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As imagens de Amazônia do final da década de 1960

2. O S LAMPEJOS DAS IMAGENS DE A MAZÔNIA NA REVISTA

2.2. A S IMAGENS DE A MAZÔNIA NA NARRATIVA

2.2.1. As imagens de Amazônia do final da década de 1960

Figura 6: Capa de Manchete. Edição nov./1968 Fonte: MANCHETE, nov. 1968

Foto de Dick Welton: Senhorita Rio 1968 – Ângela Catramby A edição de Manchete de 30 de outubro de 1968 traz, como espe- cial, 80 páginas sobre a Amazônia anunciadas na capa. No periódico há um conjunto de fotografias e imagens-texto. A revista selecionou e or- ganizou vários registros de Amazônia, uma pluralidade de vozes e pers- pectivas que ativam muitas referências para a região. O espaço amazô-

nico ganha visibilidade nas páginas de Manchete. A reportagem11 de abertura é intitulada Um mundo maravilhoso. Nela são apresentados os encantos da fauna, flora e rios amazônicos: cores, pássaros, plantas e lagos dão passagem aos repórteres, que fotografam as paisagens e cons- troem imagens-texto para a região:

A Amazônia é um mundo à parte. Árvores gigan- tescas, variedades coloridas de pássaros e de flôres só se encontram ali. Dos peixes aos frutos, tudo têm um sabor diferente. A grande floresta, que o homem apenas conseguiu penetrar em al- guns pontos após um esfôrço de quatro séculos, impõe-se, ainda, como a principal responsável pe- lo mistério amazônico. Ela é o grande obstáculo a transpor, mas ainda assim, milhares de cientistas, escritores e aventureiros arriscam a vida apenas para conhecê-la. (CASCUDO In MANCHETE, nov. 1968, p. 95).

É a imagem do exótico, do fabuloso, da vastidão e grandeza do território; da mata indomável que é preciso transpor para que o homem consiga conhecê-la, desvendá-la. Um retorno à imagem gigantesca e selvagem da mata apresentada por Ferreira de Castro, que somente de- pois de um grande esforço humano consegue-se adentrar o território para desbravá-lo. A mata impõe-se como grande obstáculo a transpor.

Enquanto o homem avança com o progresso, vão surgindo as imagens de Euclides da Cunha, cuja terra ainda em gênese precisa ter suas paisagens domesticadas para socializar-se ao restante do território nacional. “A natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção estupenda a que falta toda decoração interior. Compreende-se bem isto: a Amazônia é talvez a terra mais nova do mundo. Nasceu da última convulsão geogênica e sublevou os Andes, e mal ultimou o seu processo evolutivo” (CUNHA, 1999, p.3). Na citação da revista também se en- contra o discurso mítico que seleciona a região como mundo à parte, de imagens fabulosas que só se encontram ali. Ao passo que se minimiza a região a uma ilha, ativa-se referências contrastivas capazes de localizar imagens peculiares de Amazônia em outros lugares, outras narrativas.

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Algumas reportagens não são assinadas. Elas serão referenciadas citando o nome da revista. As assinadas trarão o nome do autor. A formatação itálico será utilizada para destacar os títulos das reportagens e as manchetes das revistas quando citadas no corpo do trabalho.

Seguida à imagem da natureza, a revista apresenta as cidades de Belém e Manaus como os pólos de uma nova civilização. Cita as capitais como centros de civilização e progresso, da construção e do concreto modernizador. Narra o aumento do número de automóveis e a variedade de pratos e sabores que a região tem pra oferecer.

Belém e Manaus são, tradicionalmente, os dois centros de civilização e progresso da região Norte. É nêles que se sentem, de maneira mais aguda, as modificações introduzidas pela política de incen- tivos fiscais, que resulta numa rápida industriali- zação. Capitais financeiros do Sul e técnicos do Sul vêm movimentando novos empreendimentos, enquanto a Zona Franca estimula o turismo ao longo do rio Amazonas. Belém tem hoje 600 mil habitantes e é uma cidade florescente. As comuni- cações também têm melhorado: as duas capitais são servidas por aviões a jato e nelas se baseia uma vasta rêde regional de linhas aéreas. Os navi- os de passageiros do Lóide Brasileiro estenderam recentemente seus cruzeiros quinzenais pela costa até a cidade de Manaus, para onde são levados contingentes sucessivos de turistas do país e do exterior. O progresso é visível nas ruas e no co- mércio, que alimenta grande desenvolvimento nas duas cidades (CASCUDO In MANCHETE, nov. 1968, p. 99).

Os anos finais da década de 1960 constroem a imagem do pro- gresso desbravando a Amazônia. É a indústria, o transporte, a comuni- cação, os investimentos e incentivos fiscais que dinamizam a economia da região. Algumas reportagens de Manchete fazem propaganda do desenvolvimento e do progresso. Talvez, reflexo da política militar que tenta, a todo custo, integrar o norte ao restante do país, de modo que a revista se vale desse discurso e o reproduz em suas reportagens.

