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As festas de caridade no século XIX, entre a assistência e o mundano

4. Receitas extraordinárias

4.1. As festas de caridade no século XIX, entre a assistência e o mundano

As festas de caridade constituiram-se como formula de excelência na angarição de fundos para as as diferentes obras ao longo de todo o século XIX. No Portugal finissecular estes acontecimentos sociais já não eram considerados novidade no campo da assistência, visto serem uma resposta tradicional à questão social. Desde a segunda metade de Oitocentos que estas actividades faziam parte do quotidiano da cidade de Lisboa. Nas Memórias da Marquesa de Rio Maior, Branca Gonta Colaço, a respeito do Passeio Público registou o seguinte:

«A primeira grande festa que se organizou no Passeio Público foi uma “rifa de sortes”, (que assim se chamava então os “bazares” e as “Kermesses”) promovida por Sua Magestade a Imperatriz, Duquesa de Bragança, viuva de D. Pedro IV. A festa era

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O gráfico foi executado com base em dados recolhidos no Relatório da Direcção – Parecer do Conselho

Fiscal da Sociedade Protectora das Cozinhas Económicas de Lisboa – Gerências de 1897 a 1911.

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85 a favor das casas de Asilo da Infância Desvalida, instituição nova que nos viera da Suiça e que tão bem prosperou entre nós[...] Na festa de que estou falando tomaram parte todas as senhoras da sociedade.»164

Estas festas como forma de financiamento, ordinária ou extraordinária, surgem contempladas na organização e estatutos de inúmeras instituições, sociedades e associações assistenciais. Nos estatutos da Associação protectora do Asilo da Infância Desvalida do Campo Grande, de 1861, ficou estabelecido que entre os legados, donativos e subscrições caberiam também «produto de bazares, rifas, benefícios e outros qualquer recursos de receita»165.

Durante o século XIX as festas protagonizaram um papel importante na angariação de fundos não só para instituições mas também para situações consideradas pontuais. Exemplo disso foram as recolhas a favor das vítimas de catástrofes naturais ou de acidentes de considerável impacto, como foram o caso dos incêndios.

Bazares, quermesses, rifas, récitas ou saraus, entre muitas outras formas de lazer e encontro, procuravam contribuir para causas nacionais e internacionais. Os terramotos de Andaluzia na década de 80 do século XIX e os de Messina e Reggio em 1908 foram motivo para a organização de acontecimentos públicos em Portugal que visaram a recolha de fundos. Uma das iniciativas a favor das vítimas dos terramotos de Andaluzia foi a quermesse no então recente Jardim Zoológico, em Fevereiro de 1885 organizado pela «comissão de senhoras da melhor sociedade lisbonense»166.

A 15 Janeiro de 1909, no Teatro D. Maria II, realizava-se o sarau de caridade a favor dos sobreviventes dos terramotos que atingiram em Dezembro de 1908 as regiões da Calábria e Sicília, mais catastroficamente as cidades de Reggio e Messina. Esta acção foi promovida pela Sociedade de Geografia de Lisboa que programou um sarau grandioso constituído por três partes, tendo cada uma destas sete a oito momentos. Na abertura do evento ouviram-se os hinos de Portugal e de Itália, tocados pela Banda do Corpo de Marinheiros. Branca Gonta Colaço declamou o poema Fé, Esperança e Caridade, muitas outras declamações se

164 Colaço, Branca de Gonta, (1930), Memórias da Marquesa de Rio Maior, Lisboa, Parceria António Maria, p. 55.

165 Estatutos da Associação Protectora do Asilo da Infância Desvalida do Campo Grande, Lisboa, Typ. da Soc. Franco -Portugueza, 1861, p. 5.

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«As nossas gravuras - Bazar em benefício da Andaluzia no Jardim Zoologico», in Ocidente, 21 de Fevereiro 1885, p. 43.

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sucederam intercaladas com interpretações instrumentais e cantadas de Chopin e Schubert, entre outros grandes nomes da música clássica167.

Estas festas e actos públicos caracterizavam-se pela sua multiplicidade de faces. Por um lado assumiam uma máxima filantrópica, que trazia benefício e moralização e por outro lado demonstravam uma face mais mundana, constituída pelo gosto dos novos hábitos de sociabilidade de convívio e de lazer desenvolvidos pela burguesia oitocentista. Não podemos deixar de referenciar o carácter de promoção social e de carga simbólica que estes eventos proporcionaram aos indivíduos que os organizavam e neles participavam. Esse capital simbólico permitia a manutenção e até a elevação de um determinado prestígio ou estatuto.

Os promotores destes acontecimentos eram geralmente figuras gradas da sociedade. Podiam-se encontrar entre estes, elementos da aristocracia, da finança, da indústria e da própria Igreja. A Casa Real assumiu um papel preponderante neste panorama, destacando-se as figuras das rainhas D. Maria Pia e de D. Amélia. Muitas destas festas, sobretudo as mais “públicas”, contribuíam para o desanuviamento do ambiente social e político que se vivia nestes anos, permitindo à aristocracia e aos próprios elementos da família real gozarem de alguma popularidade em tempos adversos.

A escolha do palco para a realização destes acontecimentos ia ao encontro das necessidades de cada tipo de actividade, assim como ao grau de elitismo que esta exigia. Espaços como a Avenida da Liberdade, o Avenida Palace Hotel, os teatros São Carlos e D. Maria II, os jardins da Estrela, da Tapada da Ajuda, o Jardim Zoológico, entre outros locais, eram utilizados com regularidade para a realização das festas de caridade.

Precisamente a maioria destes espaços constituíam o “território” da elite, espaços que estavam longe de ser democráticos no que respeita ao seu acesso. Se a festa decorresse num espaço mais livre, sem delimitações físicas, como na Avenida da Liberdade ou no Jardim do Campo Grande, limitava-se a audiência com a cobrança da entrada. Irene Vaquinhas, no seu estudo acerca da quermesse da Tapada da Ajuda realizada em 1884, verificou que os ingressos eram avultados e assim impeditivos para qualquer pessoa que vivesse do seu trabalho168. Eram cobrados 500 réis, valor equivalente a dois dias de salário de um operário especializado.

As festas de caridade eram então realizadas pela elite para a elite. A influência social dos seus intervenientes ditava o sucesso alcançado de cada acontecimento, reflectindo-se no

167 Programa do Sarau de Caridade a favor dos sobreviventes da catástrofe de Messina e Reggio promovido

pela Sociedade de Geografia, 15 de Janeiro de 1909, Lisboa, Tipografia «A Editora», 1909.

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Vaquinhas, Irene, (1996), «As quermesses como uma forma específica de sociabilidade no século XIX: o caso da “quermesse da Tapada da Ajuda” em 1884», in Sep. de Biblios.

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montante angariado para as diversas causas. A procura da partilha, do espaço, do lazer e de uma forma de vida, com as grandes personalidades, levaram a burguesia a estas festas, contribuindo duplamente, tanto para as causas, como para a popularidade dos organizadores, e obviamente para a sua.