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As Habilidades de Leitura e a Competência Leitora

CAPÍTULO 2 – AS HABILIDADES, A COMPETÊNCIA, O TEXTO E A

2.1 As Habilidades de Leitura e a Competência Leitora

Se sustentamos nossas análises na Linguística Textual (LT), é importante destacar que fazemos aqui uma aproximação entre a abrangência do domínio empírico dessa disciplina e o conjunto das habilidades de leitura proposto pelas Matrizes de Referência de Habilidades. Isto é, as habilidades descritas em uma Matriz de Referência corresponderiam aos três níveis do trabalho com o texto em língua portuguesa, destacados por Marcuschi (2008):

(a) coesão superficial (nível dos constituintes linguísticos);

(b) coerência conceitual (nível semântico, cognitivo, intersubjetivo e funcional);

(c) sistema de pressuposições (implicações no nível pragmático da produção de sentido no plano das ações e intenções). (MARCUSCHI, 2008, p. 76)

Não é novidade que muitos governos principalmente a partir da década de 1990, tais como os da Bélgica, Quebec, França, dentre outros, incluindo o do Brasil, adotaram em seus sistemas de ensino a noção de competências.

Antes, porém, de irmos ao ponto central desta seção, falaremos de habilidade e competência de modo geral e da imprecisão que existe em torno de tais conceitos, o que exige de nós especial esforço no sentido de (re)definir os termos e associá-los adequadamente ao processo de aprendizagem da leitura, isto é, aos processos de aquisição, desenvolvimento e consolidação de habilidades concernentes ao processo de construção da competência leitora.

De acordo com Perrenoud (1999, p. 19), “não existe uma definição clara e partilhada das competências. A palavra tem muitos significados, e ninguém pode pretender dar a definição.” (grifo do autor). Porém, tal como o autor, pretende-se, neste trabalho, “avançar e conservar uma definição explícita.”

Iniciaremos tratando da noção de competência definida pelo autor que traz dois aspectos por nós considerados cruciais na compreensão do papel que as habilidades de leitura têm na construção da competência leitora e, obviamente, relevantes para o ensino da leitura na escola, tal como aqui se postula. Perrenoud (1999, p. 7) define a competência como “uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles.” (grifos nossos) Os dois aspectos a que nos referimos no início deste parágrafo são “situação” e “conhecimentos”.

Ora, agir de modo eficaz, numa determinada situação, utilizando-se para isso de conhecimentos, parece uma boa definição de competência, especialmente porque tal noção leva em conta o desempenho de uma função, posto que esta só pode ser desempenhada de forma situada. Contudo, para desempenhar uma função, terá uma pessoa de mobilizar conhecimentos, os mais variados, além de conjuntos de habilidades a que Perrenoud (1999)

vai chamar de “recursos cognitivos complementares”, nos quais se incluem os conhecimentos.

Caminhamos, então, na direção de se definir o termo habilidade como saber fazer algo e, nesse contexto, caberia falar de “ação”, no sentido dado por Perrenoud (1999). Para ele, “quase toda ação mobiliza alguns conhecimentos”. Cabe apenas uma ressalva à relação que o autor estabelece entre “ação” e “competência”, fazendo supor uma, sinônima da outra. No entanto, ele mesmo parece “redefinir” o termo competência quando afirma que ela “consiste em por em relação” conhecimentos “fazendo uso de um raciocínio e uma intuição”, ideia com a qual tendemos a concordar. Tanto que, segundo nosso ponto de vista, a competência está para o desempenho de uma função, e, para se construir essa competência, será necessário o domínio de conjuntos de habilidades. O que reforça nosso entendimento se visualiza nos exemplos do próprio Perrenoud (1999, p. 8), quando ele então “redefine” a competência: ele usa a analogia do “desempenho da função” do advogado e também do médico e, na sequência, aponta a necessidade de se realizar operações mentais, o que chamamos de habilidades, tal como se encontra nas matrizes de referência, ou seja, “fazer relacionamentos, interpretações, interpolações, inferências, invenções, em suma, complexas operações mentais cuja orquestração só pode constituir-se ao vivo, em função tanto de seu saber e de sua perícia quanto de sua visão da situação.” (PERRENOUD, 1999, p. 9)

Assim também ocorrerá com o leitor no momento da leitura: terá de realizar diversas operações mentais como as de estabelecer relações entre as partes do texto, produzir inferências, identificar informações etc.

Alguns cuidados precisam ser tomados no intuito de afastar de nossa análise, interpretações que possam comprometer o entendimento das relações que aqui se estabelecem entre os conceitos de habilidades e o de competência. Não se pode, por exemplo, confundir competência como sinônima de objetivos, algo relativamente comum na

tradição escolar e pedagógica de base behaviorista, vigente ainda hoje em certos contextos educacionais.