As narrativas também registram o Círio de Nazareth e a festa dos bois de Manaus – compõe-se a imagem de uma terra para o turismo pitoresco e exótico. Segundo o título da reportagem, Os turistas encon- tram [na Amazônia] um mundo surpreendente e exótico dominado pela selva e pelos grandes rios:

Os passeios pelos rios Negro e Amazonas são ca- da vez mais frequentes e já fazem parte do calen-

dário turístico de Manaus, ao alcance do visitante comum. No lago dos Reis, por exemplo, a enorme variedade de flora e fauna pode ser fotografada num dos mais belos cenários que a natureza ama- zônica já produziu. Distante cêrca de quatro horas de barco de Manaus, o lago foi recentemente fil- mado por expedições científicas americanas e equipes brasileiras de estudiosos de botânica; nêle se encontram plantas e aves raras. A vantagem é que essa amostra pode ser contemplada, sem ris- cos de uma penetração maior na floresta (CAS- CUDO In MANCHETE, nov. 1968, p. 97). Também há o registro da Grande Tarefa de integração da Ama- zônia no progresso brasileiro. Destaca-se o dilema do Brasil em ocupar ou perder a região para outras nações interessadas. O general Albuquer- que Lima, ministro do interior, comanda a batalha de integração e anun- cia as providências adotadas para desenvolver o território das matas. Segundo a reportagem: “a tarefa é gigantesca, reclamando um esfôrço extraordinário de quantos tenham alguma coisa a dar. Não devemos, entretanto, temê-la, mas comportar-nos à altura de sua magnitude” (CASCUDO In MANCHETE, nov. 1968, p. 109). O trecho transmite a imagem da dimensão da floresta: ela é grande, a ação de desenvolvê-la também. Embora o texto apresente a negativa do temor, por outro lado, há o medo de ser vencido pela floresta e seus mistérios – que os planos possam ir por água abaixo.

Outras reportagens anunciam a Zona Franca de Manaus como um polo de indústria e livre comércio. Há nos textos registros da política de incentivos fiscais para que empresas invistam na região. Eles ressaltam empreendimentos que prosperam, e, ao mesmo tempo, debatem uma política de desenvolvimento que vise à preservação do ambiente. O pioneirismo expansivo da pecuária é superexaltado, embora haja uma suposta preocupação com a conservação da mata.

São as imagens contraditórias da colonização. Investe-se em transportes aéreos, em educação como capital humano – da primeira série ao nível superior com a construção de escolas e da Universidade Federal do Pará. Imagens do progresso no meio da floresta. Narrativas que formam a ideia fabulosa de uma civilização aparecendo na mata, germinando entre as árvores incultas às quais Cunha citara em seu texto. A marcha do positivismo retoma a perspectiva do descobrimento e da própria colonização. O jornalismo retrata 1968, entretanto, surgem as imagens da chegada dos espanhóis, do momento em que eles viam a

floresta e se deslumbravam com ela. Na revista Manchete, são os brasi- leiros que descobrem a Amazônia, somos nós que nos surpreendemos e ficamos impressionados com os referenciais de nosso próprio país. Ao passo que a Amazônia fascina, também existe a preocupação de desen- volver a região para não perdê-la. O brasileiro, representado nas repor- tagens de 1968, ativa a imagem do espanhol de 1500. Aquele que chega para conhecer e ocupar o território. As intermitências dessas imagens que vêm em instantes de luz trazem os resquícios da viagem dos nave- gadores – os clarões da colonização em tempos atuais. O registro de hoje e as intermitências do passado ativando e sendo ativadas. O jorna- lismo como produtor de imagens a ver e serem vistas – um ativador de referências que registra imagens de acontecimentos atuais a tocar tem- pos e eventos passados.

A leitura da revista proporciona a experiência do descontínuo ao leitor. Ele se vê obrigado a operar com temporalidades, imagens e acon- tecimentos esparsos nas páginas da publicação. No periódico não há intenção de se garantir a cronologia dos acontecimentos de modo que um suceda o outro para que se estabeleça uma relação coesiva entre tudo o que foi publicado na edição, mas os registros desses eventos podem ser entendidos como flagrantes de luz do fim de uma década. Por isso, diz-se que a revista é produzida a partir da “montagem de imagens cujos nexos se produzem na memória” (VOGEL, 2011, p. 101).

Cabe à memória a tarefa de selecionar, montar, ativar e desativar imagens por meio de seu movimento anacrônico, isto é, no processo de atribuição de sentidos, a ação desempenhada por quem lê obriga-o a selecionar e omitir referências para construção de um texto que o possi- bilite, de maneira provisória ou aleatória, a relacionar significados na revista. Nas palavras de Bennett, “reading, is an activity of selection and omission which produces the text as a (spatial) collage or (temporal) montage of fragmentes in provisional or indeterminate relations. The experience of periodical reading is an experience of discontinuity” (1989, p. 480).

As imagens do final da década de 1960 funcionam como vaga- lumes a enviar, em direção ao presente, seus traços luminosos. As narra- tivas jornalísticas registram esses relâmpagos passageiros e dão visibili- dades a eles. Quando os olhamos somos intersectados por outras refe- rências que chegam, lonjuras que trazem marcas do tempo e da história. Nesse momento as imagens nos olham enquanto olhamos para elas. O jornalismo não é um mero reprodutor de imagens do passado. Ele atua- liza essas referências destacando o princípio da singularidade. Esse cará- ter particular do acontecimento constrói leituras novas acerca das coisas

do mundo e dos modos de vê-las, um jeito diferente de reapresentá-las no espaço público por meio da notícia.