É importante, ainda, distinguir competência de desempenho. A competência não pode ser “percebida” senão pela observação do desempenho: “o desempenho observado seria um indicador mais ou menos confiável de uma competência (...) que é medido indiretamente” (PERRENOUD, 1999, p. 19-20).

Consideramos o desempenho dos estudantes nas avaliações de leitura, construídas com itens baseados numa matriz de referência de habilidades de leitura. Assim, lidamos com resultados que revelam a competência leitora, isto é, tais avaliações demonstram, por meio do desempenho dos estudantes, o estágio de construção da competência leitora, visível no domínio demonstrado por diferentes habilidades de leitura.

É nesse sentido que recorremos mais uma vez a Perrenoud (1999, p. 20) quando ele diz sobre a competência “que se poderia descrever um conjunto de ações que remetesse para a competência subjacente”. Então aí o autor define a competência pelo conjunto de ações, definição com a qual concordamos, pois as ações correspondem às habilidades, isto é, saber fazer algo específico. Para desempenhar uma função, portanto, é necessário saber fazer uma série de coisas relacionadas entre si, como o próprio autor exemplifica na analogia do médico, do jogador ou do advogado. Mais adiante ele trata de “um inventário dos recursos mobilizados (...). Para isso é preciso formar uma ideia do que ocorre na caixa-preta das operações mentais.” Para nós, ao desempenhar uma função, a pessoa mobiliza habilidades e, nesse aspecto, elas correspondem a operações mentais tais como identificar, relacionar, reconhecer etc.

Outra noção auxiliar na compreensão do conceito de habilidade que aqui defendemos e sua relação com a competência encontra-se na proposição de Perrenoud sobre o “esquema”, um construto piagetiano. Segundo o autor, um esquema

sustenta uma ação ou operação única, enquanto uma competência (...) envolve diversos esquemas de percepção (...) e ação, que suportam inferências, antecipações, transposições analógicas, generalizações, apreciação de probabilidades, estabelecimentos de um diagnóstico a partir de um conjunto de índices, busca de informações pertinentes, formação de uma decisão, etc. (PERRENOUD, 1999, p. 24).

Ele diz ainda que uma competência “orquestra um conjunto de esquemas” e os esquemas abrigam o que nós chamamos de habilidades. Ele exemplifica:

No futebol, a competência do centroavante que imobiliza um contra-ataque está em desmarcar-se e também pedir para que lhe passem a bola, em

antecipar os movimentos da defesa, em ter cuidado com o impedimento,

em ver a posição dos parceiros, em observar a atitude do goleiro adversário, em avaliar a distância até o gol, em imaginar uma estratégia para passar pela defesa, em localizar o árbitro, etc. Outros tantos esquemas podem ser trabalhados separadamente, no treino, mas um ataque eficaz dependerá da sua orquestração (PERRENOUD, 1999, p. 24). (grifos nossos)

Veja-se que, ao exemplificar a competência de um jogador no desempenho de uma função específica, Perrenoud elenca as habilidades – traduzidas nos verbos de ação – que esse jogador precisa ter adquirido, desenvolvido e consolidado e que ele mobiliza naquele momento a fim de obter êxito.

Analogamente, a competência leitora constituir-se-á da mobilização de diversas habilidades/esquemas/conhecimentos que podem, inclusive, ser sistematizados separadamente, tal como descritos nas matrizes de referência, mas que, no ato de ler, serão “orquestrados” conjuntamente.

Outra noção de habilidades e de competência que corrobora a que se defende neste trabalho é aquela apresentada por Marcuschi (2008, p. 65). Ele afirma que, ao assumir uma concepção de língua centrada no seu funcionamento, conduz-se “ao desenvolvimento de competências discursivas funcionalmente adequadas. E, nesse caso, a competência

linguística, enquanto domínio de formas, passa a ser um subconjunto dos fatores de adequação.”

No sentido de combater mais fortemente a prática pedagógica cristalizada que se observa nas escolas, de modo geral, e que não tem contribuído para a construção da competência leitora dos alunos, foram criadas pelo governo as avaliações que visam medir o grau de domínio das habilidades de leitura. Assim é que Carvalho (2011), estendendo essas noções de competência e habilidades de Perrenoud e de outros autores aqui citados ao âmbito do ensino da leitura, propõe que as habilidades (ou capacidades), presentes nas avaliações externas sistêmicas, possam ser entendidas como “saber fazer” algo específico:

Pode ser uma ação física ou mental, e indica uma capacidade adquirida por alguém. Desse modo, são exemplos de habilidades: analisar, aplicar, avaliar, correlacionar, correr, chutar, identificar, inferir, manipular com destreza, pular, sintetizar etc. (CARVALHO, 2011, p. 59)

Exemplo de tais habilidades encontra-se na Matriz de Referência do SIMAVE- PROEB de Língua Portuguesa para o 9º ano do Ensino Fundamental e do 1º ao 3º ano do Ensino Médio, que apresenta os descritores de habilidades e que será discutida no capítulo 3. Perrenoud (1999, p. 26) ainda sustenta que as habilidades “fazem parte da competência”: “Por ser muito competente é que um especialista pode resolver rapidamente certos problemas simples, sem precisar pensar, integrando de forma ágil uma impressionante série de parâmetros”.

E o autor conclui:

Uma competência pressupõe a existência de recursos mobilizáveis, mas não se confunde com eles, pois acrescenta-se aos mesmos ao assumir sua postura em sinergia com vistas a uma ação eficaz em determinada situação complexa (PERRENOUD, 1999, p. 28)

Entendemos que tais recursos equivalem às habilidades mobilizadas pelo sujeito e, no caso específico da competência leitora, cabe ao leitor mobilizar as habilidades de leitura bem como os conhecimentos necessários para compreensão dos textos.

A competência, então, considerada a partir dos apontamentos de Perrenoud, será entendida como a confluência harmônica e orquestrada de várias habilidades, segundo Carvalho (2011):

O termo competência refere-se a um conjunto de habilidades desenvolvidas harmonicamente, caracterizando uma função específica. Sempre que dizemos “Vou procurar um mecânico, mas tem de ser competente"; ou "...ele é mesmo um advogado competente", estamos nos referindo a um conjunto de saberes e a várias habilidades que garantem o exercício de uma função. Por isso, a competência é sempre associada a uma função (profissão): ser professor, médico, engenheiro, leitor, pedreiro, administrador... Ela se manifesta na ação. (CARVALHO, 2011, p. 59)

O trabalho de leitura na escola, se tomado do ponto de vista do desenvolvimento de habilidades, parece encontrar referência também em Bazerman (2005, p. 32), quando ele afirma que, para desempenhar uma função, isto é, para se ter uma determinada competência, será preciso “descobrir quais habilidades são necessárias” para isso. Identificando tais habilidades, será possível determinar o que é preciso aprender para desempenhar a função competentemente.

O reconhecimento da importância de um trabalho pedagógico pautado pela aquisição e desenvolvimento de habilidades para a construção de uma competência encontra-se expresso nos documentos oficiais da educação do Brasil e, conforme atestam Jurado e Rojo (2006):

Reafirmando as Diretrizes, os PCNEM e os PCN+ (Brasil/SEMTEC, 1999, p. 72; 2002) definem que o aluno egresso do ensino médio deverá ter desenvolvido capacidades que lhe garantam o conhecimento sobre as diversas manifestações da linguagem verbal, de modo a posicionar-se em relação a elas, compreendê-las, aplicá-las ou transformá-las, conforme se pode ver no quadro referente às competências gerais envolvidas no uso da

língua, em especial aquelas que dizem respeito aos eixos da representação e da contextualização sociocultural (JURADO E ROJO, 2006, p. 39).

E nos parece ser esse o sentido adotado por Antunes (2010) ao propor que o trabalho com textos, na escola, esteja lastreado pela análise que, segundo a autora, tem por finalidade o desenvolvimento de três competências: para a compreensão, para a própria análise e para os usos da fala e da escrita. Interessa-nos particularmente o que a pesquisadora defende acerca da competência para a compreensão, posto que as habilidades de leitura com as quais lidamos no presente estudo concorrem para a construção da competência leitora, ou seja, a competência para a compreensão.

De fato não parece haver outro caminho senão o da competência. As exigências atuais, muito mais que noutras épocas, recaem sobre pessoas capazes de atuarem socialmente, com versatilidade, com criatividade, com fluência, com desenvoltura, com clareza e consistência, na discussão, na análise e na condução das mais diferentes situações sociais – do espaço familiar ao espaço do trabalho. Isso desloca, necessariamente, os objetivos do ensino da língua na direção da reflexão investigadora, da análise dos usos sociais da língua – escrita e falada, verbal e multimodal – e da aplicabilidade relevante do que se ensina, do que se aprende (ANTUNES, 2010, p. 52).

De qualquer modo, a competência deve ser “construída” por meio da aprendizagem, isto é, por meio da aquisição, desenvolvimento e consolidação de habilidades.